O que une escritores como Gustave Flaubert, Joseph Conrad e Virginia Woolf? Talvez só mesmo um filósofo como o argelino Jacques Rancière, autor de uma biografia filosófica sobre o pedagogo Jean Joseph Jacotot (O Mestre Ignorante) possa fornecer uma resposta. Jacotot (1770-1840) ousou dizer não à autoridade dos mestres. Defendia que todo mundo pode ensinar (inclusive o que não sabe), tendo a igualdade como princípio e a emancipação da inteligência como método. Assim, ao se debruçar sobre a literatura moderna, Rancière tenta esquecer o que aprendeu sobre Flaubert, Conrad e Virginia Woolf para elaborar uma teoria própria em O Fio Perdido – Ensaios sobre a Ficção Moderna. Bastante própria, aliás.
O livro não foi concebido como um estudo conjunto da obra literária do trio. Na verdade, trata-se da reunião de textos autônomos produzidos entre 2010 e 2014, encomendados por uma universidade alemã e revistas europeias. Apesar disso, o resultado é um ensaio homogêneo, que ignora a desigualdade entre Flaubert, Conrad e Virginia Woolf para colocar em foco o caráter nada aristotélico da literatura moderna, as narrativas erráticas e o confronto desses autores com a desproporção de suas obras, em particular Flaubert, que poderia ter escrito 75 mil páginas de Madame Bovary e ainda assim não saber como colocar um fim nessa história – característica da modernidade, de acordo com o filósofo.
Os ensaios reunidos no livro, segundo Rancière, tentam pensar alguns paradoxos que fundam a ficção moderna, levando em consideração que Barthes, bem antes dele, já havia escrito um texto canônico (O Efeito do Real, 1968) sobre o confronto com o real, presente nas obras de cada um dos analisados. Barthes, por exemplo, foi pioneiro ao analisar a sobrecarga de elementos descritivos no conto Um Coração Simples, de Flaubert, sobre uma criada analfabeta (Felicité) que acumula perdas (inclusive da patroa, a senhora Aubain) e paixões infelizes, terminando seus dias numa casa vazia ao lado de um papagaio.
Rancière, evocando Barthes, compara o drama existencial de Felicité ao barômetro disfuncional na casa da patroa, que não serve para nada. É preciso, então, encontrar uma utilidade para esse acessório inútil, observa o filósofo, mostrando como Flaubert, de modo inteligente, valoriza o real justamente por meio da presença de um objeto que não tem função nessa história – Sartre, que escreveu um estudo biográfico sobre ele (O Idiota da Família) dizia que Flaubert e os escritores de sua geração estavam empenhados em “coisificar tudo”. Nem tudo, afinal.
Virginia Woolf, autora de um manifesto que reivindicou os direitos da ficção moderna, criticou H.G. Wells, Arnold Benet e outros escritores, que classificou de “materialistas”, justamente pelo apego ao trivial, mas não teve dúvidas ao abdicar do sujeito para eleger o cenário do mundo real como protagonista de Mrs. Dalloway, por exemplo. “Se, por um lado, Flaubert liquidava o tema da narração em um capítulo, Virginia Woolf, por outro lado, liquida em uma frase com essas manifestações da vontade que determinam, ordinariamente, o curso da ficção com as relações entre os personagens”, observa Rancière, mostrando como o passeio de Mrs. Dalloway para comprar flores tira a protagonista do centro da ação e valoriza o ambiente mundano, destacando as vidas minúsculas que cruzam seu caminho.
Trata-se, segundo Rancière, “de opor não o singular à totalidade, mas um modo de existência a outro”. E é muito naturalmente uma totalidade difusa, acrescenta o filósofo. Ele afirma que Virginia Woolf não inventou o “halo luminoso” que envolvia os personagens da escritora – e a própria autora. Foi Joseph Conrad que criou esse halo luminoso não a serviço do centro, mas da periferia do mundo. Rancière, a propósito, observa que as histórias de Conrad sempre adotam um esquema fundamental, fruto da aparência, do equívoco e da ilusão. Lord Jim, resume ele, é o sonho individual de heroísmo. Coração das Trevas é o pesadelo da mentira civilizatória plantado pelo colonialismo. Para contá-la, Conrad “reintroduz a função do narrador” que Flaubert fez desaparecer. Isso não significa que Conrad soubesse onde colocar a palavra fim nos seus livros. Como numa sessão de free jazz, alguém tem sempre de agitar a bandeirinha para que os músicos parem de improvisar. A palavra final vem de Kurtz em Coração das Trevas: o horror. Mas esse não é o fim da saga de um “herói civilizador”, um selvagem disposto a “exterminar todos os bárbaros”. Esse fim é um artifício para concluir uma ficção interminável, conclui Rancière. É a maldição dos modernos.
O Fio Perdido Autor: Jacques RancièreTradução: Marcelo MoriEditora: Martins Fontes 152 páginas R$ R$ 39