Jair Glass pode não ser um nome reconhecido à primeira vista. Mas suas figuras soturnas evocam um universo explorado por artistas como Iberê Camargo e Marcelo Grassman. Aos 75 anos, Glass tem sua trajetória repassada no livro homônimo editado por Charles Cosac. A edição é daqueles livros que, percebe-se, ganham corpo pela devoção à arte. Mesmo que essa fé precise atravessar o inferno e incorporar o soturno.
Aliás, soturnos são os generais de línguas verdes, retratados por Glass em uma série de meados dos anos 1970. Foi em 1977, mesmo ano em que o nome do artista ficou em evidência na edição do Panorama da Arte Brasileira, evento que destaca talentos das artes plásticas do País. Nascido no subúrbio de São Miguel Paulista, o artista, filho de pais humildes, teve uma vida difícil. Pedreiro, oleiro e dono de bar foram algumas das funções que exerceu, mas o desenho sempre foi o que considerou sua “salvação”.
Quando era criança, recebeu um toco de lápis azul do avô e começou os rabiscos. Leitor de histórias em quadrinhos, Glass tentou aprender desenho por um curso de correspondência, passou por alguns grupos, como o Guaianazes, mas sempre foi um artista solitário, característica que também acompanhou Volpi, mestre que teve igualmente um passado de artesão da pintura.
A força do traço de Glass se mede pelo esmero nos desenhos, quase como se cada fio ou risco fosse essencial para tecer uma gravura apavorante e, com isso, transmitir o arrepio que essas cordas podem fazer ao tilintar, como um grave de um violoncelo. Nesses detalhes tão cinzas e cabeludos, pode-se lembrar das algazarras visuais propostas por Kandinski (1866-1944), que criou composições abstratas e estabeleceu um flerte com o mundo espiritual.
Essa conexão com o místico está presente na obra de Glass, não como um flerte enérgico, como nas figuras geométricas e coloridas de Kandinski, mas como um frisson, um suspiro antes do susto; o que se espera ao ver uma de suas figuras talhadas em tons de ocre, grafite e acinzentados. Em algumas das gravuras, com destaque para o início da carreira, o pintor incorporou a terra como matéria em seus trabalhos.
Evidentemente, como adverte o crítico Olívio Tavares de Araújo em seu prefácio, a obra de Glass não tem muito apelo comercial. As razões, são duas: não é uma obra de vanguarda e também não são trabalhos “bonitos”, com pretensões decorativas. Os desenhos de Glass têm amarras no fantástico, como se seus personagens fossem transportados de uma apresentação de ventriloquismo ao papel. Para o crítico, Jair Glass é capaz de mostrar o mundo, mesmo que tenha que passar pelo submundo antes (e, por vezes, por lá ficar).
A tendência ao fantástico, ao disforme, é algo que ressoa também na obra de Iberê Camargo, seu contemporâneo, que imaginou crianças disformes, personagens soturnos em cores frias e cortantes. Jair Glass vai na contramão de um mundo que se prostra à crueldade da beleza, com mutilações e anomalias. As aberrações de seu imaginário pictórico misturam figuras de horror, como palhaços e cabras, trabalhados em uma névoa cromática que pode dar a sensação de pesadelo. A resposta do pintor parte do instinto, algo que não fere, mas move o olhar para cenários inusuais, como em As Partes e o Todo, de 1989.
Esse estado onírico pode ser um refúgio para a cegueira dos tempos. Quando a estética faz escravos de um mundo que sucumbe à ditadura da beleza, as figuras de Glass repousam em silêncio. Perturbadoras, elas mostram a verdadeira face do interior de um país que atravessou ditaduras, afundado em desigualdade social. No íntimo, pode desagradar, mas é como se o artista fizesse uma radiografia de seus demônios internos, com absoluta sinceridade.
JAIR GLASS - INTRODUÇÕES A ESCOMBROS
OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO
EDITORA COSAC & NAÏFY
360 PÁGINAS
R$ 280