Cláudia Abreu orgulha-se de uma conquista: seu espetáculo Virginia completou 60 apresentações desde a estreia, em julho do ano passado. “Minha satisfação é por ser meu primeiro monólogo em cena e também meu primeiro texto teatral”, conta ela, que estará em cartaz até 30 de abril no teatro Tuca, em São Paulo.
A peça é o resultado de muita pesquisa e reflexão sobre a escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941), cuja obra alterou as bases estruturais da prosa romanesca de sua época. Dona de um estilo inovador, Virginia construiu uma escrita brilhante em meio a uma vida marcada por desequilíbrio mental, tragédias pessoais e vários problemas. A literatura, portanto, funcionou como uma válvula de escape, na qual o fluxo de consciência marca os diálogos e as tramas.
Foi essa pluralidade de vozes que inspirou Cláudia a escrever o monólogo, que começa no exato instante em que Virginia afunda no Rio Ouse, graças às pedras colocadas nos bolsos de seu casaco, consumando enfim o suicídio há muito desejado. “É nesse instante que ela ouve vozes familiares, fazendo um retrospecto de sua vida”, conta Cláudia em conversa com Ubiratan Brasil.
Desse longo convívio com Virginia Woolf, qual foi seu aprendizado?
Passei a refletir mais sobre condição mental e emocional de pessoas que saem da curva: elas logo se tornam um estigma. Quando se tem um problema físico, é normal buscar ajuda de um profissional. Mas, se o problema é mental, muitas vezes a pessoa se fecha e não procura auxílio, pois seria o mesmo que exibir uma falha. Parece que você é mais frágil, mais desequilibrado que os outros. Lembro de uma prima de meu avô que, por ser ‘diferente’, viveu anos escondida.
Mas a situação melhorou?
Sim, hoje felizmente se pensa de forma mais humana. Na peça, há uma fala importante da irmã de Virginia que traça esse limiar: “Até que ponto alguém é louco ou quase louco?”. Essa é uma reflexão constante da peça e a genialidade da obra literária de Virginia nasceu disso, de pensar constantemente sobre sua situação. Sua sensibilidade era tamanha e se reflete em seus livros, que traduzem bem sua consciência de sentir e pensar além. O excesso de lucidez sempre é visto como loucura. Para Virginia, a literatura foi sua salvação, pois refletia sobre sua condição, mas foi também o abismo marcado pelo suicídio.
Como seu texto dialoga com o da Virginia?
Pelo fluxo de consciência. Um dos motivos que a levaram ao suicídio foram as vozes que ela dizia ouvir sem parar. Na peça, o fluxo é formado por vozes que marcaram a vida dela e isso ajuda a contar sua história. E, quando deixo de falar como Virginia e assumo outro personagem, o presente se impõe. Tive essa percepção durante os ensaios, a montagem ficou dinâmica, mais forte. São muitas camadas de sentimentos.
Você tem preferência por alguma obra dela?
Entre os romances, prefiro As Ondas por seu texto mais subjetivo, sem diálogos, com potente força poética. Ela faz uma descrição muito profunda de sentimentos, tanto de si mesma como da realidade. São sensações muito íntimas, mas Virginia consegue traduzir em palavras com muita precisão. Parecia que ela estava descrevendo o meu eu profundo. Muitas lembranças que perdi foram recuperadas a partir da leitura de seus textos. Virgínia não deixa escapar nada.
E o que dizer da condição feminina?
Virginia foi uma das primeiras feministas, pois refletia sobre a condição da mulher. Ela poderia ter ficado paralisada diante da situação, como era normal na época, mas preferiu escrever, da mesma forma que fizeram Jane Austen e as irmãs Brönte. Virginia conseguiu dar voz para situações muito delicadas. Veja o romance Orlando, em que trata da transposição de gênero. Isso foi em 1928! Virginia pensou em falar do assunto de uma forma popular, uma atitude corajosa. Já em Mrs Dalloway, ela escreve sobre o desejo feminino, refletindo sobre uma questão pessoal ao tratar da relação entre mulheres baseada em sua paixão pela também escritora Vita Sackville-Wes. Assumir seu desejo por meio da escrita é um ato de modernidade.
Mas a situação não mudou muito, não?
Infelizmente não alterou muito nos últimos 100 anos. Basta lembrar do tiro que Malala recebeu simplesmente por querer estudar. No Brasil, ainda há muito o que se resolver na relação entre homem e mulher. Lembro de uma frase de Simone Beauvoir, cujo sentido vale para diversas situações. Ela dizia: “Em uma guerra, a mulher é a primeira a perder seus direitos”, ou seja, é obrigada a abrir mão de seus sonhos. Isso ainda é muito atual.