Clarice Cardoso
No post anterior falei sobre Black Mirror, a melhor minissérie que me foi indicada nos últimos tempos e uma produção britânica criada por Charlie Brooker. A tecnologia domina a vida nos universos distópicos que cada episódio cria, mas ela é mais um ponto de partida para abordar questões humanas anteriores. (Como o aviso ali em cima indica: atenção, este texto contém spoilers.)
Como jornalista, o episódio piloto me deixou refletindo por dias, porque trata da questão mais urgente da profissão hoje: a relação entre o jornalismo e as mídias digitais. A série Newsroom, por exemplo, se lançou com o pretexto de debater os dilemas que repórteres, editores e leitores enfrentam no dia a dia, mas se perdeu em algum momento em triângulos amorosos e bobagens novelescas.
Black Mirror não. Colocou o dedo na ferida em The National Anthem, que começa quando um vídeo no YouTube anuncia que a princesa do Reino Unido foi sequestrada. Irrastreável, o criminoso tem como exigência única que o primeiro-ministro apareça em rede nacional tendo relações sexuais com um porco. A proposta é sórdida, patológica, mas a Scotland Yard não encontra meios para localizar o sequestrador. Fim do primeiro ato.
(É difícil pensar que algo assim de fato pudesse acontecer e ser levado a sério, mas temos de suspender a descrença.)
A cena muda então para a reunião na redação de uma emissora de televisão. Uma repórter ingênua o suficiente para entregar às redes sociais o presente e o futuro de sua profissão tenta, exasperada, convencer o editor a colocar no ar a notícia imediatamente. "Cem por cento da minha timeline está falando disso", justifica. "Eu não edito uma sala de bate-papo", rebate, certeiro, o chefe, ao argumentar que, na falta de apuração, de entrevistas com as autoridades e de relatórios oficiais, a história é ainda um boato. A repórter não entende. Para ela, notícias competem com tuítes. "A cobertura do Facebook é sempre impressionante", ironiza um jornalista mais experiente.
Dividida entre o YouTube, que viraliza o vídeo, e a mídia, que o ignora e fala sobre reciclagem, o público começa um debate próprio, agora sobre o consumo de notícias hoje em dia. Se todos falam de um assunto na internet, ele se torna automaticamente prioritário para um jornal? Pode um rumor ser verdadeiro se não está sendo noticiado? Que fonte é mais confiável para alguém se informar? O jornalismo compete com as mídias sociais?
Quando enfim os canais colocam no ar a informação, a notícia não é o sequestro, as evidentes falhas na segurança da família real ou a abjeta situação que é proposta ao primeiro-ministro. Antes, o que interessa são quantas curtidas no Facebook, quantos compartilhamentos no Twitter, quantas vezes o vídeo foi visto no YouTube. (Algo que vemos todos os dias internet afora.)
Este episódio de Black Mirror toca direto nessa relação ainda em formação entre o jornalismo e as redes sociais, e no desafio quase diário que é imposto ao primeiro para adaptar-se a um mundo dominado pelas últimas. É claro que elas são um aliado no dia a dia de uma redação, mas não serão jamais a pauta de um jornal bem-feito. Não podem ser a notícia em si. O trabalho de reportagem, de apuração, torna-se mais essencial quanto maior o volume de informação, de disse que disse.
Como nenhum episódio de Black Mirror resume-se à sugestão de apenas um tema, nos atos seguintes é a reação da população à possível humilhação púbica do primeiro-ministro que toma o centro da trama. As ruas estão vazias, todos reúnem-se diante da TV para ver se, afinal, ele se submeterá a tão abjeto destino. Como se, no vexame de um símbolo do governo, a população visse a chance de uma torpe vingança contra as formas de poder.
Desde Breaking Bad, o sempre inquisitivo Alexandre Versignassi é meu amigo favorito para debater produções que aguentam análises mais aprofundadas. Ele chamou minha atenção para uma questão a que eu não tinha me dado conta, mas que é extremamente cabível: a situação do primeiro-ministro e a reação do público é uma reencenação do teatro popular da Roma antiga, que colocava imperadores em situações absurdas como forma de dar alívio extra ao espectador. Mas esse já é outro debate.
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