'Garotas Mortas', de Selva Almada, aborda feminicídios verídicos


Escritora argentina usa não ficção para tratar de violência contra a mulher

Por Ronaldo Bressane

Depois que me tornei pai de uma menina (melhor diria: à medida em que vou me tornando pai de uma menina), faz seis anos, desenvolvi um horror quase físico à violência contra mulheres. Mesmo depois de ler O Conto da Aia, não passei do terceiro episódio da excelente série baseada no romance de Margaret Atwood. Não poderia reler A Parte dos Crimes em 2666, de Roberto Bolaño, em que o chileno narra dezenas de assassinatos de mulheres ocorridos em Ciudad Juárez, México. Revisitei este horror ao ler Garotas Mortas, de Selva Almada (Todavia). E fiquei imaginando que, se muitos homens desconhecem este horror, este é precisamente o modo mais cômodo de continuá-lo, multiplicá-lo ou criar condições ideais para que se perpetue. Porque é o que acontece quando o horror é normalizado – e não só os pais de meninas precisam saber que existe.

+Histórias verídicas inspiram livro de contos sobre abuso sexual

A escritora Selva Almada, autora do livro 'Garotas Mortas' 
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+Escritoras usam literatura fantástica para discutir feminismo

“Hey Joe, I heard you shot your woman down/ Yes, I did, I shot her/ you know I caught her messin’ ’round town/ I'm goin’ way down south, where I can be free!”, canta Hey Joe, blues tradicional imortalizado por Jimi Hendrix. Nunca me havia dado conta que a canção trata de um feminicídio impune, pois se trata de uma violência normalizada: Joe mata a mulher e foge para o México. O feminicídio envolve violência doméstica e familiar e o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, e está previsto no Código Penal brasileiro desde 2015. 

O conceito do crime ganhou espaço no debate latino-americano justamente a partir das denúncias de assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez tematizados por Bolaño: desde o início dos anos 1990, práticas de violência sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos de mulheres no norte mexicano têm se repetido em um contexto de omissão do Estado e consequente impunidade para os criminosos. 

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Ou seja, os motores do feminicídio são exatamente a normalização do crime e sua impunidade. E são três crimes impunes o eixo deste romance de não ficção de Selva Almada, que lembra, na atmosfera e na reconstituição dos fatos, o clássico A Sangue Frio, de Truman Capote. Andrea Dunne foi apunhalada no coração enquanto dormia. Maria Luisa Quevedo foi estuprada, estrangulada e abandonada num terreno baldio. Sarita Mundín ficou desaparecida por quase um ano até seu suposto esqueleto ser achado à beira de um rio. Todas mulheres de menos de vinte anos. Almada, que não é jornalista, empreendeu uma impressionante investigação de campo para entender como aquelas mulheres foram mortas no quase sempre tórrido interior argentino.

Almada lembra que teve sua atenção despertada para este tipo de crime quando adolescente, enquanto observava o pai assar um churrasco e ouviu no rádio o relato da morte de Andrea Dunne. Entendeu que seu mundo não era mais seguro: uma garota poderia ser morta no conforto do lar, quase sempre através de mãos conhecidas (marido, pai, namorado, parente próximo ou vizinho). Com a prosa clara, direta e sincera reconhecida no belo romance O Vento Que Arrasa (Cosac Naify), Almada investiga as histórias dessas mulheres esquecidas em ritmo de romance policial, através do contato com familiares, pesquisas em livros e jornais, reflexão e imaginação – recorrendo até mesmo a uma certa senhora que lê no tarô as vidas passadas das mulheres mortas. E é esta senhora quem oferece uma chave para simbolizar o livro: La Huesera, a Mulher dos Ossos. 

“É uma velha muito velha que vive em certo esconderijo da alma. Uma velha chucra que cacareja com as galinhas, canta como os pássaros e emite outros sons mais animais do que humanos. Sua tarefa consiste em catar ossos. Ela recolhe e guarda tudo aquilo que periga se perder. Sua choupana está cheia de ossos de todos os tipos de animais. Mas seus preferidos são os ossos dos lobos. Para encontrar um, ela é capaz de caminhar por quilômetros e mais quilômetros, galgar montanhas, atravessar rios, queimar a sola dos pés nas areias do deserto. De volta à sua choupana com a braçada de ossos, ela monta o esqueleto. Quando La Huesera põe a última peça no lugar e a figura do lobo resplandece diante dos seus olhos, ela se senta junto ao fogo e se põe a pensar que canção cantará. Quando se decide, ergue os braços sobre o esqueleto e principia seu canto. À medida que canta, os ossos vão se forrando de carne; e a carne, de couro; e o couro, de pelos. Ela continua a cantar, e a criatura ganha vida, começa a respirar, seu rabo se estica, abre os olhos, dá um salto e sai correndo da choupana. A certa altura da sua corrida vertiginosa, seja pela velocidade, seja porque mergulha nas águas de um rio para atravessá-lo, seja porque o luar o apanha em cheio num flanco, o lobo se transforma numa mulher que corre livremente rumo ao horizonte, rindo às gargalhadas. Talvez seja esta a sua missão: recolher os ossos das garotas, armá-las, dar-lhes voz e depois deixá-las correr livremente para onde tiverem que ir.”

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Nascida em uma cidadezinha da província de Entrerríos, Almada trouxe novidade à literatura argentina ao buscar histórias longe da cosmopolita Buenos Aires – seus personagens são pequenos e pobres, vozes cujas tragédias foram desossadas. Sua prosa está contaminada pelo calor mormacento dessas cidades abafadas, onde há pouca perspectiva: trabalhos mecânicos, a onipresente igreja (católica ou pentecostal), tradições sem sentido no século 21, melodramas dos programas sensacionalistas na TV, o sonho de fugir para longe. 

Tirando o sotaque argentino, é fácil reconhecer o Brasil profundo em seus livros. O horror é parecido com o nosso – 12 mulheres são assassinadas todos os dias no Brasil; na Argentina, a média é de um feminicídio a cada 29 horas.

E o horror precisa ser olhado, várias vezes, para que nunca volte a se repetir. Mas também precisamos olhar para as meninas que encararam aquele horror de perto, e que não tiveram tempo de escapar. “Acho que o que nós precisamos é reconstruir o jeito como o mundo olhava para elas. Se conseguíssemos saber como elas eram vistas, como eram olhadas, vamos saber qual era o olhar que elas tinham sobre o mundo, entende?”, questiona Selva Almada. O prodígio de Garotas Mortas não reside somente em se constituir como inventário de horrores, mas sobretudo como máquina de lembranças, trazendo as histórias dessas mulheres de volta à vida. *É escritor e jornalista, autor do romance 'Escalpo' (editora Reformatório), entre outros 

Depois que me tornei pai de uma menina (melhor diria: à medida em que vou me tornando pai de uma menina), faz seis anos, desenvolvi um horror quase físico à violência contra mulheres. Mesmo depois de ler O Conto da Aia, não passei do terceiro episódio da excelente série baseada no romance de Margaret Atwood. Não poderia reler A Parte dos Crimes em 2666, de Roberto Bolaño, em que o chileno narra dezenas de assassinatos de mulheres ocorridos em Ciudad Juárez, México. Revisitei este horror ao ler Garotas Mortas, de Selva Almada (Todavia). E fiquei imaginando que, se muitos homens desconhecem este horror, este é precisamente o modo mais cômodo de continuá-lo, multiplicá-lo ou criar condições ideais para que se perpetue. Porque é o que acontece quando o horror é normalizado – e não só os pais de meninas precisam saber que existe.

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A escritora Selva Almada, autora do livro 'Garotas Mortas' 

+Escritoras usam literatura fantástica para discutir feminismo

“Hey Joe, I heard you shot your woman down/ Yes, I did, I shot her/ you know I caught her messin’ ’round town/ I'm goin’ way down south, where I can be free!”, canta Hey Joe, blues tradicional imortalizado por Jimi Hendrix. Nunca me havia dado conta que a canção trata de um feminicídio impune, pois se trata de uma violência normalizada: Joe mata a mulher e foge para o México. O feminicídio envolve violência doméstica e familiar e o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, e está previsto no Código Penal brasileiro desde 2015. 

O conceito do crime ganhou espaço no debate latino-americano justamente a partir das denúncias de assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez tematizados por Bolaño: desde o início dos anos 1990, práticas de violência sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos de mulheres no norte mexicano têm se repetido em um contexto de omissão do Estado e consequente impunidade para os criminosos. 

Ou seja, os motores do feminicídio são exatamente a normalização do crime e sua impunidade. E são três crimes impunes o eixo deste romance de não ficção de Selva Almada, que lembra, na atmosfera e na reconstituição dos fatos, o clássico A Sangue Frio, de Truman Capote. Andrea Dunne foi apunhalada no coração enquanto dormia. Maria Luisa Quevedo foi estuprada, estrangulada e abandonada num terreno baldio. Sarita Mundín ficou desaparecida por quase um ano até seu suposto esqueleto ser achado à beira de um rio. Todas mulheres de menos de vinte anos. Almada, que não é jornalista, empreendeu uma impressionante investigação de campo para entender como aquelas mulheres foram mortas no quase sempre tórrido interior argentino.

Almada lembra que teve sua atenção despertada para este tipo de crime quando adolescente, enquanto observava o pai assar um churrasco e ouviu no rádio o relato da morte de Andrea Dunne. Entendeu que seu mundo não era mais seguro: uma garota poderia ser morta no conforto do lar, quase sempre através de mãos conhecidas (marido, pai, namorado, parente próximo ou vizinho). Com a prosa clara, direta e sincera reconhecida no belo romance O Vento Que Arrasa (Cosac Naify), Almada investiga as histórias dessas mulheres esquecidas em ritmo de romance policial, através do contato com familiares, pesquisas em livros e jornais, reflexão e imaginação – recorrendo até mesmo a uma certa senhora que lê no tarô as vidas passadas das mulheres mortas. E é esta senhora quem oferece uma chave para simbolizar o livro: La Huesera, a Mulher dos Ossos. 

“É uma velha muito velha que vive em certo esconderijo da alma. Uma velha chucra que cacareja com as galinhas, canta como os pássaros e emite outros sons mais animais do que humanos. Sua tarefa consiste em catar ossos. Ela recolhe e guarda tudo aquilo que periga se perder. Sua choupana está cheia de ossos de todos os tipos de animais. Mas seus preferidos são os ossos dos lobos. Para encontrar um, ela é capaz de caminhar por quilômetros e mais quilômetros, galgar montanhas, atravessar rios, queimar a sola dos pés nas areias do deserto. De volta à sua choupana com a braçada de ossos, ela monta o esqueleto. Quando La Huesera põe a última peça no lugar e a figura do lobo resplandece diante dos seus olhos, ela se senta junto ao fogo e se põe a pensar que canção cantará. Quando se decide, ergue os braços sobre o esqueleto e principia seu canto. À medida que canta, os ossos vão se forrando de carne; e a carne, de couro; e o couro, de pelos. Ela continua a cantar, e a criatura ganha vida, começa a respirar, seu rabo se estica, abre os olhos, dá um salto e sai correndo da choupana. A certa altura da sua corrida vertiginosa, seja pela velocidade, seja porque mergulha nas águas de um rio para atravessá-lo, seja porque o luar o apanha em cheio num flanco, o lobo se transforma numa mulher que corre livremente rumo ao horizonte, rindo às gargalhadas. Talvez seja esta a sua missão: recolher os ossos das garotas, armá-las, dar-lhes voz e depois deixá-las correr livremente para onde tiverem que ir.”

Nascida em uma cidadezinha da província de Entrerríos, Almada trouxe novidade à literatura argentina ao buscar histórias longe da cosmopolita Buenos Aires – seus personagens são pequenos e pobres, vozes cujas tragédias foram desossadas. Sua prosa está contaminada pelo calor mormacento dessas cidades abafadas, onde há pouca perspectiva: trabalhos mecânicos, a onipresente igreja (católica ou pentecostal), tradições sem sentido no século 21, melodramas dos programas sensacionalistas na TV, o sonho de fugir para longe. 

Tirando o sotaque argentino, é fácil reconhecer o Brasil profundo em seus livros. O horror é parecido com o nosso – 12 mulheres são assassinadas todos os dias no Brasil; na Argentina, a média é de um feminicídio a cada 29 horas.

E o horror precisa ser olhado, várias vezes, para que nunca volte a se repetir. Mas também precisamos olhar para as meninas que encararam aquele horror de perto, e que não tiveram tempo de escapar. “Acho que o que nós precisamos é reconstruir o jeito como o mundo olhava para elas. Se conseguíssemos saber como elas eram vistas, como eram olhadas, vamos saber qual era o olhar que elas tinham sobre o mundo, entende?”, questiona Selva Almada. O prodígio de Garotas Mortas não reside somente em se constituir como inventário de horrores, mas sobretudo como máquina de lembranças, trazendo as histórias dessas mulheres de volta à vida. *É escritor e jornalista, autor do romance 'Escalpo' (editora Reformatório), entre outros 

Depois que me tornei pai de uma menina (melhor diria: à medida em que vou me tornando pai de uma menina), faz seis anos, desenvolvi um horror quase físico à violência contra mulheres. Mesmo depois de ler O Conto da Aia, não passei do terceiro episódio da excelente série baseada no romance de Margaret Atwood. Não poderia reler A Parte dos Crimes em 2666, de Roberto Bolaño, em que o chileno narra dezenas de assassinatos de mulheres ocorridos em Ciudad Juárez, México. Revisitei este horror ao ler Garotas Mortas, de Selva Almada (Todavia). E fiquei imaginando que, se muitos homens desconhecem este horror, este é precisamente o modo mais cômodo de continuá-lo, multiplicá-lo ou criar condições ideais para que se perpetue. Porque é o que acontece quando o horror é normalizado – e não só os pais de meninas precisam saber que existe.

+Histórias verídicas inspiram livro de contos sobre abuso sexual

A escritora Selva Almada, autora do livro 'Garotas Mortas' 

+Escritoras usam literatura fantástica para discutir feminismo

“Hey Joe, I heard you shot your woman down/ Yes, I did, I shot her/ you know I caught her messin’ ’round town/ I'm goin’ way down south, where I can be free!”, canta Hey Joe, blues tradicional imortalizado por Jimi Hendrix. Nunca me havia dado conta que a canção trata de um feminicídio impune, pois se trata de uma violência normalizada: Joe mata a mulher e foge para o México. O feminicídio envolve violência doméstica e familiar e o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, e está previsto no Código Penal brasileiro desde 2015. 

O conceito do crime ganhou espaço no debate latino-americano justamente a partir das denúncias de assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez tematizados por Bolaño: desde o início dos anos 1990, práticas de violência sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos de mulheres no norte mexicano têm se repetido em um contexto de omissão do Estado e consequente impunidade para os criminosos. 

Ou seja, os motores do feminicídio são exatamente a normalização do crime e sua impunidade. E são três crimes impunes o eixo deste romance de não ficção de Selva Almada, que lembra, na atmosfera e na reconstituição dos fatos, o clássico A Sangue Frio, de Truman Capote. Andrea Dunne foi apunhalada no coração enquanto dormia. Maria Luisa Quevedo foi estuprada, estrangulada e abandonada num terreno baldio. Sarita Mundín ficou desaparecida por quase um ano até seu suposto esqueleto ser achado à beira de um rio. Todas mulheres de menos de vinte anos. Almada, que não é jornalista, empreendeu uma impressionante investigação de campo para entender como aquelas mulheres foram mortas no quase sempre tórrido interior argentino.

Almada lembra que teve sua atenção despertada para este tipo de crime quando adolescente, enquanto observava o pai assar um churrasco e ouviu no rádio o relato da morte de Andrea Dunne. Entendeu que seu mundo não era mais seguro: uma garota poderia ser morta no conforto do lar, quase sempre através de mãos conhecidas (marido, pai, namorado, parente próximo ou vizinho). Com a prosa clara, direta e sincera reconhecida no belo romance O Vento Que Arrasa (Cosac Naify), Almada investiga as histórias dessas mulheres esquecidas em ritmo de romance policial, através do contato com familiares, pesquisas em livros e jornais, reflexão e imaginação – recorrendo até mesmo a uma certa senhora que lê no tarô as vidas passadas das mulheres mortas. E é esta senhora quem oferece uma chave para simbolizar o livro: La Huesera, a Mulher dos Ossos. 

“É uma velha muito velha que vive em certo esconderijo da alma. Uma velha chucra que cacareja com as galinhas, canta como os pássaros e emite outros sons mais animais do que humanos. Sua tarefa consiste em catar ossos. Ela recolhe e guarda tudo aquilo que periga se perder. Sua choupana está cheia de ossos de todos os tipos de animais. Mas seus preferidos são os ossos dos lobos. Para encontrar um, ela é capaz de caminhar por quilômetros e mais quilômetros, galgar montanhas, atravessar rios, queimar a sola dos pés nas areias do deserto. De volta à sua choupana com a braçada de ossos, ela monta o esqueleto. Quando La Huesera põe a última peça no lugar e a figura do lobo resplandece diante dos seus olhos, ela se senta junto ao fogo e se põe a pensar que canção cantará. Quando se decide, ergue os braços sobre o esqueleto e principia seu canto. À medida que canta, os ossos vão se forrando de carne; e a carne, de couro; e o couro, de pelos. Ela continua a cantar, e a criatura ganha vida, começa a respirar, seu rabo se estica, abre os olhos, dá um salto e sai correndo da choupana. A certa altura da sua corrida vertiginosa, seja pela velocidade, seja porque mergulha nas águas de um rio para atravessá-lo, seja porque o luar o apanha em cheio num flanco, o lobo se transforma numa mulher que corre livremente rumo ao horizonte, rindo às gargalhadas. Talvez seja esta a sua missão: recolher os ossos das garotas, armá-las, dar-lhes voz e depois deixá-las correr livremente para onde tiverem que ir.”

Nascida em uma cidadezinha da província de Entrerríos, Almada trouxe novidade à literatura argentina ao buscar histórias longe da cosmopolita Buenos Aires – seus personagens são pequenos e pobres, vozes cujas tragédias foram desossadas. Sua prosa está contaminada pelo calor mormacento dessas cidades abafadas, onde há pouca perspectiva: trabalhos mecânicos, a onipresente igreja (católica ou pentecostal), tradições sem sentido no século 21, melodramas dos programas sensacionalistas na TV, o sonho de fugir para longe. 

Tirando o sotaque argentino, é fácil reconhecer o Brasil profundo em seus livros. O horror é parecido com o nosso – 12 mulheres são assassinadas todos os dias no Brasil; na Argentina, a média é de um feminicídio a cada 29 horas.

E o horror precisa ser olhado, várias vezes, para que nunca volte a se repetir. Mas também precisamos olhar para as meninas que encararam aquele horror de perto, e que não tiveram tempo de escapar. “Acho que o que nós precisamos é reconstruir o jeito como o mundo olhava para elas. Se conseguíssemos saber como elas eram vistas, como eram olhadas, vamos saber qual era o olhar que elas tinham sobre o mundo, entende?”, questiona Selva Almada. O prodígio de Garotas Mortas não reside somente em se constituir como inventário de horrores, mas sobretudo como máquina de lembranças, trazendo as histórias dessas mulheres de volta à vida. *É escritor e jornalista, autor do romance 'Escalpo' (editora Reformatório), entre outros 

Depois que me tornei pai de uma menina (melhor diria: à medida em que vou me tornando pai de uma menina), faz seis anos, desenvolvi um horror quase físico à violência contra mulheres. Mesmo depois de ler O Conto da Aia, não passei do terceiro episódio da excelente série baseada no romance de Margaret Atwood. Não poderia reler A Parte dos Crimes em 2666, de Roberto Bolaño, em que o chileno narra dezenas de assassinatos de mulheres ocorridos em Ciudad Juárez, México. Revisitei este horror ao ler Garotas Mortas, de Selva Almada (Todavia). E fiquei imaginando que, se muitos homens desconhecem este horror, este é precisamente o modo mais cômodo de continuá-lo, multiplicá-lo ou criar condições ideais para que se perpetue. Porque é o que acontece quando o horror é normalizado – e não só os pais de meninas precisam saber que existe.

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A escritora Selva Almada, autora do livro 'Garotas Mortas' 

+Escritoras usam literatura fantástica para discutir feminismo

“Hey Joe, I heard you shot your woman down/ Yes, I did, I shot her/ you know I caught her messin’ ’round town/ I'm goin’ way down south, where I can be free!”, canta Hey Joe, blues tradicional imortalizado por Jimi Hendrix. Nunca me havia dado conta que a canção trata de um feminicídio impune, pois se trata de uma violência normalizada: Joe mata a mulher e foge para o México. O feminicídio envolve violência doméstica e familiar e o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, e está previsto no Código Penal brasileiro desde 2015. 

O conceito do crime ganhou espaço no debate latino-americano justamente a partir das denúncias de assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez tematizados por Bolaño: desde o início dos anos 1990, práticas de violência sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos de mulheres no norte mexicano têm se repetido em um contexto de omissão do Estado e consequente impunidade para os criminosos. 

Ou seja, os motores do feminicídio são exatamente a normalização do crime e sua impunidade. E são três crimes impunes o eixo deste romance de não ficção de Selva Almada, que lembra, na atmosfera e na reconstituição dos fatos, o clássico A Sangue Frio, de Truman Capote. Andrea Dunne foi apunhalada no coração enquanto dormia. Maria Luisa Quevedo foi estuprada, estrangulada e abandonada num terreno baldio. Sarita Mundín ficou desaparecida por quase um ano até seu suposto esqueleto ser achado à beira de um rio. Todas mulheres de menos de vinte anos. Almada, que não é jornalista, empreendeu uma impressionante investigação de campo para entender como aquelas mulheres foram mortas no quase sempre tórrido interior argentino.

Almada lembra que teve sua atenção despertada para este tipo de crime quando adolescente, enquanto observava o pai assar um churrasco e ouviu no rádio o relato da morte de Andrea Dunne. Entendeu que seu mundo não era mais seguro: uma garota poderia ser morta no conforto do lar, quase sempre através de mãos conhecidas (marido, pai, namorado, parente próximo ou vizinho). Com a prosa clara, direta e sincera reconhecida no belo romance O Vento Que Arrasa (Cosac Naify), Almada investiga as histórias dessas mulheres esquecidas em ritmo de romance policial, através do contato com familiares, pesquisas em livros e jornais, reflexão e imaginação – recorrendo até mesmo a uma certa senhora que lê no tarô as vidas passadas das mulheres mortas. E é esta senhora quem oferece uma chave para simbolizar o livro: La Huesera, a Mulher dos Ossos. 

“É uma velha muito velha que vive em certo esconderijo da alma. Uma velha chucra que cacareja com as galinhas, canta como os pássaros e emite outros sons mais animais do que humanos. Sua tarefa consiste em catar ossos. Ela recolhe e guarda tudo aquilo que periga se perder. Sua choupana está cheia de ossos de todos os tipos de animais. Mas seus preferidos são os ossos dos lobos. Para encontrar um, ela é capaz de caminhar por quilômetros e mais quilômetros, galgar montanhas, atravessar rios, queimar a sola dos pés nas areias do deserto. De volta à sua choupana com a braçada de ossos, ela monta o esqueleto. Quando La Huesera põe a última peça no lugar e a figura do lobo resplandece diante dos seus olhos, ela se senta junto ao fogo e se põe a pensar que canção cantará. Quando se decide, ergue os braços sobre o esqueleto e principia seu canto. À medida que canta, os ossos vão se forrando de carne; e a carne, de couro; e o couro, de pelos. Ela continua a cantar, e a criatura ganha vida, começa a respirar, seu rabo se estica, abre os olhos, dá um salto e sai correndo da choupana. A certa altura da sua corrida vertiginosa, seja pela velocidade, seja porque mergulha nas águas de um rio para atravessá-lo, seja porque o luar o apanha em cheio num flanco, o lobo se transforma numa mulher que corre livremente rumo ao horizonte, rindo às gargalhadas. Talvez seja esta a sua missão: recolher os ossos das garotas, armá-las, dar-lhes voz e depois deixá-las correr livremente para onde tiverem que ir.”

Nascida em uma cidadezinha da província de Entrerríos, Almada trouxe novidade à literatura argentina ao buscar histórias longe da cosmopolita Buenos Aires – seus personagens são pequenos e pobres, vozes cujas tragédias foram desossadas. Sua prosa está contaminada pelo calor mormacento dessas cidades abafadas, onde há pouca perspectiva: trabalhos mecânicos, a onipresente igreja (católica ou pentecostal), tradições sem sentido no século 21, melodramas dos programas sensacionalistas na TV, o sonho de fugir para longe. 

Tirando o sotaque argentino, é fácil reconhecer o Brasil profundo em seus livros. O horror é parecido com o nosso – 12 mulheres são assassinadas todos os dias no Brasil; na Argentina, a média é de um feminicídio a cada 29 horas.

E o horror precisa ser olhado, várias vezes, para que nunca volte a se repetir. Mas também precisamos olhar para as meninas que encararam aquele horror de perto, e que não tiveram tempo de escapar. “Acho que o que nós precisamos é reconstruir o jeito como o mundo olhava para elas. Se conseguíssemos saber como elas eram vistas, como eram olhadas, vamos saber qual era o olhar que elas tinham sobre o mundo, entende?”, questiona Selva Almada. O prodígio de Garotas Mortas não reside somente em se constituir como inventário de horrores, mas sobretudo como máquina de lembranças, trazendo as histórias dessas mulheres de volta à vida. *É escritor e jornalista, autor do romance 'Escalpo' (editora Reformatório), entre outros 

Depois que me tornei pai de uma menina (melhor diria: à medida em que vou me tornando pai de uma menina), faz seis anos, desenvolvi um horror quase físico à violência contra mulheres. Mesmo depois de ler O Conto da Aia, não passei do terceiro episódio da excelente série baseada no romance de Margaret Atwood. Não poderia reler A Parte dos Crimes em 2666, de Roberto Bolaño, em que o chileno narra dezenas de assassinatos de mulheres ocorridos em Ciudad Juárez, México. Revisitei este horror ao ler Garotas Mortas, de Selva Almada (Todavia). E fiquei imaginando que, se muitos homens desconhecem este horror, este é precisamente o modo mais cômodo de continuá-lo, multiplicá-lo ou criar condições ideais para que se perpetue. Porque é o que acontece quando o horror é normalizado – e não só os pais de meninas precisam saber que existe.

+Histórias verídicas inspiram livro de contos sobre abuso sexual

A escritora Selva Almada, autora do livro 'Garotas Mortas' 

+Escritoras usam literatura fantástica para discutir feminismo

“Hey Joe, I heard you shot your woman down/ Yes, I did, I shot her/ you know I caught her messin’ ’round town/ I'm goin’ way down south, where I can be free!”, canta Hey Joe, blues tradicional imortalizado por Jimi Hendrix. Nunca me havia dado conta que a canção trata de um feminicídio impune, pois se trata de uma violência normalizada: Joe mata a mulher e foge para o México. O feminicídio envolve violência doméstica e familiar e o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, e está previsto no Código Penal brasileiro desde 2015. 

O conceito do crime ganhou espaço no debate latino-americano justamente a partir das denúncias de assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez tematizados por Bolaño: desde o início dos anos 1990, práticas de violência sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos de mulheres no norte mexicano têm se repetido em um contexto de omissão do Estado e consequente impunidade para os criminosos. 

Ou seja, os motores do feminicídio são exatamente a normalização do crime e sua impunidade. E são três crimes impunes o eixo deste romance de não ficção de Selva Almada, que lembra, na atmosfera e na reconstituição dos fatos, o clássico A Sangue Frio, de Truman Capote. Andrea Dunne foi apunhalada no coração enquanto dormia. Maria Luisa Quevedo foi estuprada, estrangulada e abandonada num terreno baldio. Sarita Mundín ficou desaparecida por quase um ano até seu suposto esqueleto ser achado à beira de um rio. Todas mulheres de menos de vinte anos. Almada, que não é jornalista, empreendeu uma impressionante investigação de campo para entender como aquelas mulheres foram mortas no quase sempre tórrido interior argentino.

Almada lembra que teve sua atenção despertada para este tipo de crime quando adolescente, enquanto observava o pai assar um churrasco e ouviu no rádio o relato da morte de Andrea Dunne. Entendeu que seu mundo não era mais seguro: uma garota poderia ser morta no conforto do lar, quase sempre através de mãos conhecidas (marido, pai, namorado, parente próximo ou vizinho). Com a prosa clara, direta e sincera reconhecida no belo romance O Vento Que Arrasa (Cosac Naify), Almada investiga as histórias dessas mulheres esquecidas em ritmo de romance policial, através do contato com familiares, pesquisas em livros e jornais, reflexão e imaginação – recorrendo até mesmo a uma certa senhora que lê no tarô as vidas passadas das mulheres mortas. E é esta senhora quem oferece uma chave para simbolizar o livro: La Huesera, a Mulher dos Ossos. 

“É uma velha muito velha que vive em certo esconderijo da alma. Uma velha chucra que cacareja com as galinhas, canta como os pássaros e emite outros sons mais animais do que humanos. Sua tarefa consiste em catar ossos. Ela recolhe e guarda tudo aquilo que periga se perder. Sua choupana está cheia de ossos de todos os tipos de animais. Mas seus preferidos são os ossos dos lobos. Para encontrar um, ela é capaz de caminhar por quilômetros e mais quilômetros, galgar montanhas, atravessar rios, queimar a sola dos pés nas areias do deserto. De volta à sua choupana com a braçada de ossos, ela monta o esqueleto. Quando La Huesera põe a última peça no lugar e a figura do lobo resplandece diante dos seus olhos, ela se senta junto ao fogo e se põe a pensar que canção cantará. Quando se decide, ergue os braços sobre o esqueleto e principia seu canto. À medida que canta, os ossos vão se forrando de carne; e a carne, de couro; e o couro, de pelos. Ela continua a cantar, e a criatura ganha vida, começa a respirar, seu rabo se estica, abre os olhos, dá um salto e sai correndo da choupana. A certa altura da sua corrida vertiginosa, seja pela velocidade, seja porque mergulha nas águas de um rio para atravessá-lo, seja porque o luar o apanha em cheio num flanco, o lobo se transforma numa mulher que corre livremente rumo ao horizonte, rindo às gargalhadas. Talvez seja esta a sua missão: recolher os ossos das garotas, armá-las, dar-lhes voz e depois deixá-las correr livremente para onde tiverem que ir.”

Nascida em uma cidadezinha da província de Entrerríos, Almada trouxe novidade à literatura argentina ao buscar histórias longe da cosmopolita Buenos Aires – seus personagens são pequenos e pobres, vozes cujas tragédias foram desossadas. Sua prosa está contaminada pelo calor mormacento dessas cidades abafadas, onde há pouca perspectiva: trabalhos mecânicos, a onipresente igreja (católica ou pentecostal), tradições sem sentido no século 21, melodramas dos programas sensacionalistas na TV, o sonho de fugir para longe. 

Tirando o sotaque argentino, é fácil reconhecer o Brasil profundo em seus livros. O horror é parecido com o nosso – 12 mulheres são assassinadas todos os dias no Brasil; na Argentina, a média é de um feminicídio a cada 29 horas.

E o horror precisa ser olhado, várias vezes, para que nunca volte a se repetir. Mas também precisamos olhar para as meninas que encararam aquele horror de perto, e que não tiveram tempo de escapar. “Acho que o que nós precisamos é reconstruir o jeito como o mundo olhava para elas. Se conseguíssemos saber como elas eram vistas, como eram olhadas, vamos saber qual era o olhar que elas tinham sobre o mundo, entende?”, questiona Selva Almada. O prodígio de Garotas Mortas não reside somente em se constituir como inventário de horrores, mas sobretudo como máquina de lembranças, trazendo as histórias dessas mulheres de volta à vida. *É escritor e jornalista, autor do romance 'Escalpo' (editora Reformatório), entre outros 

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