Flannery O'Connor oferece parábolas sangrentas para um mundo hostil


Com formação religiosa, autora não media palavras para investigar a redenção com seus personagens desbocados

Por Antonio Gonçalves Filho

Publicados no Brasil há exatamente dez anos pela extinta editora Cosac Naify, os livros de Flannery O’Connor são agora relançados pela Editora Nova Fronteira, começando por Um Homem Bom é Difícil de Encontrar. Embora tenha publicado poucos livros – dois romances e quatro coletâneas com 32 contos, além das cartas e cartoons –, todos eles refletem a formação católica da autora e a deformação moral de seus personagens, muito deles baseados em criaturas reais que circulavam por sua natal Savannah, na Georgia, ou em Milledgeville, onde sua família se fixou em 1940, quando Flannery O’Connor ainda era adolescente.

O niilista de 'Sangue Sábio' (Brad Dourif), livro filmado por John Huston em 1979 Foto: New Line Cinema

Um dos romances basilares da escritora, Sangue Sábio (Wise Blood, 1952) é também uma síntese de sua peculiar exploração sobre a Teologia da Redenção. Publicado no Brasil em 2002 pela Editora Arx, seu livro de estreia foi filmado por John Huston, em 1979, provavelmente o último nome que Flannery O’Connor cogitaria para dirigir um filme sobre o violento confronto entre o mundo material e espiritual – Huston era ateu. Talvez por isso o filme seja mais equilibrado que o livro de O’Connor, cujo foco é a redenção de um homem num mundo hostil à verdade.

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Nele, o protagonista, Hazel Motes, jovem de 22 anos egresso de uma guerra, entra numa outra espécie de conflito bélico com uma comunidade de caipiras seguidores de um pastor que se finge de cego. Decidido a desmascarar o falso profeta das ruas, Hazel cria a Igreja da Verdade Sem Cristo apenas para cair na mesma armadilha do pastor e terminar tragicamente seus dias como uma espécie de Édipo a vagar pelo território do demônio e da ignorância.

O’Connor era democrata. Votou em Kennedy, apoiou Martin Luther King em sua luta contra o racismo e conhecia bem o sul dos EUA, região que deu ao mundo realistas como Faulkner. Mas, ao contrário do colega, deixava o sentimento de culpa de lado ao narrar cenas de explícito conflito racial – e nem sempre os descendentes de escravos eram as melhores pessoas em seus contos. Flannery não era politicamente correta. Num conto chamado Redenção, uma fazendeira obesa e racista é chamada de “porca velha” – e uma visão epifânica dentro de um chiqueiro atesta como Flannery via a sociedade americana. Movida pelo pouco apreço ao secularismo do mundo moderno, devotou seu tempo a criar parábolas sangrentas contra a desintegração moral e ética dos compatriotas que habitam o Cinturão Bíblico sulista.

Sangue Sábio é o resumo de uma descida ao inferno. Hazel Motes, em sua fúria antirreligiosa, não passa de um falso pastor blasfemo. Nesse sentido, os personagens grotescos de Flannery O’Connor encontram certa simetria com os escritores católicos franceses como Georges Bernanos – e um exemplo disso é o padre alcoólatra de Diário de um Pároco de Aldeia, que, por sua condição, se vê impotente diante da missão de resgatar as mesquinhas ovelhas de sua paróquia. A verdade, em vez de libertar o religioso, o conduz ao desespero, como o Hazel Motes de Sangue Sábio, destinado ao trágico destino de Édipo.

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Talvez fosse mesmo o propósito de Flannery O’Connor mostrar que o mundo moderno, que só entende o melodrama, precisa retomar o caminho dos gregos para refletir sobre a tragédia. Sangue Sábio elege um anti-herói niilista cuja descrença o conduz paradoxalmente à busca da redenção. Ele, como o falso pastor que acusa, recusam-se a ver a verdade. Hazel lia a Bíblia com os óculos da mãe. Lentes inadequadas. No futuro ele queimará um dos olhos com soda cáustica e verá melhor do que antes, simbolismo bíblico que, mesmo inspirado em Mateus (7.3) – “por que vês o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que tens no teu?” – consegue ser mais violento que o dos evangelhos.

Voltando aos franceses, Flannery O’Connor foi marcada pela leitura do teólogo católico Pierre Teilhard de Chardin (1881-1951), que, defendendo o diálogo entre ciência e teologia, concluiu que todas as coisas convergem em Deus. Mesmo que essa teofania, nos contos da americana, seja de uma extrema violência

Publicados no Brasil há exatamente dez anos pela extinta editora Cosac Naify, os livros de Flannery O’Connor são agora relançados pela Editora Nova Fronteira, começando por Um Homem Bom é Difícil de Encontrar. Embora tenha publicado poucos livros – dois romances e quatro coletâneas com 32 contos, além das cartas e cartoons –, todos eles refletem a formação católica da autora e a deformação moral de seus personagens, muito deles baseados em criaturas reais que circulavam por sua natal Savannah, na Georgia, ou em Milledgeville, onde sua família se fixou em 1940, quando Flannery O’Connor ainda era adolescente.

O niilista de 'Sangue Sábio' (Brad Dourif), livro filmado por John Huston em 1979 Foto: New Line Cinema

Um dos romances basilares da escritora, Sangue Sábio (Wise Blood, 1952) é também uma síntese de sua peculiar exploração sobre a Teologia da Redenção. Publicado no Brasil em 2002 pela Editora Arx, seu livro de estreia foi filmado por John Huston, em 1979, provavelmente o último nome que Flannery O’Connor cogitaria para dirigir um filme sobre o violento confronto entre o mundo material e espiritual – Huston era ateu. Talvez por isso o filme seja mais equilibrado que o livro de O’Connor, cujo foco é a redenção de um homem num mundo hostil à verdade.

Nele, o protagonista, Hazel Motes, jovem de 22 anos egresso de uma guerra, entra numa outra espécie de conflito bélico com uma comunidade de caipiras seguidores de um pastor que se finge de cego. Decidido a desmascarar o falso profeta das ruas, Hazel cria a Igreja da Verdade Sem Cristo apenas para cair na mesma armadilha do pastor e terminar tragicamente seus dias como uma espécie de Édipo a vagar pelo território do demônio e da ignorância.

O’Connor era democrata. Votou em Kennedy, apoiou Martin Luther King em sua luta contra o racismo e conhecia bem o sul dos EUA, região que deu ao mundo realistas como Faulkner. Mas, ao contrário do colega, deixava o sentimento de culpa de lado ao narrar cenas de explícito conflito racial – e nem sempre os descendentes de escravos eram as melhores pessoas em seus contos. Flannery não era politicamente correta. Num conto chamado Redenção, uma fazendeira obesa e racista é chamada de “porca velha” – e uma visão epifânica dentro de um chiqueiro atesta como Flannery via a sociedade americana. Movida pelo pouco apreço ao secularismo do mundo moderno, devotou seu tempo a criar parábolas sangrentas contra a desintegração moral e ética dos compatriotas que habitam o Cinturão Bíblico sulista.

Sangue Sábio é o resumo de uma descida ao inferno. Hazel Motes, em sua fúria antirreligiosa, não passa de um falso pastor blasfemo. Nesse sentido, os personagens grotescos de Flannery O’Connor encontram certa simetria com os escritores católicos franceses como Georges Bernanos – e um exemplo disso é o padre alcoólatra de Diário de um Pároco de Aldeia, que, por sua condição, se vê impotente diante da missão de resgatar as mesquinhas ovelhas de sua paróquia. A verdade, em vez de libertar o religioso, o conduz ao desespero, como o Hazel Motes de Sangue Sábio, destinado ao trágico destino de Édipo.

Talvez fosse mesmo o propósito de Flannery O’Connor mostrar que o mundo moderno, que só entende o melodrama, precisa retomar o caminho dos gregos para refletir sobre a tragédia. Sangue Sábio elege um anti-herói niilista cuja descrença o conduz paradoxalmente à busca da redenção. Ele, como o falso pastor que acusa, recusam-se a ver a verdade. Hazel lia a Bíblia com os óculos da mãe. Lentes inadequadas. No futuro ele queimará um dos olhos com soda cáustica e verá melhor do que antes, simbolismo bíblico que, mesmo inspirado em Mateus (7.3) – “por que vês o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que tens no teu?” – consegue ser mais violento que o dos evangelhos.

Voltando aos franceses, Flannery O’Connor foi marcada pela leitura do teólogo católico Pierre Teilhard de Chardin (1881-1951), que, defendendo o diálogo entre ciência e teologia, concluiu que todas as coisas convergem em Deus. Mesmo que essa teofania, nos contos da americana, seja de uma extrema violência

Publicados no Brasil há exatamente dez anos pela extinta editora Cosac Naify, os livros de Flannery O’Connor são agora relançados pela Editora Nova Fronteira, começando por Um Homem Bom é Difícil de Encontrar. Embora tenha publicado poucos livros – dois romances e quatro coletâneas com 32 contos, além das cartas e cartoons –, todos eles refletem a formação católica da autora e a deformação moral de seus personagens, muito deles baseados em criaturas reais que circulavam por sua natal Savannah, na Georgia, ou em Milledgeville, onde sua família se fixou em 1940, quando Flannery O’Connor ainda era adolescente.

O niilista de 'Sangue Sábio' (Brad Dourif), livro filmado por John Huston em 1979 Foto: New Line Cinema

Um dos romances basilares da escritora, Sangue Sábio (Wise Blood, 1952) é também uma síntese de sua peculiar exploração sobre a Teologia da Redenção. Publicado no Brasil em 2002 pela Editora Arx, seu livro de estreia foi filmado por John Huston, em 1979, provavelmente o último nome que Flannery O’Connor cogitaria para dirigir um filme sobre o violento confronto entre o mundo material e espiritual – Huston era ateu. Talvez por isso o filme seja mais equilibrado que o livro de O’Connor, cujo foco é a redenção de um homem num mundo hostil à verdade.

Nele, o protagonista, Hazel Motes, jovem de 22 anos egresso de uma guerra, entra numa outra espécie de conflito bélico com uma comunidade de caipiras seguidores de um pastor que se finge de cego. Decidido a desmascarar o falso profeta das ruas, Hazel cria a Igreja da Verdade Sem Cristo apenas para cair na mesma armadilha do pastor e terminar tragicamente seus dias como uma espécie de Édipo a vagar pelo território do demônio e da ignorância.

O’Connor era democrata. Votou em Kennedy, apoiou Martin Luther King em sua luta contra o racismo e conhecia bem o sul dos EUA, região que deu ao mundo realistas como Faulkner. Mas, ao contrário do colega, deixava o sentimento de culpa de lado ao narrar cenas de explícito conflito racial – e nem sempre os descendentes de escravos eram as melhores pessoas em seus contos. Flannery não era politicamente correta. Num conto chamado Redenção, uma fazendeira obesa e racista é chamada de “porca velha” – e uma visão epifânica dentro de um chiqueiro atesta como Flannery via a sociedade americana. Movida pelo pouco apreço ao secularismo do mundo moderno, devotou seu tempo a criar parábolas sangrentas contra a desintegração moral e ética dos compatriotas que habitam o Cinturão Bíblico sulista.

Sangue Sábio é o resumo de uma descida ao inferno. Hazel Motes, em sua fúria antirreligiosa, não passa de um falso pastor blasfemo. Nesse sentido, os personagens grotescos de Flannery O’Connor encontram certa simetria com os escritores católicos franceses como Georges Bernanos – e um exemplo disso é o padre alcoólatra de Diário de um Pároco de Aldeia, que, por sua condição, se vê impotente diante da missão de resgatar as mesquinhas ovelhas de sua paróquia. A verdade, em vez de libertar o religioso, o conduz ao desespero, como o Hazel Motes de Sangue Sábio, destinado ao trágico destino de Édipo.

Talvez fosse mesmo o propósito de Flannery O’Connor mostrar que o mundo moderno, que só entende o melodrama, precisa retomar o caminho dos gregos para refletir sobre a tragédia. Sangue Sábio elege um anti-herói niilista cuja descrença o conduz paradoxalmente à busca da redenção. Ele, como o falso pastor que acusa, recusam-se a ver a verdade. Hazel lia a Bíblia com os óculos da mãe. Lentes inadequadas. No futuro ele queimará um dos olhos com soda cáustica e verá melhor do que antes, simbolismo bíblico que, mesmo inspirado em Mateus (7.3) – “por que vês o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que tens no teu?” – consegue ser mais violento que o dos evangelhos.

Voltando aos franceses, Flannery O’Connor foi marcada pela leitura do teólogo católico Pierre Teilhard de Chardin (1881-1951), que, defendendo o diálogo entre ciência e teologia, concluiu que todas as coisas convergem em Deus. Mesmo que essa teofania, nos contos da americana, seja de uma extrema violência

Publicados no Brasil há exatamente dez anos pela extinta editora Cosac Naify, os livros de Flannery O’Connor são agora relançados pela Editora Nova Fronteira, começando por Um Homem Bom é Difícil de Encontrar. Embora tenha publicado poucos livros – dois romances e quatro coletâneas com 32 contos, além das cartas e cartoons –, todos eles refletem a formação católica da autora e a deformação moral de seus personagens, muito deles baseados em criaturas reais que circulavam por sua natal Savannah, na Georgia, ou em Milledgeville, onde sua família se fixou em 1940, quando Flannery O’Connor ainda era adolescente.

O niilista de 'Sangue Sábio' (Brad Dourif), livro filmado por John Huston em 1979 Foto: New Line Cinema

Um dos romances basilares da escritora, Sangue Sábio (Wise Blood, 1952) é também uma síntese de sua peculiar exploração sobre a Teologia da Redenção. Publicado no Brasil em 2002 pela Editora Arx, seu livro de estreia foi filmado por John Huston, em 1979, provavelmente o último nome que Flannery O’Connor cogitaria para dirigir um filme sobre o violento confronto entre o mundo material e espiritual – Huston era ateu. Talvez por isso o filme seja mais equilibrado que o livro de O’Connor, cujo foco é a redenção de um homem num mundo hostil à verdade.

Nele, o protagonista, Hazel Motes, jovem de 22 anos egresso de uma guerra, entra numa outra espécie de conflito bélico com uma comunidade de caipiras seguidores de um pastor que se finge de cego. Decidido a desmascarar o falso profeta das ruas, Hazel cria a Igreja da Verdade Sem Cristo apenas para cair na mesma armadilha do pastor e terminar tragicamente seus dias como uma espécie de Édipo a vagar pelo território do demônio e da ignorância.

O’Connor era democrata. Votou em Kennedy, apoiou Martin Luther King em sua luta contra o racismo e conhecia bem o sul dos EUA, região que deu ao mundo realistas como Faulkner. Mas, ao contrário do colega, deixava o sentimento de culpa de lado ao narrar cenas de explícito conflito racial – e nem sempre os descendentes de escravos eram as melhores pessoas em seus contos. Flannery não era politicamente correta. Num conto chamado Redenção, uma fazendeira obesa e racista é chamada de “porca velha” – e uma visão epifânica dentro de um chiqueiro atesta como Flannery via a sociedade americana. Movida pelo pouco apreço ao secularismo do mundo moderno, devotou seu tempo a criar parábolas sangrentas contra a desintegração moral e ética dos compatriotas que habitam o Cinturão Bíblico sulista.

Sangue Sábio é o resumo de uma descida ao inferno. Hazel Motes, em sua fúria antirreligiosa, não passa de um falso pastor blasfemo. Nesse sentido, os personagens grotescos de Flannery O’Connor encontram certa simetria com os escritores católicos franceses como Georges Bernanos – e um exemplo disso é o padre alcoólatra de Diário de um Pároco de Aldeia, que, por sua condição, se vê impotente diante da missão de resgatar as mesquinhas ovelhas de sua paróquia. A verdade, em vez de libertar o religioso, o conduz ao desespero, como o Hazel Motes de Sangue Sábio, destinado ao trágico destino de Édipo.

Talvez fosse mesmo o propósito de Flannery O’Connor mostrar que o mundo moderno, que só entende o melodrama, precisa retomar o caminho dos gregos para refletir sobre a tragédia. Sangue Sábio elege um anti-herói niilista cuja descrença o conduz paradoxalmente à busca da redenção. Ele, como o falso pastor que acusa, recusam-se a ver a verdade. Hazel lia a Bíblia com os óculos da mãe. Lentes inadequadas. No futuro ele queimará um dos olhos com soda cáustica e verá melhor do que antes, simbolismo bíblico que, mesmo inspirado em Mateus (7.3) – “por que vês o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que tens no teu?” – consegue ser mais violento que o dos evangelhos.

Voltando aos franceses, Flannery O’Connor foi marcada pela leitura do teólogo católico Pierre Teilhard de Chardin (1881-1951), que, defendendo o diálogo entre ciência e teologia, concluiu que todas as coisas convergem em Deus. Mesmo que essa teofania, nos contos da americana, seja de uma extrema violência

Publicados no Brasil há exatamente dez anos pela extinta editora Cosac Naify, os livros de Flannery O’Connor são agora relançados pela Editora Nova Fronteira, começando por Um Homem Bom é Difícil de Encontrar. Embora tenha publicado poucos livros – dois romances e quatro coletâneas com 32 contos, além das cartas e cartoons –, todos eles refletem a formação católica da autora e a deformação moral de seus personagens, muito deles baseados em criaturas reais que circulavam por sua natal Savannah, na Georgia, ou em Milledgeville, onde sua família se fixou em 1940, quando Flannery O’Connor ainda era adolescente.

O niilista de 'Sangue Sábio' (Brad Dourif), livro filmado por John Huston em 1979 Foto: New Line Cinema

Um dos romances basilares da escritora, Sangue Sábio (Wise Blood, 1952) é também uma síntese de sua peculiar exploração sobre a Teologia da Redenção. Publicado no Brasil em 2002 pela Editora Arx, seu livro de estreia foi filmado por John Huston, em 1979, provavelmente o último nome que Flannery O’Connor cogitaria para dirigir um filme sobre o violento confronto entre o mundo material e espiritual – Huston era ateu. Talvez por isso o filme seja mais equilibrado que o livro de O’Connor, cujo foco é a redenção de um homem num mundo hostil à verdade.

Nele, o protagonista, Hazel Motes, jovem de 22 anos egresso de uma guerra, entra numa outra espécie de conflito bélico com uma comunidade de caipiras seguidores de um pastor que se finge de cego. Decidido a desmascarar o falso profeta das ruas, Hazel cria a Igreja da Verdade Sem Cristo apenas para cair na mesma armadilha do pastor e terminar tragicamente seus dias como uma espécie de Édipo a vagar pelo território do demônio e da ignorância.

O’Connor era democrata. Votou em Kennedy, apoiou Martin Luther King em sua luta contra o racismo e conhecia bem o sul dos EUA, região que deu ao mundo realistas como Faulkner. Mas, ao contrário do colega, deixava o sentimento de culpa de lado ao narrar cenas de explícito conflito racial – e nem sempre os descendentes de escravos eram as melhores pessoas em seus contos. Flannery não era politicamente correta. Num conto chamado Redenção, uma fazendeira obesa e racista é chamada de “porca velha” – e uma visão epifânica dentro de um chiqueiro atesta como Flannery via a sociedade americana. Movida pelo pouco apreço ao secularismo do mundo moderno, devotou seu tempo a criar parábolas sangrentas contra a desintegração moral e ética dos compatriotas que habitam o Cinturão Bíblico sulista.

Sangue Sábio é o resumo de uma descida ao inferno. Hazel Motes, em sua fúria antirreligiosa, não passa de um falso pastor blasfemo. Nesse sentido, os personagens grotescos de Flannery O’Connor encontram certa simetria com os escritores católicos franceses como Georges Bernanos – e um exemplo disso é o padre alcoólatra de Diário de um Pároco de Aldeia, que, por sua condição, se vê impotente diante da missão de resgatar as mesquinhas ovelhas de sua paróquia. A verdade, em vez de libertar o religioso, o conduz ao desespero, como o Hazel Motes de Sangue Sábio, destinado ao trágico destino de Édipo.

Talvez fosse mesmo o propósito de Flannery O’Connor mostrar que o mundo moderno, que só entende o melodrama, precisa retomar o caminho dos gregos para refletir sobre a tragédia. Sangue Sábio elege um anti-herói niilista cuja descrença o conduz paradoxalmente à busca da redenção. Ele, como o falso pastor que acusa, recusam-se a ver a verdade. Hazel lia a Bíblia com os óculos da mãe. Lentes inadequadas. No futuro ele queimará um dos olhos com soda cáustica e verá melhor do que antes, simbolismo bíblico que, mesmo inspirado em Mateus (7.3) – “por que vês o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que tens no teu?” – consegue ser mais violento que o dos evangelhos.

Voltando aos franceses, Flannery O’Connor foi marcada pela leitura do teólogo católico Pierre Teilhard de Chardin (1881-1951), que, defendendo o diálogo entre ciência e teologia, concluiu que todas as coisas convergem em Deus. Mesmo que essa teofania, nos contos da americana, seja de uma extrema violência

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