No conto A Legenda de São Julião Hospitaleiro, Gustave Flaubert conta que o santo conheceu uma felicidade sobre-humana e que o teto de sua casa se foi enquanto o firmamento se abria. Nesse momento, Julião, ou Juliano, subiu aos espaços azuis, abraçado a Nosso Senhor Jesus Cristo. O nome do santo deriva de jubilus, “júbilo”, e a sua história poderia ser resumida numa frase: aquele que sobe ao Céu com júbilo.
No diário O Culpado: Seguido de A Aleluia, escrito durante a 2.ª Guerra e recentemente publicado, Georges Bataille (1897-1962) também narra, por meio de notas breves, uma experiência mística, porém o que ele vê não é o firmamento, mas uma falha (a ferida do inacabamento), que de repente se abre sob seus pés. Partindo do sentimento da ausência de Deus, o escritor não mostra o asceta subindo ao Céu, uma vez que, para ele, o homem é o ápice de um desastre e não de uma felicidade sobre-humana. “Um prostíbulo é minha verdadeira igreja”, diz Bataille, “a única suficientemente intranquilizadora.” A experiência mística e a erótica são comuns nessa igreja, porém não são iguais. Enquanto a primeira promete um êxito pleno, a segunda culmina na depressão e na aversão, pois excede as forças humanas.
Resta saber quando a experiência mística atinge o pleno êxito, já que o sujeito batailliano é acossado por um tormento que não conhece apaziguamento. Gargalhando e beijando, entre os escombros da guerra, esse sujeito se liberta, ou seja, perde-se a si mesmo (não é mais ele mesmo nem o outro), atingindo um tipo de êxtase. Porém, na desordem das páginas do seu diário, o autor não deseja confundir suas orgias com sua vida mística, mas reconhece que o leitor poderá ficar no escuro (desorientado): “Quero descrever uma experiência mística e só me afasto disso em aparência, mas quem discerniria um caminho no caos que introduzo?” Um dos temas de O Culpado (segundo volume da Suma Ateológica, constituída de outros dois livros: A Experiência Interior, Autêntica, 2016; e Sobre Nietzsche, que sairá em breve) parece ser, assim, a confissão de que o autor só é capaz de descrever bastante mal sua experiência. O discurso místico de Bataille assume sem pudor o “inacabado” e faz sua própria forma dar testemunho dele. O “imperfeito” talvez tenha sido enfatizado na edição brasileira, pois, numa decisão arriscada, Fernando Scheibe (que, além de tradutor, é organizador) optou por não traduzir o termo “chance” (sorte/acaso), o qual aparece numerosas vezes. O leitor depara-se, por conta disso, com frases mais “inacabadas” do que as do original: “todo valor era chance, dependia de chances que ele existisse, dependia de chances que eu o encontrasse.”
Contudo, Bataille também deseja clareza e precisão, sobretudo porque quer mostrar que a sua experiência é contrária a dois tipos de excesso: o do erotismo, que, como já disse, é oneroso demais e leva à miséria, e o dos estados místicos extáticos, que impõem maus-tratos contra si mesmo. Assim, o sujeito batailliano quer manter-se afastado do que acarreta a ruína material (a orgia) e a ruína moral (a ascese tradicional), propondo trilhar o caminho da austeridade, que é mais sóbrio. Mas o autor do diário é volúvel e logo desqualifica essa proposta de um caminho alternativo: “Se penso agora na mesma imagem sinto asco.” E explica: “Recuso-me a me tornar hostil, de olhos cavos, emagrecido. Se for esse o meu destino, não posso fugir, porém tampouco posso suportá-lo.”
A partir desse ponto, Bataille explora exaustivamente o conceito de “inacabado”, afirmando que “lá onde o conhecimento buscou o ser, ele encontrou o inacabado”. Resta ao homem culpado (sem a perfeição de Deus) essa ferida que não lhe permite ficar isolado ou trancado em si mesmo; só Deus, por ser imaginário, é acabado. Os seres imperfeitos são os que se comunicam uns com os outros, ideia que parece antecipar Peter Sloterdijk, um filósofo contemporâneo que, na sua trilogia Esferas, cujo primeiro volume, Bolhas, saiu no Brasil recentemente, critica a dogmática de uma solidão primária do ser humano e afirma que a experiência da comunhão (a relação com o semelhante) é fundamental. A vida amorosa do autor é, por isso mesmo, o tema de A Aleluia, que completa O Culpado.
Bataille declara, no capítulo mais revelador do diário, O Ponto de Êxtase, que ele quis e encontrou o êxtase, e oferece finalmente a via para que outros o alcancem também: “Chamo o meu destino de o deserto, e não temo impor esse mistério árido. Esse deserto que alcancei, desejo-o acessível a outros, outros a quem, decerto, ele faz falta.” Mas alerta: “O êxtase não explica nada, não justifica nada, não ilumina nada.” Abre a ferida, ou seja, torna tudo inacabado, num universo em que cada parte não tem menos sentido do que o conjunto.
*Sérgio Medeiros é poeta, ensaísta e professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, 'A Idolatria Poética e a Febre de Imagens' (Iluminuras, 2017)
O Culpado, seguido de A Aleluia Autor: Georges BatailleTradutor: Fernando ScheibeEditora: Autêntica 296 páginas R$ 59,80