Diz o poema O Funâmbulo, do escritor e dramaturgo francês Jean Genet, que o funâmbulo não deve dançar para nós, mas para ele mesmo, já que o público não veio ver no circo uma “puta”, mas “um amante solitário que desmaia no arame. E sempre na região infernal. É esta solidão que vai nos fascinar” (tradução de Beatriz Azevedo). Em Sobre o Fio, o pensador francês Georges Didi-Huberman discute o lugar da arte e do artista usando como metáfora a figura do funâmbulo, mais especificamente o equilibrista do poema de Genet.
Segundo Didi-Huberman, a noção de obra de arte estaria na corda bamba, pois é “impossível de compreender isolada, abstrata, absolutamente”, mas, ao mesmo tempo, a obra de arte “deveria poder se apresentar como um absoluto, uma estrela isolada, o cúmulo para si”. Porém, não é só sobre esse paradoxo ou esse fio que a obra de arte se equilibra. Para o pensador francês, a obra-prima ocupa também “um lugar paradoxal em nossos espaços de visibilidade”, ou seja, “ela opera uma desterritorialização, já que levou mais longe que qualquer obra antes dela ou qualquer problema do campo artístico onde intervém, mas uma vez reconhecida sua proeza, ela se vê imediatamente reterritorializada, recolocada no próprio centro do campo onde ocupará, dali em diante, seu lugar de mestra”.
Artistas e escritores trabalham, portanto, sobre o fio, sobre a corda bamba. O pensador francês lembra de artistas e escritores que tentaram se estabilizar na corda (ou sair dela) com ideias de obras ousadas: Balzac falava na “obra-prima desconhecida”, a qual por si só explorava seus próprios limites; já Marcel Duchamp, com sua Fonte (um mictório comprado em um estabelecimento comercial), por exemplo, concebeu uma “autêntica obra-prima que não foi nem verdadeiramente ‘prima’ (no sentido de uma produção do único e do ‘original’) nem verdadeiramente ‘obra’ (no sentido de uma ‘criação’ artística consensualmente considerada)”.
A discussão introduz outros paradoxos, e o pensador francês se depara com mais este: “A partir do momento em que uma obra é vista como obra-prima, seria preciso que ela não mudasse mais, portanto, em certo sentido, seria preciso que ela parasse de viver e de assumir riscos”. Mas, se parasse de viver, a obra-prima realmente teria valor? Talvez não passasse de um monumento, o qual as pessoas não veriam mais, como sugere o escritor austríaco Robert Musil, num ensaio intitulado Monumentos. Didi-Huberman não abandona o fio e conclui que a obra-prima, de fato, “ocupa antes de tudo um lugar paradoxal”.
A obra produzida como perpétuo ensaio também ganha relevância nessa discussão. Didi-Huberman cita Man Ray, que se referia à “obra sempre em obras”, ou a obras sem “rabo nem cabeça”, “que se movem em todos os sentidos, em expansão e extensão” e que procedem de acordo com uma desterritorialização que “mesmo a etiqueta de ‘obra-prima’ nunca conseguirá imobilizar completamente”. Didi-Huberman lembra que uma “obra sempre em obras” é também capaz de decepcionar – e quando isso acontece, há a fixação de seu valor, do qual a criação sem rabo e sem cabeça tenta escapar.
O pensador francês destaca o “equívoco da cultura”, que se deve “precisamente ao fato de que a sociedade se obstina eficazmente em se apropriar do inapropriável da arte, especialmente nos planos do poder e da moral, que só consideram as coisas sob o ângulo dos meios”. O artista, como o funâmbulo, caminha sob essa luz da sociedade; nesse caso, a luz das galerias, museus, prêmios e plateia. Didi-Hiberman se pergunta então: “como tirar uma decisão soberana dessa frustração, dessa impossibilidade de olhar por estar sob ‘tutela militar’ (como se diz para explicar que você não é livre para o seu próprio bem)?”.
Ele exemplifica a afirmação acima citando a obra Queen and Country, do artista norte-americano Steve McQueen: em 2003, McQueen foi enviado ao Iraque como “artista oficial de guerra” e, por razões de segurança, não teve a liberdade que desejava para entender a situação daquele país em guerra, ficando “acuado” entre a tropa americana, como lembra o pensador francês.
A obra de McQueen ficou, assim, em gestação durante alguns anos e “o tempo – um longo processo que se estende até 2010 – terá sido o fio sobre o qual o artista foi procurando os meios para sua dança, para sua liberdade soberana, para a potência de criar as formas de um Desastre apesar de tudo”. Vale aqui lembrar que a palavra desastre está também sobre o fio, pois pode significar sucesso ou infortúnio.
*Dirce Waltrick do Amarante traduziu 'O Corvo', de Edgar Allan Poe, numa edição para crianças e com ilustrações de Sérgio Medeiros, pela editora Iluminuras