Fim do Império Britânico pode não ser ficção


Brigas familiares, rejeição ao estilo da corte e um rei pouco popular são sintomas da crise

Por André Caramuru Aubert
Atualização:

Um príncipe chorão e sua esposa são abrigados sob as asas de Oprah Winfrey e viram personagens da Netflix. Estátuas de velhos escravagistas são arrancadas de seus pedestais e lançadas ao mar. Um primeiro-ministro de origem indiana assume o poder. Morre a derradeira rainha nascida nos gloriosos tempos imperiais, e o novo rei precisará ficar de olho, o tempo todo, em pesquisas de popularidade. Junte tudo isso e a conclusão será a de que o ano que terminou pode ter sido o capítulo final da história do Império Britânico. Império que, há não tanto tempo assim, foi o maior que já existiu e, por cerca de 400 anos, dominou o mundo. No seu apogeu, antes da 1.ª Guerra Mundial, o império onde o sol nunca se punha, além de dominar todos os oceanos, controlava mais de um quarto do planeta.

Deve-se em boa parte ao Império os fatos de o futebol ser o esporte mais popular do mundo e o inglês ser a atual língua franca da humanidade. Não poucos britânicos amam celebrar os legados do passado imperial, começando por argumentar que parte de suas antigas possessões, como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia serem nações liberais, prósperas e democráticas (não se fala muito, convenientemente, em domínios como Bangladesh ou Zimbabwe). Construiu-se a imagem de um império benevolente com os povos que o integravam, que os britânicos, em sua maioria, celebram. Uma pesquisa de 2014 revelou que para 59% dos entrevistados o Império “era motivo de orgulho,” e mais de 1/3 gostariam que ele ainda existisse.

A Família Real inglesa em tempos de conciliação, antes do rompimento do príncipe Harry com a realeza (à direita, ao lado do irmão com quem brigou)  Foto: Foto AP/Matt Dunham
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Para quem vivesse na Europa nos tempos em que Cabral desembarcou na Bahia, pareceria francamente improvável que a Inglaterra pudesse vir a ser, no futuro, a maior potência do planeta. Aquele país insular era relativamente periférico na Europa, na qual a grande rivalidade se dava entre França e Espanha. Quando atravessavam o Atlântico, os navegadores ingleses iam praticar pirataria contra espanhóis e portugueses, e não colonizar novas terras. Mas, já a partir de meados do século 17, a ascensão britânica e de seu recém-criado império foram nada menos que meteóricas.

O Império Britânico não foi uma unidade monolítica como o romano, num passado mais distante, ou o espanhol, mais recente. Havia diferentes graus de autonomia regional – e mesmo a Índia, durante um bom tempo, foi governada não pela Coroa, mas por uma empresa, a Companhia das Índias Orientais (mergulhada em escândalos de corrupção e depois de uma grande rebelião, a Companhia foi extinta em 1858, quando Londres assumiu diretamente a administração). Ao mesmo tempo, pode-se separar o Império em dois momentos distintos: o primeiro, mais Atlântico, foi centrado no tráfico de escravos, nas treze colônias americanas e nas plantações de açúcar do Caribe; o segundo, depois da independência dos Estados Unidos e da abolição do tráfico, voltou-se mais para a África, a Ásia e a Oceania.

O príncipe Harry, que acaba de ter sua biografia lançada, e sua mulher Meghan Foto: Dylan Marrtineza/Reuters)
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O Reino Unido era um país relativamente pequeno, de modo que não havia gente suficiente para controlar um império tão vasto sem a cooptação das elites colonizadas. Na Índia, os privilegiados eram principalmente os Sikhs; na Nigéria, os Ibos. Ou seja, a regra era dividir para governar. E isso não se deu apenas para controlar as colônias, pois soldados indianos, sul-africanos e nigerianos, entre outros, foram largamente empregados em batalhas em todos os recantos do Império. Na 1.ª Guerra Mundial, nada menos do que três milhões de militares do Império foram enviados para lutar e morrer na Europa. Além disso, a Revolução Industrial criou recursos decisivos, como navios a vapor, trens, metralhadoras e, talvez o mais importante, a primeira rede telegráfica global, que fez com que passasse de meses, para horas, o tempo para a troca de mensagens entre Londres e qualquer ponto estratégico do Império.

Se, no século 20, Winston Churchill, com sua História dos Povos de Língua Inglesa, foi a grande voz em defesa das realizações britânicas, hoje em dia o mais famoso entusiasta dos legados positivos do Império é o historiador da nova direita Niall Ferguson. O título de seu livro sobre o tema já diz tudo: Império – Como os Britânicos Construíram o Mundo Moderno (2003). Ferguson é um pensador erudito e polêmico, que por vezes defende causas humanitárias, mas que não se acanhou em apoiar a invasão do Iraque e Donald Trump. Embora admita inúmeros “pecados” do Império, começando sua longa lista pelo tráfico negreiro, Ferguson enfatiza os aspectos positivos, como a disseminação da democracia, a defesa do livre comércio e obras de infraestrutura, que teriam contribuído enormemente para o progresso de ex-colônias e do planeta em geral. Ele usa os traços negativos de impérios anteriores (espanhol e português, arcaicos, inquisitoriais e mercantilistas) e dos finais (como o belga e o japonês, notoriamente mais cruéis) para valorizar o britânico (inclusivo e defensor de liberdades tanto econômicas quanto religiosas). Ainda que exista alguma verdade aí, do ponto de vista do escravizado, porém, qual a diferença entre ser explorado por um ou por outro?

Como seria de se esperar, nem todos os historiadores embarcam na benevolência de Ferguson. Um dos casos mais recentes é o de Caroline Elkins, de Harvard, em Legacy of Violence – a History of the British Empire (Legado de Violência – uma História do Império Britânico, 2022). Elkins lembra, com ironia, a famosa frase de Rudyard Kipling (o autor de Mowgli), que enfatizava o fardo do homem branco em “civilizar” o mundo. Ora, tal pretensão era absurda. China e Índia, por exemplo, já eram civilizações sofisticadas quando a Inglaterra não passava de uma distante e chuvosa província do Império Romano. Além disso, Elkins argumenta que é difícil compartilhar de algum entusiasmo com os supostos legados imperiais, quando se sabe que o capital que alimentou as inovações disseminadas mundo afora, pelos ingleses, teve origem no tráfico de escravos.

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O escritor Rudyard Kipling (1865-1936), autor do popular 'Mowgly' Foto: Arquivo Estadão

É considerável o número de empresas e instituições britânicas que se beneficiaram do tráfico, entre as quais o Banco da Inglaterra, o Lloyds Bank, o Banco da Escócia, a Pricewaterhouse Coopers, o Museu Britânico e as universidades de Cambridge e Oxford. Principal ponto de partida de navios negreiros, Liverpool, a cidade dos Beatles, “engordou na banha do tráfico”. E, quando o Império, em 1833, finalmente aboliu a escravidão, os antigos proprietários de escravos foram indenizados pelo governo. Inacreditavelmente, alguns dos pagamentos parcelados atravessaram os séculos e só terminaram em 2015.

Entusiastas do Império Britânico adoram enfatizar o papel do país no combate à escravidão. Mas preferem ignorar, como lembra o historiador Padraic Scanlan em Slave Empire: How Slavery Built Modern Britain (Império Escravista: como a Escravidão Moldou a Grã-Bretanha, 2020), que, dos quatrocentos anos que durou o Império, a primeira metade foi alicerçada no tráfico; enquanto que, na segunda, foi o capital anteriormente acumulado que alimentou a Revolução Industrial e conquistas na Ásia e na África, além do fato de que o país continuou a se beneficiar de trabalho barato de súditos (europeus ou não), e da persistência da escravidão em outros países, ao importar algodão do sul dos Estados Unidos ou café do Brasil.

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Em Empireland – How Imperialism Has Shaped Modern Britain (Império – Como foi Formada a Grã-Bretanha, 2021), livro que se tornou um instantâneo best-seller, Sathnam Sanghera, jornalista e documentarista britânico de família Sikh, parte de sua própria experiência de vida. Sanghera debate a identidade nacional, a começar pelo fato de falar a língua sem sotaque e se sentir totalmente britânico, mas de frequentemente ser tratado como estrangeiro. Ele lembra que o tradicional chá inglês veio da Índia e, analisando os legados do Império, reconhece os aspectos positivos, como o fato de Londres ser hoje uma das cidades mais cosmopolitas e multiétnicas do mundo – mas não se furta a enfiar o dedo nas feridas, que não são poucas. Exemplos: a imposição do ópio aos chineses, a mão pesada na repressão a qualquer rebelião (como na Jamaica, em 1865), a exploração cruel de mão de obra em ambientes insalubres (como nas minas de diamante da África do Sul), o tratamento dispensado a povos originários (como com os aborígenes australianos) e a trágica gestão de crises alimentares em possessões como Índia e Irlanda. Nesta última, apenas uma das crises, a Grande Fome de 1845-52, matou mais de um milhão de pessoas.

Terminada a 2.ª Guerra, enquanto o Império se desfazia, ecos de antigas grandezas se cristalizavam no imaginário britânico. No Reino Unido, quando se sepultam, casam ou coroam monarcas, a imagem transmitida para o mundo, com audiências sempre gigantescas, é de sepultamentos, casamentos ou coroações de imperadores. Quem se interessa por cerimônias similares, por exemplo, na Dinamarca, que tem uma monarquia mais antiga?

A grandiosidade cerimonial britânica cresceu na proporção inversa às perdas de poder da realeza e do país. No apogeu do Império, Vitória tinha as opiniões levadas em conta pelo governo, ao passo que Elizabeth II sequer era consultada sobre os discursos que lia. E Charles III, agora, além de refém de pesquisas de opinião e dos tabloides, precisará decidir se repetirá o papel neutro da mãe ou se, militante de causas ambientais quando era herdeiro, procurará, sendo rei, ter alguma voz.

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Quanto aos legados do Império, é inegável que questões não resolvidas foram deixadas para trás, como, por exemplo, a desastrada configuração territorial africana e o conflito palestino-israelense. Assim, se é verdade que a maioria dos britânicos se orgulha do passado imperial, os críticos têm muito bons argumentos. Se, para o bem ou para o mal, o Império onde o sol nunca se punha teve um peso gigantesco na formação do mundo em que vivemos, ele não existe mais. l

Um príncipe chorão e sua esposa são abrigados sob as asas de Oprah Winfrey e viram personagens da Netflix. Estátuas de velhos escravagistas são arrancadas de seus pedestais e lançadas ao mar. Um primeiro-ministro de origem indiana assume o poder. Morre a derradeira rainha nascida nos gloriosos tempos imperiais, e o novo rei precisará ficar de olho, o tempo todo, em pesquisas de popularidade. Junte tudo isso e a conclusão será a de que o ano que terminou pode ter sido o capítulo final da história do Império Britânico. Império que, há não tanto tempo assim, foi o maior que já existiu e, por cerca de 400 anos, dominou o mundo. No seu apogeu, antes da 1.ª Guerra Mundial, o império onde o sol nunca se punha, além de dominar todos os oceanos, controlava mais de um quarto do planeta.

Deve-se em boa parte ao Império os fatos de o futebol ser o esporte mais popular do mundo e o inglês ser a atual língua franca da humanidade. Não poucos britânicos amam celebrar os legados do passado imperial, começando por argumentar que parte de suas antigas possessões, como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia serem nações liberais, prósperas e democráticas (não se fala muito, convenientemente, em domínios como Bangladesh ou Zimbabwe). Construiu-se a imagem de um império benevolente com os povos que o integravam, que os britânicos, em sua maioria, celebram. Uma pesquisa de 2014 revelou que para 59% dos entrevistados o Império “era motivo de orgulho,” e mais de 1/3 gostariam que ele ainda existisse.

A Família Real inglesa em tempos de conciliação, antes do rompimento do príncipe Harry com a realeza (à direita, ao lado do irmão com quem brigou)  Foto: Foto AP/Matt Dunham

Para quem vivesse na Europa nos tempos em que Cabral desembarcou na Bahia, pareceria francamente improvável que a Inglaterra pudesse vir a ser, no futuro, a maior potência do planeta. Aquele país insular era relativamente periférico na Europa, na qual a grande rivalidade se dava entre França e Espanha. Quando atravessavam o Atlântico, os navegadores ingleses iam praticar pirataria contra espanhóis e portugueses, e não colonizar novas terras. Mas, já a partir de meados do século 17, a ascensão britânica e de seu recém-criado império foram nada menos que meteóricas.

O Império Britânico não foi uma unidade monolítica como o romano, num passado mais distante, ou o espanhol, mais recente. Havia diferentes graus de autonomia regional – e mesmo a Índia, durante um bom tempo, foi governada não pela Coroa, mas por uma empresa, a Companhia das Índias Orientais (mergulhada em escândalos de corrupção e depois de uma grande rebelião, a Companhia foi extinta em 1858, quando Londres assumiu diretamente a administração). Ao mesmo tempo, pode-se separar o Império em dois momentos distintos: o primeiro, mais Atlântico, foi centrado no tráfico de escravos, nas treze colônias americanas e nas plantações de açúcar do Caribe; o segundo, depois da independência dos Estados Unidos e da abolição do tráfico, voltou-se mais para a África, a Ásia e a Oceania.

O príncipe Harry, que acaba de ter sua biografia lançada, e sua mulher Meghan Foto: Dylan Marrtineza/Reuters)

O Reino Unido era um país relativamente pequeno, de modo que não havia gente suficiente para controlar um império tão vasto sem a cooptação das elites colonizadas. Na Índia, os privilegiados eram principalmente os Sikhs; na Nigéria, os Ibos. Ou seja, a regra era dividir para governar. E isso não se deu apenas para controlar as colônias, pois soldados indianos, sul-africanos e nigerianos, entre outros, foram largamente empregados em batalhas em todos os recantos do Império. Na 1.ª Guerra Mundial, nada menos do que três milhões de militares do Império foram enviados para lutar e morrer na Europa. Além disso, a Revolução Industrial criou recursos decisivos, como navios a vapor, trens, metralhadoras e, talvez o mais importante, a primeira rede telegráfica global, que fez com que passasse de meses, para horas, o tempo para a troca de mensagens entre Londres e qualquer ponto estratégico do Império.

Se, no século 20, Winston Churchill, com sua História dos Povos de Língua Inglesa, foi a grande voz em defesa das realizações britânicas, hoje em dia o mais famoso entusiasta dos legados positivos do Império é o historiador da nova direita Niall Ferguson. O título de seu livro sobre o tema já diz tudo: Império – Como os Britânicos Construíram o Mundo Moderno (2003). Ferguson é um pensador erudito e polêmico, que por vezes defende causas humanitárias, mas que não se acanhou em apoiar a invasão do Iraque e Donald Trump. Embora admita inúmeros “pecados” do Império, começando sua longa lista pelo tráfico negreiro, Ferguson enfatiza os aspectos positivos, como a disseminação da democracia, a defesa do livre comércio e obras de infraestrutura, que teriam contribuído enormemente para o progresso de ex-colônias e do planeta em geral. Ele usa os traços negativos de impérios anteriores (espanhol e português, arcaicos, inquisitoriais e mercantilistas) e dos finais (como o belga e o japonês, notoriamente mais cruéis) para valorizar o britânico (inclusivo e defensor de liberdades tanto econômicas quanto religiosas). Ainda que exista alguma verdade aí, do ponto de vista do escravizado, porém, qual a diferença entre ser explorado por um ou por outro?

Como seria de se esperar, nem todos os historiadores embarcam na benevolência de Ferguson. Um dos casos mais recentes é o de Caroline Elkins, de Harvard, em Legacy of Violence – a History of the British Empire (Legado de Violência – uma História do Império Britânico, 2022). Elkins lembra, com ironia, a famosa frase de Rudyard Kipling (o autor de Mowgli), que enfatizava o fardo do homem branco em “civilizar” o mundo. Ora, tal pretensão era absurda. China e Índia, por exemplo, já eram civilizações sofisticadas quando a Inglaterra não passava de uma distante e chuvosa província do Império Romano. Além disso, Elkins argumenta que é difícil compartilhar de algum entusiasmo com os supostos legados imperiais, quando se sabe que o capital que alimentou as inovações disseminadas mundo afora, pelos ingleses, teve origem no tráfico de escravos.

O escritor Rudyard Kipling (1865-1936), autor do popular 'Mowgly' Foto: Arquivo Estadão

É considerável o número de empresas e instituições britânicas que se beneficiaram do tráfico, entre as quais o Banco da Inglaterra, o Lloyds Bank, o Banco da Escócia, a Pricewaterhouse Coopers, o Museu Britânico e as universidades de Cambridge e Oxford. Principal ponto de partida de navios negreiros, Liverpool, a cidade dos Beatles, “engordou na banha do tráfico”. E, quando o Império, em 1833, finalmente aboliu a escravidão, os antigos proprietários de escravos foram indenizados pelo governo. Inacreditavelmente, alguns dos pagamentos parcelados atravessaram os séculos e só terminaram em 2015.

Entusiastas do Império Britânico adoram enfatizar o papel do país no combate à escravidão. Mas preferem ignorar, como lembra o historiador Padraic Scanlan em Slave Empire: How Slavery Built Modern Britain (Império Escravista: como a Escravidão Moldou a Grã-Bretanha, 2020), que, dos quatrocentos anos que durou o Império, a primeira metade foi alicerçada no tráfico; enquanto que, na segunda, foi o capital anteriormente acumulado que alimentou a Revolução Industrial e conquistas na Ásia e na África, além do fato de que o país continuou a se beneficiar de trabalho barato de súditos (europeus ou não), e da persistência da escravidão em outros países, ao importar algodão do sul dos Estados Unidos ou café do Brasil.

Em Empireland – How Imperialism Has Shaped Modern Britain (Império – Como foi Formada a Grã-Bretanha, 2021), livro que se tornou um instantâneo best-seller, Sathnam Sanghera, jornalista e documentarista britânico de família Sikh, parte de sua própria experiência de vida. Sanghera debate a identidade nacional, a começar pelo fato de falar a língua sem sotaque e se sentir totalmente britânico, mas de frequentemente ser tratado como estrangeiro. Ele lembra que o tradicional chá inglês veio da Índia e, analisando os legados do Império, reconhece os aspectos positivos, como o fato de Londres ser hoje uma das cidades mais cosmopolitas e multiétnicas do mundo – mas não se furta a enfiar o dedo nas feridas, que não são poucas. Exemplos: a imposição do ópio aos chineses, a mão pesada na repressão a qualquer rebelião (como na Jamaica, em 1865), a exploração cruel de mão de obra em ambientes insalubres (como nas minas de diamante da África do Sul), o tratamento dispensado a povos originários (como com os aborígenes australianos) e a trágica gestão de crises alimentares em possessões como Índia e Irlanda. Nesta última, apenas uma das crises, a Grande Fome de 1845-52, matou mais de um milhão de pessoas.

Terminada a 2.ª Guerra, enquanto o Império se desfazia, ecos de antigas grandezas se cristalizavam no imaginário britânico. No Reino Unido, quando se sepultam, casam ou coroam monarcas, a imagem transmitida para o mundo, com audiências sempre gigantescas, é de sepultamentos, casamentos ou coroações de imperadores. Quem se interessa por cerimônias similares, por exemplo, na Dinamarca, que tem uma monarquia mais antiga?

A grandiosidade cerimonial britânica cresceu na proporção inversa às perdas de poder da realeza e do país. No apogeu do Império, Vitória tinha as opiniões levadas em conta pelo governo, ao passo que Elizabeth II sequer era consultada sobre os discursos que lia. E Charles III, agora, além de refém de pesquisas de opinião e dos tabloides, precisará decidir se repetirá o papel neutro da mãe ou se, militante de causas ambientais quando era herdeiro, procurará, sendo rei, ter alguma voz.

Quanto aos legados do Império, é inegável que questões não resolvidas foram deixadas para trás, como, por exemplo, a desastrada configuração territorial africana e o conflito palestino-israelense. Assim, se é verdade que a maioria dos britânicos se orgulha do passado imperial, os críticos têm muito bons argumentos. Se, para o bem ou para o mal, o Império onde o sol nunca se punha teve um peso gigantesco na formação do mundo em que vivemos, ele não existe mais. l

Um príncipe chorão e sua esposa são abrigados sob as asas de Oprah Winfrey e viram personagens da Netflix. Estátuas de velhos escravagistas são arrancadas de seus pedestais e lançadas ao mar. Um primeiro-ministro de origem indiana assume o poder. Morre a derradeira rainha nascida nos gloriosos tempos imperiais, e o novo rei precisará ficar de olho, o tempo todo, em pesquisas de popularidade. Junte tudo isso e a conclusão será a de que o ano que terminou pode ter sido o capítulo final da história do Império Britânico. Império que, há não tanto tempo assim, foi o maior que já existiu e, por cerca de 400 anos, dominou o mundo. No seu apogeu, antes da 1.ª Guerra Mundial, o império onde o sol nunca se punha, além de dominar todos os oceanos, controlava mais de um quarto do planeta.

Deve-se em boa parte ao Império os fatos de o futebol ser o esporte mais popular do mundo e o inglês ser a atual língua franca da humanidade. Não poucos britânicos amam celebrar os legados do passado imperial, começando por argumentar que parte de suas antigas possessões, como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia serem nações liberais, prósperas e democráticas (não se fala muito, convenientemente, em domínios como Bangladesh ou Zimbabwe). Construiu-se a imagem de um império benevolente com os povos que o integravam, que os britânicos, em sua maioria, celebram. Uma pesquisa de 2014 revelou que para 59% dos entrevistados o Império “era motivo de orgulho,” e mais de 1/3 gostariam que ele ainda existisse.

A Família Real inglesa em tempos de conciliação, antes do rompimento do príncipe Harry com a realeza (à direita, ao lado do irmão com quem brigou)  Foto: Foto AP/Matt Dunham

Para quem vivesse na Europa nos tempos em que Cabral desembarcou na Bahia, pareceria francamente improvável que a Inglaterra pudesse vir a ser, no futuro, a maior potência do planeta. Aquele país insular era relativamente periférico na Europa, na qual a grande rivalidade se dava entre França e Espanha. Quando atravessavam o Atlântico, os navegadores ingleses iam praticar pirataria contra espanhóis e portugueses, e não colonizar novas terras. Mas, já a partir de meados do século 17, a ascensão britânica e de seu recém-criado império foram nada menos que meteóricas.

O Império Britânico não foi uma unidade monolítica como o romano, num passado mais distante, ou o espanhol, mais recente. Havia diferentes graus de autonomia regional – e mesmo a Índia, durante um bom tempo, foi governada não pela Coroa, mas por uma empresa, a Companhia das Índias Orientais (mergulhada em escândalos de corrupção e depois de uma grande rebelião, a Companhia foi extinta em 1858, quando Londres assumiu diretamente a administração). Ao mesmo tempo, pode-se separar o Império em dois momentos distintos: o primeiro, mais Atlântico, foi centrado no tráfico de escravos, nas treze colônias americanas e nas plantações de açúcar do Caribe; o segundo, depois da independência dos Estados Unidos e da abolição do tráfico, voltou-se mais para a África, a Ásia e a Oceania.

O príncipe Harry, que acaba de ter sua biografia lançada, e sua mulher Meghan Foto: Dylan Marrtineza/Reuters)

O Reino Unido era um país relativamente pequeno, de modo que não havia gente suficiente para controlar um império tão vasto sem a cooptação das elites colonizadas. Na Índia, os privilegiados eram principalmente os Sikhs; na Nigéria, os Ibos. Ou seja, a regra era dividir para governar. E isso não se deu apenas para controlar as colônias, pois soldados indianos, sul-africanos e nigerianos, entre outros, foram largamente empregados em batalhas em todos os recantos do Império. Na 1.ª Guerra Mundial, nada menos do que três milhões de militares do Império foram enviados para lutar e morrer na Europa. Além disso, a Revolução Industrial criou recursos decisivos, como navios a vapor, trens, metralhadoras e, talvez o mais importante, a primeira rede telegráfica global, que fez com que passasse de meses, para horas, o tempo para a troca de mensagens entre Londres e qualquer ponto estratégico do Império.

Se, no século 20, Winston Churchill, com sua História dos Povos de Língua Inglesa, foi a grande voz em defesa das realizações britânicas, hoje em dia o mais famoso entusiasta dos legados positivos do Império é o historiador da nova direita Niall Ferguson. O título de seu livro sobre o tema já diz tudo: Império – Como os Britânicos Construíram o Mundo Moderno (2003). Ferguson é um pensador erudito e polêmico, que por vezes defende causas humanitárias, mas que não se acanhou em apoiar a invasão do Iraque e Donald Trump. Embora admita inúmeros “pecados” do Império, começando sua longa lista pelo tráfico negreiro, Ferguson enfatiza os aspectos positivos, como a disseminação da democracia, a defesa do livre comércio e obras de infraestrutura, que teriam contribuído enormemente para o progresso de ex-colônias e do planeta em geral. Ele usa os traços negativos de impérios anteriores (espanhol e português, arcaicos, inquisitoriais e mercantilistas) e dos finais (como o belga e o japonês, notoriamente mais cruéis) para valorizar o britânico (inclusivo e defensor de liberdades tanto econômicas quanto religiosas). Ainda que exista alguma verdade aí, do ponto de vista do escravizado, porém, qual a diferença entre ser explorado por um ou por outro?

Como seria de se esperar, nem todos os historiadores embarcam na benevolência de Ferguson. Um dos casos mais recentes é o de Caroline Elkins, de Harvard, em Legacy of Violence – a History of the British Empire (Legado de Violência – uma História do Império Britânico, 2022). Elkins lembra, com ironia, a famosa frase de Rudyard Kipling (o autor de Mowgli), que enfatizava o fardo do homem branco em “civilizar” o mundo. Ora, tal pretensão era absurda. China e Índia, por exemplo, já eram civilizações sofisticadas quando a Inglaterra não passava de uma distante e chuvosa província do Império Romano. Além disso, Elkins argumenta que é difícil compartilhar de algum entusiasmo com os supostos legados imperiais, quando se sabe que o capital que alimentou as inovações disseminadas mundo afora, pelos ingleses, teve origem no tráfico de escravos.

O escritor Rudyard Kipling (1865-1936), autor do popular 'Mowgly' Foto: Arquivo Estadão

É considerável o número de empresas e instituições britânicas que se beneficiaram do tráfico, entre as quais o Banco da Inglaterra, o Lloyds Bank, o Banco da Escócia, a Pricewaterhouse Coopers, o Museu Britânico e as universidades de Cambridge e Oxford. Principal ponto de partida de navios negreiros, Liverpool, a cidade dos Beatles, “engordou na banha do tráfico”. E, quando o Império, em 1833, finalmente aboliu a escravidão, os antigos proprietários de escravos foram indenizados pelo governo. Inacreditavelmente, alguns dos pagamentos parcelados atravessaram os séculos e só terminaram em 2015.

Entusiastas do Império Britânico adoram enfatizar o papel do país no combate à escravidão. Mas preferem ignorar, como lembra o historiador Padraic Scanlan em Slave Empire: How Slavery Built Modern Britain (Império Escravista: como a Escravidão Moldou a Grã-Bretanha, 2020), que, dos quatrocentos anos que durou o Império, a primeira metade foi alicerçada no tráfico; enquanto que, na segunda, foi o capital anteriormente acumulado que alimentou a Revolução Industrial e conquistas na Ásia e na África, além do fato de que o país continuou a se beneficiar de trabalho barato de súditos (europeus ou não), e da persistência da escravidão em outros países, ao importar algodão do sul dos Estados Unidos ou café do Brasil.

Em Empireland – How Imperialism Has Shaped Modern Britain (Império – Como foi Formada a Grã-Bretanha, 2021), livro que se tornou um instantâneo best-seller, Sathnam Sanghera, jornalista e documentarista britânico de família Sikh, parte de sua própria experiência de vida. Sanghera debate a identidade nacional, a começar pelo fato de falar a língua sem sotaque e se sentir totalmente britânico, mas de frequentemente ser tratado como estrangeiro. Ele lembra que o tradicional chá inglês veio da Índia e, analisando os legados do Império, reconhece os aspectos positivos, como o fato de Londres ser hoje uma das cidades mais cosmopolitas e multiétnicas do mundo – mas não se furta a enfiar o dedo nas feridas, que não são poucas. Exemplos: a imposição do ópio aos chineses, a mão pesada na repressão a qualquer rebelião (como na Jamaica, em 1865), a exploração cruel de mão de obra em ambientes insalubres (como nas minas de diamante da África do Sul), o tratamento dispensado a povos originários (como com os aborígenes australianos) e a trágica gestão de crises alimentares em possessões como Índia e Irlanda. Nesta última, apenas uma das crises, a Grande Fome de 1845-52, matou mais de um milhão de pessoas.

Terminada a 2.ª Guerra, enquanto o Império se desfazia, ecos de antigas grandezas se cristalizavam no imaginário britânico. No Reino Unido, quando se sepultam, casam ou coroam monarcas, a imagem transmitida para o mundo, com audiências sempre gigantescas, é de sepultamentos, casamentos ou coroações de imperadores. Quem se interessa por cerimônias similares, por exemplo, na Dinamarca, que tem uma monarquia mais antiga?

A grandiosidade cerimonial britânica cresceu na proporção inversa às perdas de poder da realeza e do país. No apogeu do Império, Vitória tinha as opiniões levadas em conta pelo governo, ao passo que Elizabeth II sequer era consultada sobre os discursos que lia. E Charles III, agora, além de refém de pesquisas de opinião e dos tabloides, precisará decidir se repetirá o papel neutro da mãe ou se, militante de causas ambientais quando era herdeiro, procurará, sendo rei, ter alguma voz.

Quanto aos legados do Império, é inegável que questões não resolvidas foram deixadas para trás, como, por exemplo, a desastrada configuração territorial africana e o conflito palestino-israelense. Assim, se é verdade que a maioria dos britânicos se orgulha do passado imperial, os críticos têm muito bons argumentos. Se, para o bem ou para o mal, o Império onde o sol nunca se punha teve um peso gigantesco na formação do mundo em que vivemos, ele não existe mais. l

Um príncipe chorão e sua esposa são abrigados sob as asas de Oprah Winfrey e viram personagens da Netflix. Estátuas de velhos escravagistas são arrancadas de seus pedestais e lançadas ao mar. Um primeiro-ministro de origem indiana assume o poder. Morre a derradeira rainha nascida nos gloriosos tempos imperiais, e o novo rei precisará ficar de olho, o tempo todo, em pesquisas de popularidade. Junte tudo isso e a conclusão será a de que o ano que terminou pode ter sido o capítulo final da história do Império Britânico. Império que, há não tanto tempo assim, foi o maior que já existiu e, por cerca de 400 anos, dominou o mundo. No seu apogeu, antes da 1.ª Guerra Mundial, o império onde o sol nunca se punha, além de dominar todos os oceanos, controlava mais de um quarto do planeta.

Deve-se em boa parte ao Império os fatos de o futebol ser o esporte mais popular do mundo e o inglês ser a atual língua franca da humanidade. Não poucos britânicos amam celebrar os legados do passado imperial, começando por argumentar que parte de suas antigas possessões, como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia serem nações liberais, prósperas e democráticas (não se fala muito, convenientemente, em domínios como Bangladesh ou Zimbabwe). Construiu-se a imagem de um império benevolente com os povos que o integravam, que os britânicos, em sua maioria, celebram. Uma pesquisa de 2014 revelou que para 59% dos entrevistados o Império “era motivo de orgulho,” e mais de 1/3 gostariam que ele ainda existisse.

A Família Real inglesa em tempos de conciliação, antes do rompimento do príncipe Harry com a realeza (à direita, ao lado do irmão com quem brigou)  Foto: Foto AP/Matt Dunham

Para quem vivesse na Europa nos tempos em que Cabral desembarcou na Bahia, pareceria francamente improvável que a Inglaterra pudesse vir a ser, no futuro, a maior potência do planeta. Aquele país insular era relativamente periférico na Europa, na qual a grande rivalidade se dava entre França e Espanha. Quando atravessavam o Atlântico, os navegadores ingleses iam praticar pirataria contra espanhóis e portugueses, e não colonizar novas terras. Mas, já a partir de meados do século 17, a ascensão britânica e de seu recém-criado império foram nada menos que meteóricas.

O Império Britânico não foi uma unidade monolítica como o romano, num passado mais distante, ou o espanhol, mais recente. Havia diferentes graus de autonomia regional – e mesmo a Índia, durante um bom tempo, foi governada não pela Coroa, mas por uma empresa, a Companhia das Índias Orientais (mergulhada em escândalos de corrupção e depois de uma grande rebelião, a Companhia foi extinta em 1858, quando Londres assumiu diretamente a administração). Ao mesmo tempo, pode-se separar o Império em dois momentos distintos: o primeiro, mais Atlântico, foi centrado no tráfico de escravos, nas treze colônias americanas e nas plantações de açúcar do Caribe; o segundo, depois da independência dos Estados Unidos e da abolição do tráfico, voltou-se mais para a África, a Ásia e a Oceania.

O príncipe Harry, que acaba de ter sua biografia lançada, e sua mulher Meghan Foto: Dylan Marrtineza/Reuters)

O Reino Unido era um país relativamente pequeno, de modo que não havia gente suficiente para controlar um império tão vasto sem a cooptação das elites colonizadas. Na Índia, os privilegiados eram principalmente os Sikhs; na Nigéria, os Ibos. Ou seja, a regra era dividir para governar. E isso não se deu apenas para controlar as colônias, pois soldados indianos, sul-africanos e nigerianos, entre outros, foram largamente empregados em batalhas em todos os recantos do Império. Na 1.ª Guerra Mundial, nada menos do que três milhões de militares do Império foram enviados para lutar e morrer na Europa. Além disso, a Revolução Industrial criou recursos decisivos, como navios a vapor, trens, metralhadoras e, talvez o mais importante, a primeira rede telegráfica global, que fez com que passasse de meses, para horas, o tempo para a troca de mensagens entre Londres e qualquer ponto estratégico do Império.

Se, no século 20, Winston Churchill, com sua História dos Povos de Língua Inglesa, foi a grande voz em defesa das realizações britânicas, hoje em dia o mais famoso entusiasta dos legados positivos do Império é o historiador da nova direita Niall Ferguson. O título de seu livro sobre o tema já diz tudo: Império – Como os Britânicos Construíram o Mundo Moderno (2003). Ferguson é um pensador erudito e polêmico, que por vezes defende causas humanitárias, mas que não se acanhou em apoiar a invasão do Iraque e Donald Trump. Embora admita inúmeros “pecados” do Império, começando sua longa lista pelo tráfico negreiro, Ferguson enfatiza os aspectos positivos, como a disseminação da democracia, a defesa do livre comércio e obras de infraestrutura, que teriam contribuído enormemente para o progresso de ex-colônias e do planeta em geral. Ele usa os traços negativos de impérios anteriores (espanhol e português, arcaicos, inquisitoriais e mercantilistas) e dos finais (como o belga e o japonês, notoriamente mais cruéis) para valorizar o britânico (inclusivo e defensor de liberdades tanto econômicas quanto religiosas). Ainda que exista alguma verdade aí, do ponto de vista do escravizado, porém, qual a diferença entre ser explorado por um ou por outro?

Como seria de se esperar, nem todos os historiadores embarcam na benevolência de Ferguson. Um dos casos mais recentes é o de Caroline Elkins, de Harvard, em Legacy of Violence – a History of the British Empire (Legado de Violência – uma História do Império Britânico, 2022). Elkins lembra, com ironia, a famosa frase de Rudyard Kipling (o autor de Mowgli), que enfatizava o fardo do homem branco em “civilizar” o mundo. Ora, tal pretensão era absurda. China e Índia, por exemplo, já eram civilizações sofisticadas quando a Inglaterra não passava de uma distante e chuvosa província do Império Romano. Além disso, Elkins argumenta que é difícil compartilhar de algum entusiasmo com os supostos legados imperiais, quando se sabe que o capital que alimentou as inovações disseminadas mundo afora, pelos ingleses, teve origem no tráfico de escravos.

O escritor Rudyard Kipling (1865-1936), autor do popular 'Mowgly' Foto: Arquivo Estadão

É considerável o número de empresas e instituições britânicas que se beneficiaram do tráfico, entre as quais o Banco da Inglaterra, o Lloyds Bank, o Banco da Escócia, a Pricewaterhouse Coopers, o Museu Britânico e as universidades de Cambridge e Oxford. Principal ponto de partida de navios negreiros, Liverpool, a cidade dos Beatles, “engordou na banha do tráfico”. E, quando o Império, em 1833, finalmente aboliu a escravidão, os antigos proprietários de escravos foram indenizados pelo governo. Inacreditavelmente, alguns dos pagamentos parcelados atravessaram os séculos e só terminaram em 2015.

Entusiastas do Império Britânico adoram enfatizar o papel do país no combate à escravidão. Mas preferem ignorar, como lembra o historiador Padraic Scanlan em Slave Empire: How Slavery Built Modern Britain (Império Escravista: como a Escravidão Moldou a Grã-Bretanha, 2020), que, dos quatrocentos anos que durou o Império, a primeira metade foi alicerçada no tráfico; enquanto que, na segunda, foi o capital anteriormente acumulado que alimentou a Revolução Industrial e conquistas na Ásia e na África, além do fato de que o país continuou a se beneficiar de trabalho barato de súditos (europeus ou não), e da persistência da escravidão em outros países, ao importar algodão do sul dos Estados Unidos ou café do Brasil.

Em Empireland – How Imperialism Has Shaped Modern Britain (Império – Como foi Formada a Grã-Bretanha, 2021), livro que se tornou um instantâneo best-seller, Sathnam Sanghera, jornalista e documentarista britânico de família Sikh, parte de sua própria experiência de vida. Sanghera debate a identidade nacional, a começar pelo fato de falar a língua sem sotaque e se sentir totalmente britânico, mas de frequentemente ser tratado como estrangeiro. Ele lembra que o tradicional chá inglês veio da Índia e, analisando os legados do Império, reconhece os aspectos positivos, como o fato de Londres ser hoje uma das cidades mais cosmopolitas e multiétnicas do mundo – mas não se furta a enfiar o dedo nas feridas, que não são poucas. Exemplos: a imposição do ópio aos chineses, a mão pesada na repressão a qualquer rebelião (como na Jamaica, em 1865), a exploração cruel de mão de obra em ambientes insalubres (como nas minas de diamante da África do Sul), o tratamento dispensado a povos originários (como com os aborígenes australianos) e a trágica gestão de crises alimentares em possessões como Índia e Irlanda. Nesta última, apenas uma das crises, a Grande Fome de 1845-52, matou mais de um milhão de pessoas.

Terminada a 2.ª Guerra, enquanto o Império se desfazia, ecos de antigas grandezas se cristalizavam no imaginário britânico. No Reino Unido, quando se sepultam, casam ou coroam monarcas, a imagem transmitida para o mundo, com audiências sempre gigantescas, é de sepultamentos, casamentos ou coroações de imperadores. Quem se interessa por cerimônias similares, por exemplo, na Dinamarca, que tem uma monarquia mais antiga?

A grandiosidade cerimonial britânica cresceu na proporção inversa às perdas de poder da realeza e do país. No apogeu do Império, Vitória tinha as opiniões levadas em conta pelo governo, ao passo que Elizabeth II sequer era consultada sobre os discursos que lia. E Charles III, agora, além de refém de pesquisas de opinião e dos tabloides, precisará decidir se repetirá o papel neutro da mãe ou se, militante de causas ambientais quando era herdeiro, procurará, sendo rei, ter alguma voz.

Quanto aos legados do Império, é inegável que questões não resolvidas foram deixadas para trás, como, por exemplo, a desastrada configuração territorial africana e o conflito palestino-israelense. Assim, se é verdade que a maioria dos britânicos se orgulha do passado imperial, os críticos têm muito bons argumentos. Se, para o bem ou para o mal, o Império onde o sol nunca se punha teve um peso gigantesco na formação do mundo em que vivemos, ele não existe mais. l

Um príncipe chorão e sua esposa são abrigados sob as asas de Oprah Winfrey e viram personagens da Netflix. Estátuas de velhos escravagistas são arrancadas de seus pedestais e lançadas ao mar. Um primeiro-ministro de origem indiana assume o poder. Morre a derradeira rainha nascida nos gloriosos tempos imperiais, e o novo rei precisará ficar de olho, o tempo todo, em pesquisas de popularidade. Junte tudo isso e a conclusão será a de que o ano que terminou pode ter sido o capítulo final da história do Império Britânico. Império que, há não tanto tempo assim, foi o maior que já existiu e, por cerca de 400 anos, dominou o mundo. No seu apogeu, antes da 1.ª Guerra Mundial, o império onde o sol nunca se punha, além de dominar todos os oceanos, controlava mais de um quarto do planeta.

Deve-se em boa parte ao Império os fatos de o futebol ser o esporte mais popular do mundo e o inglês ser a atual língua franca da humanidade. Não poucos britânicos amam celebrar os legados do passado imperial, começando por argumentar que parte de suas antigas possessões, como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia serem nações liberais, prósperas e democráticas (não se fala muito, convenientemente, em domínios como Bangladesh ou Zimbabwe). Construiu-se a imagem de um império benevolente com os povos que o integravam, que os britânicos, em sua maioria, celebram. Uma pesquisa de 2014 revelou que para 59% dos entrevistados o Império “era motivo de orgulho,” e mais de 1/3 gostariam que ele ainda existisse.

A Família Real inglesa em tempos de conciliação, antes do rompimento do príncipe Harry com a realeza (à direita, ao lado do irmão com quem brigou)  Foto: Foto AP/Matt Dunham

Para quem vivesse na Europa nos tempos em que Cabral desembarcou na Bahia, pareceria francamente improvável que a Inglaterra pudesse vir a ser, no futuro, a maior potência do planeta. Aquele país insular era relativamente periférico na Europa, na qual a grande rivalidade se dava entre França e Espanha. Quando atravessavam o Atlântico, os navegadores ingleses iam praticar pirataria contra espanhóis e portugueses, e não colonizar novas terras. Mas, já a partir de meados do século 17, a ascensão britânica e de seu recém-criado império foram nada menos que meteóricas.

O Império Britânico não foi uma unidade monolítica como o romano, num passado mais distante, ou o espanhol, mais recente. Havia diferentes graus de autonomia regional – e mesmo a Índia, durante um bom tempo, foi governada não pela Coroa, mas por uma empresa, a Companhia das Índias Orientais (mergulhada em escândalos de corrupção e depois de uma grande rebelião, a Companhia foi extinta em 1858, quando Londres assumiu diretamente a administração). Ao mesmo tempo, pode-se separar o Império em dois momentos distintos: o primeiro, mais Atlântico, foi centrado no tráfico de escravos, nas treze colônias americanas e nas plantações de açúcar do Caribe; o segundo, depois da independência dos Estados Unidos e da abolição do tráfico, voltou-se mais para a África, a Ásia e a Oceania.

O príncipe Harry, que acaba de ter sua biografia lançada, e sua mulher Meghan Foto: Dylan Marrtineza/Reuters)

O Reino Unido era um país relativamente pequeno, de modo que não havia gente suficiente para controlar um império tão vasto sem a cooptação das elites colonizadas. Na Índia, os privilegiados eram principalmente os Sikhs; na Nigéria, os Ibos. Ou seja, a regra era dividir para governar. E isso não se deu apenas para controlar as colônias, pois soldados indianos, sul-africanos e nigerianos, entre outros, foram largamente empregados em batalhas em todos os recantos do Império. Na 1.ª Guerra Mundial, nada menos do que três milhões de militares do Império foram enviados para lutar e morrer na Europa. Além disso, a Revolução Industrial criou recursos decisivos, como navios a vapor, trens, metralhadoras e, talvez o mais importante, a primeira rede telegráfica global, que fez com que passasse de meses, para horas, o tempo para a troca de mensagens entre Londres e qualquer ponto estratégico do Império.

Se, no século 20, Winston Churchill, com sua História dos Povos de Língua Inglesa, foi a grande voz em defesa das realizações britânicas, hoje em dia o mais famoso entusiasta dos legados positivos do Império é o historiador da nova direita Niall Ferguson. O título de seu livro sobre o tema já diz tudo: Império – Como os Britânicos Construíram o Mundo Moderno (2003). Ferguson é um pensador erudito e polêmico, que por vezes defende causas humanitárias, mas que não se acanhou em apoiar a invasão do Iraque e Donald Trump. Embora admita inúmeros “pecados” do Império, começando sua longa lista pelo tráfico negreiro, Ferguson enfatiza os aspectos positivos, como a disseminação da democracia, a defesa do livre comércio e obras de infraestrutura, que teriam contribuído enormemente para o progresso de ex-colônias e do planeta em geral. Ele usa os traços negativos de impérios anteriores (espanhol e português, arcaicos, inquisitoriais e mercantilistas) e dos finais (como o belga e o japonês, notoriamente mais cruéis) para valorizar o britânico (inclusivo e defensor de liberdades tanto econômicas quanto religiosas). Ainda que exista alguma verdade aí, do ponto de vista do escravizado, porém, qual a diferença entre ser explorado por um ou por outro?

Como seria de se esperar, nem todos os historiadores embarcam na benevolência de Ferguson. Um dos casos mais recentes é o de Caroline Elkins, de Harvard, em Legacy of Violence – a History of the British Empire (Legado de Violência – uma História do Império Britânico, 2022). Elkins lembra, com ironia, a famosa frase de Rudyard Kipling (o autor de Mowgli), que enfatizava o fardo do homem branco em “civilizar” o mundo. Ora, tal pretensão era absurda. China e Índia, por exemplo, já eram civilizações sofisticadas quando a Inglaterra não passava de uma distante e chuvosa província do Império Romano. Além disso, Elkins argumenta que é difícil compartilhar de algum entusiasmo com os supostos legados imperiais, quando se sabe que o capital que alimentou as inovações disseminadas mundo afora, pelos ingleses, teve origem no tráfico de escravos.

O escritor Rudyard Kipling (1865-1936), autor do popular 'Mowgly' Foto: Arquivo Estadão

É considerável o número de empresas e instituições britânicas que se beneficiaram do tráfico, entre as quais o Banco da Inglaterra, o Lloyds Bank, o Banco da Escócia, a Pricewaterhouse Coopers, o Museu Britânico e as universidades de Cambridge e Oxford. Principal ponto de partida de navios negreiros, Liverpool, a cidade dos Beatles, “engordou na banha do tráfico”. E, quando o Império, em 1833, finalmente aboliu a escravidão, os antigos proprietários de escravos foram indenizados pelo governo. Inacreditavelmente, alguns dos pagamentos parcelados atravessaram os séculos e só terminaram em 2015.

Entusiastas do Império Britânico adoram enfatizar o papel do país no combate à escravidão. Mas preferem ignorar, como lembra o historiador Padraic Scanlan em Slave Empire: How Slavery Built Modern Britain (Império Escravista: como a Escravidão Moldou a Grã-Bretanha, 2020), que, dos quatrocentos anos que durou o Império, a primeira metade foi alicerçada no tráfico; enquanto que, na segunda, foi o capital anteriormente acumulado que alimentou a Revolução Industrial e conquistas na Ásia e na África, além do fato de que o país continuou a se beneficiar de trabalho barato de súditos (europeus ou não), e da persistência da escravidão em outros países, ao importar algodão do sul dos Estados Unidos ou café do Brasil.

Em Empireland – How Imperialism Has Shaped Modern Britain (Império – Como foi Formada a Grã-Bretanha, 2021), livro que se tornou um instantâneo best-seller, Sathnam Sanghera, jornalista e documentarista britânico de família Sikh, parte de sua própria experiência de vida. Sanghera debate a identidade nacional, a começar pelo fato de falar a língua sem sotaque e se sentir totalmente britânico, mas de frequentemente ser tratado como estrangeiro. Ele lembra que o tradicional chá inglês veio da Índia e, analisando os legados do Império, reconhece os aspectos positivos, como o fato de Londres ser hoje uma das cidades mais cosmopolitas e multiétnicas do mundo – mas não se furta a enfiar o dedo nas feridas, que não são poucas. Exemplos: a imposição do ópio aos chineses, a mão pesada na repressão a qualquer rebelião (como na Jamaica, em 1865), a exploração cruel de mão de obra em ambientes insalubres (como nas minas de diamante da África do Sul), o tratamento dispensado a povos originários (como com os aborígenes australianos) e a trágica gestão de crises alimentares em possessões como Índia e Irlanda. Nesta última, apenas uma das crises, a Grande Fome de 1845-52, matou mais de um milhão de pessoas.

Terminada a 2.ª Guerra, enquanto o Império se desfazia, ecos de antigas grandezas se cristalizavam no imaginário britânico. No Reino Unido, quando se sepultam, casam ou coroam monarcas, a imagem transmitida para o mundo, com audiências sempre gigantescas, é de sepultamentos, casamentos ou coroações de imperadores. Quem se interessa por cerimônias similares, por exemplo, na Dinamarca, que tem uma monarquia mais antiga?

A grandiosidade cerimonial britânica cresceu na proporção inversa às perdas de poder da realeza e do país. No apogeu do Império, Vitória tinha as opiniões levadas em conta pelo governo, ao passo que Elizabeth II sequer era consultada sobre os discursos que lia. E Charles III, agora, além de refém de pesquisas de opinião e dos tabloides, precisará decidir se repetirá o papel neutro da mãe ou se, militante de causas ambientais quando era herdeiro, procurará, sendo rei, ter alguma voz.

Quanto aos legados do Império, é inegável que questões não resolvidas foram deixadas para trás, como, por exemplo, a desastrada configuração territorial africana e o conflito palestino-israelense. Assim, se é verdade que a maioria dos britânicos se orgulha do passado imperial, os críticos têm muito bons argumentos. Se, para o bem ou para o mal, o Império onde o sol nunca se punha teve um peso gigantesco na formação do mundo em que vivemos, ele não existe mais. l

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