Filósofo franco-argelino Bernard-Henri Lévy analisa o espírito judeu


Para ele, a crítica ao Estado Judeu tem servido de pretexto para normalizar o antissemitismo

Afinal, quem é judeu?

A pergunta acima foi feita há exatos 60 anos por David Ben-Gurion, então primeiro-ministro de Israel e fundador do Estado Judeu. Na ocasião, a questão tinha um propósito prático: uma década depois do estabelecimento de Israel, ainda havia dúvidas sobre como registrar a nacionalidade de crianças de casamentos mistos, especialmente entre um homem judeu e uma mulher não judia, já que o judaísmo é de linhagem matrilinear – ou seja, segundo os ortodoxos, só é judeu quem nasce de mãe judia. O problema de decidir quem era judeu – e, portanto, tinha o direito automático a cidadania e residência naquele nascente Estado, graças à Lei do Retorno, firmada em 1950, dois anos após a fundação de Israel – tinha graves implicações políticas.

O filósofo franco-argelinoBernard-Henri Lévy nas ruínas da casa de Muammar Kadafi Foto: Marc Roussel/The New York Times
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Quando Ben-Gurion fez a pergunta, endereçada a intelectuais judeus de diversas origens e vertentes de pensamento, a questão da identidade judaica ameaçava derrubar seu governo. Como é possível imaginar, os partidos religiosos e seculares que integravam a coalizão governista expressavam visões radicalmente distintas sobre o assunto, e qualquer decisão que o premiê viesse a tomar seria vista pela parte derrotada como argumento para abandonar a aliança.

O próprio Ben-Gurion tinha um interesse particular na querela, pois seu filho Amos mantinha um relacionamento amoroso com uma não judia, a enfermeira britânica Mary Callow. Amos casou-se com Mary a despeito da feroz objeção da mãe dele, Paula. O problema só foi resolvido quando, anos mais tarde, Mary se converteu ao judaísmo de acordo com os ritos ortodoxos. No entanto, Mary e Amos educaram os filhos segundo o judaísmo secular, e mesmo Paula Ben-Gurion, numa entrevista, admitiu que seu judaísmo pouco tinha de ortodoxo – ela mal respeitava as regras da alimentação kosher, por exemplo. A partir desse caso específico, pode-se observar que a questão sobre a identidade judaica não tem nem nunca teve uma resposta fácil, se é que tem alguma, e isso apresenta profundas consequências políticas e filosóficas para Israel e para os judeus ao redor do mundo.

Como se fosse um dos intelectuais consultados por Ben-Gurion mais de meio século atrás, o filósofo franco-argelino Bernard-Henri Lévy deu sua contribuição para esse debate espinhoso, e ela é, como quase tudo no trabalho desse autor, ousada: em seu livro O Espírito do Judaísmo, lançado em 2016 e que chegou recentemente ao Brasil, Lévy considera que o judaísmo se manifesta em sua plenitude não na forma estritamente religiosa, mas na forma de ativismo social e político, com o objetivo nada modesto de consertar o mundo. Para esse fim, em primeiro lugar, há Israel – cuja existência, sugere o filósofo judeu, é uma maneira vigorosa de enfrentar o mal que está em toda parte e que se realiza há séculos por meio do antissemitismo.

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Em entrevista ao Estado, Lévy, que esteve no Brasil recentemente a convite da Confederação Israelita do Brasil (Conib) para uma série de palestras sobre seu livro, definiu o que, em sua opinião, um judeu deve fazer para honrar sua condição e sua identidade: “Defender Israel.” Para ele, a crítica ao Estado Judeu tem servido de pretexto para normalizar o antissemitismo, e isso deve ser denunciado como um atentado à humanidade.

Segundo os secularistas como Lévy, o pertencimento ao judaísmo é nacional, e não religioso. Esse conceito está em Hannah Arendt, cujo ensaio O Judeu como Pária (1944) descreve a religião judaica como um conjunto de valores aos quais se pode ou não aderir, enquanto o judaísmo, isto é, o pertencimento à nação judaica (jewishness) é tratado como uma condição existencial, portanto inescapável. Por esse motivo, a existência de Israel, conforme esse pensamento, teve o condão de redefinir o judaísmo. A vontade de integrar o povo judeu e defender as fronteiras de seu Estado Nacional, seja lá qual for a linhagem a que se pertence, seria superior ao exclusivismo religioso na definição da identidade.

Lévy sustenta que a missão dos judeus é “estudar, tanto quanto possível, os textos judaicos e o tesouro de inteligência e moral que eles contêm”, mas apenas isso não basta. É preciso também “acreditar nos valores universais e liberais, no espírito livre e na liberdade de pensamento, e lutar contra toda forma de fanatismo e violência”. Esse seria “o verdadeiro espírito do judaísmo”, disse Lévy, elevando Israel à categoria de farol moral e democrático do mundo – e isso seria tão mandatório que não dependeria nem mesmo da vontade dos judeus.

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No livro, para ilustrar esse ponto, Lévy invoca a imagem de Jonas, profeta bíblico que Deus manda a Nínive, capital da Assíria, para advertir que a cidade seria destruída em 40 dias se o povo não se arrependesse. Essa passagem sugere que Deus estava disposto a converter os assírios, tradicionais e cruéis inimigos de Israel, em vez de destruí-los. Jonas, contudo, tenta escapar da missão – como se fosse possível esconder-se de Deus e renunciar a seus deveres – e acaba engolido por uma baleia. Três dias depois, ouvindo as súplicas do profeta, Deus o liberta. Agradecido, Jonas vai então a Nínive e, ainda contra sua vontade, faz o que Deus lhe havia ordenado – e o povo assírio se arrependeu. Ato contínuo, Deus poupa a vida dos assírios, para grande desgosto de Jonas, que critica a misericórdia do Senhor. Então, Deus ensina a Jonas a poderosa lição da compaixão.

Isso mostra, segundo a teologia de Lévy, que a missão dos judeus é iluminar o mundo com a sabedoria emanada da imensa tradição progressista que, segundo ele, conforma o judaísmo, mesmo que a misericórdia, em certos casos, pareça absurda, como pareceu a Jonas. Tudo para conduzir a humanidade, integralmente, ao mais próximo possível da perfeição divina.

É claro que tal conceito leva à conhecida definição dos judeus como o “povo eleito” de Deus – que muitos não judeus interpretam como arrogância. Lévy explicou na entrevista que não se trata de um privilégio, “muito menos da santificação do povo judeu enquanto tal”. Segundo Lévy, “os judeus são um tesouro, não para Deus, mas para as nações”, pois “eles preservam e muitas vezes incorporam os valores que são um tesouro para o resto do mundo”. Exemplo disso seria a responsabilidade moral em relação aos outros. “Eu tenho, como intelectual judeu, o dever de me comprometer com os que são privados de tudo, os aflitos e os perdidos”, afirmou Lévy.

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Nesse sentido, lembra de certa forma o argumento do ensaísta franco-americano George Steiner, que no livro The Bluebeard’s Castle (1971) diz que a “missão” judaica no mundo é encarnar as “leis de Deus”, isto é, os códigos morais – e teria sido esse o motivo pelo qual os judeus foram implacavelmente perseguidos por Hitler, pois o ditador nazista pretendia eliminar fisicamente a consciência do mundo. 

“Eu não creio que o homem seja naturalmente bom e que isso é suficiente para superar os obstáculos rumo a uma sociedade perfeita”, disse Lévy, “mas eu creio, sim, na tendência progressista da tradição judaica, iluminista e de espírito livre.” Para Lévy, na base do judaísmo está a crença de que os textos, “todos os tipos de texto, especialmente os sagrados”, devem ser criticados e indefinidamente comentados, de modo a manter seu significado “perpetuamente aberto”. Não há, portanto, nenhum aspecto do mundo que não possa e não deva ser discutido.

Tudo isso, na visão de Lévy, obriga os judeus a serem visceralmente contrários ao populismo e ao nacionalismo, que por definição limitam os horizontes do pensamento. “Toda forma de compromisso com qualquer manifestação de populismo seria, de acordo com os valores judaicos, o equivalente ao suicídio”, afirmou Lévy. E ele acrescentou que esse risco está em toda parte, “inclusive, é claro, no Brasil”, que recentemente elegeu como presidente Jair Bolsonaro, cujo discurso nacionalista e populista empolgou uma parte considerável do Brasil – incluída aí uma parcela da comunidade judaica, talvez encantada com o engajamento de Bolsonaro a favor de Israel. “Desnecessário dizer o quanto me chocou, em seu país, a eleição de Bolsonaro”, disse, em tom de lamento.

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A feroz rejeição de Lévy ao dogmatismo político e religioso em favor do intelecto é uma poderosa mensagem, especialmente nos dias que correm. Mesmo a vaidade explícita de vincular as origens do pensamento francês a uma série de filósofos judeus desde o rabino Schlomo Yitzhaki, no século 11 – a quem Lévy, em seu livro, atribui nada menos que a própria “invenção da França” –, não desmerece seu esforço de expor a duradoura guerra contra a razão, que tem no ódio aos judeus sua mais bem acabada expressão.

Afinal, quem é judeu?

A pergunta acima foi feita há exatos 60 anos por David Ben-Gurion, então primeiro-ministro de Israel e fundador do Estado Judeu. Na ocasião, a questão tinha um propósito prático: uma década depois do estabelecimento de Israel, ainda havia dúvidas sobre como registrar a nacionalidade de crianças de casamentos mistos, especialmente entre um homem judeu e uma mulher não judia, já que o judaísmo é de linhagem matrilinear – ou seja, segundo os ortodoxos, só é judeu quem nasce de mãe judia. O problema de decidir quem era judeu – e, portanto, tinha o direito automático a cidadania e residência naquele nascente Estado, graças à Lei do Retorno, firmada em 1950, dois anos após a fundação de Israel – tinha graves implicações políticas.

O filósofo franco-argelinoBernard-Henri Lévy nas ruínas da casa de Muammar Kadafi Foto: Marc Roussel/The New York Times

Quando Ben-Gurion fez a pergunta, endereçada a intelectuais judeus de diversas origens e vertentes de pensamento, a questão da identidade judaica ameaçava derrubar seu governo. Como é possível imaginar, os partidos religiosos e seculares que integravam a coalizão governista expressavam visões radicalmente distintas sobre o assunto, e qualquer decisão que o premiê viesse a tomar seria vista pela parte derrotada como argumento para abandonar a aliança.

O próprio Ben-Gurion tinha um interesse particular na querela, pois seu filho Amos mantinha um relacionamento amoroso com uma não judia, a enfermeira britânica Mary Callow. Amos casou-se com Mary a despeito da feroz objeção da mãe dele, Paula. O problema só foi resolvido quando, anos mais tarde, Mary se converteu ao judaísmo de acordo com os ritos ortodoxos. No entanto, Mary e Amos educaram os filhos segundo o judaísmo secular, e mesmo Paula Ben-Gurion, numa entrevista, admitiu que seu judaísmo pouco tinha de ortodoxo – ela mal respeitava as regras da alimentação kosher, por exemplo. A partir desse caso específico, pode-se observar que a questão sobre a identidade judaica não tem nem nunca teve uma resposta fácil, se é que tem alguma, e isso apresenta profundas consequências políticas e filosóficas para Israel e para os judeus ao redor do mundo.

Como se fosse um dos intelectuais consultados por Ben-Gurion mais de meio século atrás, o filósofo franco-argelino Bernard-Henri Lévy deu sua contribuição para esse debate espinhoso, e ela é, como quase tudo no trabalho desse autor, ousada: em seu livro O Espírito do Judaísmo, lançado em 2016 e que chegou recentemente ao Brasil, Lévy considera que o judaísmo se manifesta em sua plenitude não na forma estritamente religiosa, mas na forma de ativismo social e político, com o objetivo nada modesto de consertar o mundo. Para esse fim, em primeiro lugar, há Israel – cuja existência, sugere o filósofo judeu, é uma maneira vigorosa de enfrentar o mal que está em toda parte e que se realiza há séculos por meio do antissemitismo.

Em entrevista ao Estado, Lévy, que esteve no Brasil recentemente a convite da Confederação Israelita do Brasil (Conib) para uma série de palestras sobre seu livro, definiu o que, em sua opinião, um judeu deve fazer para honrar sua condição e sua identidade: “Defender Israel.” Para ele, a crítica ao Estado Judeu tem servido de pretexto para normalizar o antissemitismo, e isso deve ser denunciado como um atentado à humanidade.

Segundo os secularistas como Lévy, o pertencimento ao judaísmo é nacional, e não religioso. Esse conceito está em Hannah Arendt, cujo ensaio O Judeu como Pária (1944) descreve a religião judaica como um conjunto de valores aos quais se pode ou não aderir, enquanto o judaísmo, isto é, o pertencimento à nação judaica (jewishness) é tratado como uma condição existencial, portanto inescapável. Por esse motivo, a existência de Israel, conforme esse pensamento, teve o condão de redefinir o judaísmo. A vontade de integrar o povo judeu e defender as fronteiras de seu Estado Nacional, seja lá qual for a linhagem a que se pertence, seria superior ao exclusivismo religioso na definição da identidade.

Lévy sustenta que a missão dos judeus é “estudar, tanto quanto possível, os textos judaicos e o tesouro de inteligência e moral que eles contêm”, mas apenas isso não basta. É preciso também “acreditar nos valores universais e liberais, no espírito livre e na liberdade de pensamento, e lutar contra toda forma de fanatismo e violência”. Esse seria “o verdadeiro espírito do judaísmo”, disse Lévy, elevando Israel à categoria de farol moral e democrático do mundo – e isso seria tão mandatório que não dependeria nem mesmo da vontade dos judeus.

No livro, para ilustrar esse ponto, Lévy invoca a imagem de Jonas, profeta bíblico que Deus manda a Nínive, capital da Assíria, para advertir que a cidade seria destruída em 40 dias se o povo não se arrependesse. Essa passagem sugere que Deus estava disposto a converter os assírios, tradicionais e cruéis inimigos de Israel, em vez de destruí-los. Jonas, contudo, tenta escapar da missão – como se fosse possível esconder-se de Deus e renunciar a seus deveres – e acaba engolido por uma baleia. Três dias depois, ouvindo as súplicas do profeta, Deus o liberta. Agradecido, Jonas vai então a Nínive e, ainda contra sua vontade, faz o que Deus lhe havia ordenado – e o povo assírio se arrependeu. Ato contínuo, Deus poupa a vida dos assírios, para grande desgosto de Jonas, que critica a misericórdia do Senhor. Então, Deus ensina a Jonas a poderosa lição da compaixão.

Isso mostra, segundo a teologia de Lévy, que a missão dos judeus é iluminar o mundo com a sabedoria emanada da imensa tradição progressista que, segundo ele, conforma o judaísmo, mesmo que a misericórdia, em certos casos, pareça absurda, como pareceu a Jonas. Tudo para conduzir a humanidade, integralmente, ao mais próximo possível da perfeição divina.

É claro que tal conceito leva à conhecida definição dos judeus como o “povo eleito” de Deus – que muitos não judeus interpretam como arrogância. Lévy explicou na entrevista que não se trata de um privilégio, “muito menos da santificação do povo judeu enquanto tal”. Segundo Lévy, “os judeus são um tesouro, não para Deus, mas para as nações”, pois “eles preservam e muitas vezes incorporam os valores que são um tesouro para o resto do mundo”. Exemplo disso seria a responsabilidade moral em relação aos outros. “Eu tenho, como intelectual judeu, o dever de me comprometer com os que são privados de tudo, os aflitos e os perdidos”, afirmou Lévy.

Nesse sentido, lembra de certa forma o argumento do ensaísta franco-americano George Steiner, que no livro The Bluebeard’s Castle (1971) diz que a “missão” judaica no mundo é encarnar as “leis de Deus”, isto é, os códigos morais – e teria sido esse o motivo pelo qual os judeus foram implacavelmente perseguidos por Hitler, pois o ditador nazista pretendia eliminar fisicamente a consciência do mundo. 

“Eu não creio que o homem seja naturalmente bom e que isso é suficiente para superar os obstáculos rumo a uma sociedade perfeita”, disse Lévy, “mas eu creio, sim, na tendência progressista da tradição judaica, iluminista e de espírito livre.” Para Lévy, na base do judaísmo está a crença de que os textos, “todos os tipos de texto, especialmente os sagrados”, devem ser criticados e indefinidamente comentados, de modo a manter seu significado “perpetuamente aberto”. Não há, portanto, nenhum aspecto do mundo que não possa e não deva ser discutido.

Tudo isso, na visão de Lévy, obriga os judeus a serem visceralmente contrários ao populismo e ao nacionalismo, que por definição limitam os horizontes do pensamento. “Toda forma de compromisso com qualquer manifestação de populismo seria, de acordo com os valores judaicos, o equivalente ao suicídio”, afirmou Lévy. E ele acrescentou que esse risco está em toda parte, “inclusive, é claro, no Brasil”, que recentemente elegeu como presidente Jair Bolsonaro, cujo discurso nacionalista e populista empolgou uma parte considerável do Brasil – incluída aí uma parcela da comunidade judaica, talvez encantada com o engajamento de Bolsonaro a favor de Israel. “Desnecessário dizer o quanto me chocou, em seu país, a eleição de Bolsonaro”, disse, em tom de lamento.

A feroz rejeição de Lévy ao dogmatismo político e religioso em favor do intelecto é uma poderosa mensagem, especialmente nos dias que correm. Mesmo a vaidade explícita de vincular as origens do pensamento francês a uma série de filósofos judeus desde o rabino Schlomo Yitzhaki, no século 11 – a quem Lévy, em seu livro, atribui nada menos que a própria “invenção da França” –, não desmerece seu esforço de expor a duradoura guerra contra a razão, que tem no ódio aos judeus sua mais bem acabada expressão.

Afinal, quem é judeu?

A pergunta acima foi feita há exatos 60 anos por David Ben-Gurion, então primeiro-ministro de Israel e fundador do Estado Judeu. Na ocasião, a questão tinha um propósito prático: uma década depois do estabelecimento de Israel, ainda havia dúvidas sobre como registrar a nacionalidade de crianças de casamentos mistos, especialmente entre um homem judeu e uma mulher não judia, já que o judaísmo é de linhagem matrilinear – ou seja, segundo os ortodoxos, só é judeu quem nasce de mãe judia. O problema de decidir quem era judeu – e, portanto, tinha o direito automático a cidadania e residência naquele nascente Estado, graças à Lei do Retorno, firmada em 1950, dois anos após a fundação de Israel – tinha graves implicações políticas.

O filósofo franco-argelinoBernard-Henri Lévy nas ruínas da casa de Muammar Kadafi Foto: Marc Roussel/The New York Times

Quando Ben-Gurion fez a pergunta, endereçada a intelectuais judeus de diversas origens e vertentes de pensamento, a questão da identidade judaica ameaçava derrubar seu governo. Como é possível imaginar, os partidos religiosos e seculares que integravam a coalizão governista expressavam visões radicalmente distintas sobre o assunto, e qualquer decisão que o premiê viesse a tomar seria vista pela parte derrotada como argumento para abandonar a aliança.

O próprio Ben-Gurion tinha um interesse particular na querela, pois seu filho Amos mantinha um relacionamento amoroso com uma não judia, a enfermeira britânica Mary Callow. Amos casou-se com Mary a despeito da feroz objeção da mãe dele, Paula. O problema só foi resolvido quando, anos mais tarde, Mary se converteu ao judaísmo de acordo com os ritos ortodoxos. No entanto, Mary e Amos educaram os filhos segundo o judaísmo secular, e mesmo Paula Ben-Gurion, numa entrevista, admitiu que seu judaísmo pouco tinha de ortodoxo – ela mal respeitava as regras da alimentação kosher, por exemplo. A partir desse caso específico, pode-se observar que a questão sobre a identidade judaica não tem nem nunca teve uma resposta fácil, se é que tem alguma, e isso apresenta profundas consequências políticas e filosóficas para Israel e para os judeus ao redor do mundo.

Como se fosse um dos intelectuais consultados por Ben-Gurion mais de meio século atrás, o filósofo franco-argelino Bernard-Henri Lévy deu sua contribuição para esse debate espinhoso, e ela é, como quase tudo no trabalho desse autor, ousada: em seu livro O Espírito do Judaísmo, lançado em 2016 e que chegou recentemente ao Brasil, Lévy considera que o judaísmo se manifesta em sua plenitude não na forma estritamente religiosa, mas na forma de ativismo social e político, com o objetivo nada modesto de consertar o mundo. Para esse fim, em primeiro lugar, há Israel – cuja existência, sugere o filósofo judeu, é uma maneira vigorosa de enfrentar o mal que está em toda parte e que se realiza há séculos por meio do antissemitismo.

Em entrevista ao Estado, Lévy, que esteve no Brasil recentemente a convite da Confederação Israelita do Brasil (Conib) para uma série de palestras sobre seu livro, definiu o que, em sua opinião, um judeu deve fazer para honrar sua condição e sua identidade: “Defender Israel.” Para ele, a crítica ao Estado Judeu tem servido de pretexto para normalizar o antissemitismo, e isso deve ser denunciado como um atentado à humanidade.

Segundo os secularistas como Lévy, o pertencimento ao judaísmo é nacional, e não religioso. Esse conceito está em Hannah Arendt, cujo ensaio O Judeu como Pária (1944) descreve a religião judaica como um conjunto de valores aos quais se pode ou não aderir, enquanto o judaísmo, isto é, o pertencimento à nação judaica (jewishness) é tratado como uma condição existencial, portanto inescapável. Por esse motivo, a existência de Israel, conforme esse pensamento, teve o condão de redefinir o judaísmo. A vontade de integrar o povo judeu e defender as fronteiras de seu Estado Nacional, seja lá qual for a linhagem a que se pertence, seria superior ao exclusivismo religioso na definição da identidade.

Lévy sustenta que a missão dos judeus é “estudar, tanto quanto possível, os textos judaicos e o tesouro de inteligência e moral que eles contêm”, mas apenas isso não basta. É preciso também “acreditar nos valores universais e liberais, no espírito livre e na liberdade de pensamento, e lutar contra toda forma de fanatismo e violência”. Esse seria “o verdadeiro espírito do judaísmo”, disse Lévy, elevando Israel à categoria de farol moral e democrático do mundo – e isso seria tão mandatório que não dependeria nem mesmo da vontade dos judeus.

No livro, para ilustrar esse ponto, Lévy invoca a imagem de Jonas, profeta bíblico que Deus manda a Nínive, capital da Assíria, para advertir que a cidade seria destruída em 40 dias se o povo não se arrependesse. Essa passagem sugere que Deus estava disposto a converter os assírios, tradicionais e cruéis inimigos de Israel, em vez de destruí-los. Jonas, contudo, tenta escapar da missão – como se fosse possível esconder-se de Deus e renunciar a seus deveres – e acaba engolido por uma baleia. Três dias depois, ouvindo as súplicas do profeta, Deus o liberta. Agradecido, Jonas vai então a Nínive e, ainda contra sua vontade, faz o que Deus lhe havia ordenado – e o povo assírio se arrependeu. Ato contínuo, Deus poupa a vida dos assírios, para grande desgosto de Jonas, que critica a misericórdia do Senhor. Então, Deus ensina a Jonas a poderosa lição da compaixão.

Isso mostra, segundo a teologia de Lévy, que a missão dos judeus é iluminar o mundo com a sabedoria emanada da imensa tradição progressista que, segundo ele, conforma o judaísmo, mesmo que a misericórdia, em certos casos, pareça absurda, como pareceu a Jonas. Tudo para conduzir a humanidade, integralmente, ao mais próximo possível da perfeição divina.

É claro que tal conceito leva à conhecida definição dos judeus como o “povo eleito” de Deus – que muitos não judeus interpretam como arrogância. Lévy explicou na entrevista que não se trata de um privilégio, “muito menos da santificação do povo judeu enquanto tal”. Segundo Lévy, “os judeus são um tesouro, não para Deus, mas para as nações”, pois “eles preservam e muitas vezes incorporam os valores que são um tesouro para o resto do mundo”. Exemplo disso seria a responsabilidade moral em relação aos outros. “Eu tenho, como intelectual judeu, o dever de me comprometer com os que são privados de tudo, os aflitos e os perdidos”, afirmou Lévy.

Nesse sentido, lembra de certa forma o argumento do ensaísta franco-americano George Steiner, que no livro The Bluebeard’s Castle (1971) diz que a “missão” judaica no mundo é encarnar as “leis de Deus”, isto é, os códigos morais – e teria sido esse o motivo pelo qual os judeus foram implacavelmente perseguidos por Hitler, pois o ditador nazista pretendia eliminar fisicamente a consciência do mundo. 

“Eu não creio que o homem seja naturalmente bom e que isso é suficiente para superar os obstáculos rumo a uma sociedade perfeita”, disse Lévy, “mas eu creio, sim, na tendência progressista da tradição judaica, iluminista e de espírito livre.” Para Lévy, na base do judaísmo está a crença de que os textos, “todos os tipos de texto, especialmente os sagrados”, devem ser criticados e indefinidamente comentados, de modo a manter seu significado “perpetuamente aberto”. Não há, portanto, nenhum aspecto do mundo que não possa e não deva ser discutido.

Tudo isso, na visão de Lévy, obriga os judeus a serem visceralmente contrários ao populismo e ao nacionalismo, que por definição limitam os horizontes do pensamento. “Toda forma de compromisso com qualquer manifestação de populismo seria, de acordo com os valores judaicos, o equivalente ao suicídio”, afirmou Lévy. E ele acrescentou que esse risco está em toda parte, “inclusive, é claro, no Brasil”, que recentemente elegeu como presidente Jair Bolsonaro, cujo discurso nacionalista e populista empolgou uma parte considerável do Brasil – incluída aí uma parcela da comunidade judaica, talvez encantada com o engajamento de Bolsonaro a favor de Israel. “Desnecessário dizer o quanto me chocou, em seu país, a eleição de Bolsonaro”, disse, em tom de lamento.

A feroz rejeição de Lévy ao dogmatismo político e religioso em favor do intelecto é uma poderosa mensagem, especialmente nos dias que correm. Mesmo a vaidade explícita de vincular as origens do pensamento francês a uma série de filósofos judeus desde o rabino Schlomo Yitzhaki, no século 11 – a quem Lévy, em seu livro, atribui nada menos que a própria “invenção da França” –, não desmerece seu esforço de expor a duradoura guerra contra a razão, que tem no ódio aos judeus sua mais bem acabada expressão.

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