Há 40 anos, Daniela Mercury subia pela primeira vez em um trio elétrico, sozinha no carnaval de Salvador em um veículo meio improvisado para “um bloco menorzinho, que chamava menos atenção”, como lembra ao Estadão. No próximo domingo, 22, ela celebra esse marco que considera o início de sua carreira com um show épico e único na Apoteose, no Rio de Janeiro, onde fará um enorme tributo ao Axé e a si mesma, com as participações de Ivete Sangalo, Luísa Sonza, Olodum, Bloco Ilê Ayé, Banda Didá e mais.
“Eu me lembro que era tudo tão novo, tão diferente e tecnicamente mambembe, que foi extremamente desafiador. Mas como eu era bailarina, tinha uma bagagem de palco desde pequena e isso me deu um pouco de tranquilidade”, conta a artista, que se apresentava nos barzinhos soteropolitanos desde os 15 anos.
O local da comemoração não foi escolhido por acaso. Foi também na Apoteose que, há exatos 30 anos e poucos meses depois de balançar o vão do Masp, ela reuniu pela primeira vez um público de 35 mil pessoas em um show que mais tarde foi veiculado na Globo e reconhecido como o grande responsável por apresentar a batida nordestina da Axé Music ao resto do Brasil e Daniela ao resto do mundo. Com a setlist apoiada na sequência de sucessos do disco O Canto da Cidade, a artista se tornou nas décadas seguintes uma presença fixa nas rádios, TVs e no gosto do público.
“Não tinha probabilidade e não foi grana. A imprensa perguntava o que era aquilo e eu falava que fazia ‘música percussiva baiana’”, lembra, sobre quando ficou espantada com o próprio sucesso, à revelia das gravadoras que não queriam divulgar seu som. “Quando cheguei na Apoteose, não conseguia entender por que aquela gente estava ali. Perguntei: ‘Quem vai fazer show comigo? De onde veio essa gente toda?’ ‘É pra você, Daniela.’ Eu chorei”, conta, ainda emocionada. “Meus joelhos batiam de nervoso.”
Rainha do Axé
Pergunte a qualquer chat de inteligência artificial e a resposta será a mesma: Daniela Mercury é a Rainha do Axé, título que carrega desde os anos 1990. Hoje, ela defende que o ritmo pode não carregar o mesmo nível de exposição, mas isso não significa que ele tenha perdido a relevância, apenas foi diluído em outras misturas rítmicas pelas novas gerações. “Já vem misturado. No fundo, são variações de várias coisas. São novas gerações inspiradas na gente”, afirma.
“A gente vive em outro mundo hoje. Para essa geração lá atrás, a rádio era fundamental”, avalia. “O que virou esse mundo pós-internet, das plataformas e das mudanças de paradigma... Pra gente, que já vinha com uma trajetória, caiu o mundo, mudou tudo. Foi muito diferente.”
‘Nunca disse isso a ninguém’
Durante a entrevista, Daniela revela pela primeira vez que já pensou em desistir de se apresentar no carnaval, época em que sua agenda fica lotada de shows por todo o Brasil e a rotina do trio elétrico demanda o esforço de uma maratona olímpica. “Eu tinha o plano de que, quando conseguisse formatar minha carreira e ganhar o Brasil, eu ia largar o carnaval. Já pensei nisso várias vezes. Várias vezes.”
O sucesso d’O Canto da Cidade e o impacto que ele teve na promoção da folia baiana, felizmente, fizeram com que ela mudasse de ideia. “Fui responsável por promover o carnaval da Bahia de uma maneira tão grande, que isso mudou o olhar do público e 500 mil pessoas começaram a vir para cá”, diz.
Hoje, ela sequer cogita abandonar os trios: “Confirmei nesses dois últimos anos sem carnaval que eu não sei viver sem carnaval. É como a frase d’O Canto da Cidade diz, ‘eu sou o carnaval’”.
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Família
Esta semana, Daniela comemora também dez anos de casada com a jornalista Malu Verçosa. Além da presença da esposa, ela também vai receber no palco da Apoteose a filha Giovana e o filho Gabriel Mercury, de 37 e 38 anos, ambos com participações especiais em momentos pontuais do show. Apesar da felicidade desse momento em família, a artista não deixa de se preocupar com o avanço do Projeto de Lei que tenta proibir o casamento homoafetivo na Câmara dos Deputados.
“Obviamente, nesse momento em que o mundo vive uma guerra, vou desejar que a nossa música ressoe amor e união. É muito importante pra gente ter esse direito garantido. Que essa fantasia seja eterna, quem sabe um dia a paz vença a guerra”, diz, acrescentando que “acredita no Supremo Tribunal Federal”.
Gal Costa
Ao longo da conversa, Daniela é ocasionalmente interrompida por latidos ao fundo. É a cadelinha Gal Costa, uma vira-lata recém-adotada que batizou em homenagem à amiga e uma de suas maiores inspirações desde o início da carreira. “Quando subi no trio elétrico pela primeira vez, a música que eu mais toquei foi ‘Festa do Interior’ (gravada por Gal no disco Fantasia, de 1981)”, lembra.
Há dois anos, elas gravaram juntas o frevo “Quando o carnaval chegar”, uma homenagem a Luís Gonzaga. O nome da cadelinha, Daniela conta, recebeu a bênção da própria Gal. “Quando Gal tava viva, falou com ela e adorou. Ô, fiquei emocionada”, diz, limpando uma lágrima no canto dos olhos. “Foi minha forma de homenageá-la. "
Música popular de protesto
“É um show para homenagear a cultura brasileira, todos os músicos que fizeram isso comigo”, resume Daniela sobre a apresentação na Apoteose. Depois de anos ouvindo das gravadoras que não faria sucesso, ela diz manter o mesmo mote do início da carreira: “Só me interessava fazer uma música que falasse contra o racismo, fosse mais política e ligada à MPB. Me sinto muito orgulhosa de ter tido coragem de manter-me firme, lutando por algo que ninguém acreditava e anos depois disseram ser uma ‘música fácil’”.
“Quero que você lembrem dessas mensagens, de crença e fé. O canto dessa cidade sou eu, é o canto de todas as mulheres, de todos os oprimidos, de todos os LGBTs também. Que seja de todos que precisam de paz, amor e força.”