A experiência de ter sido analisada por Jacques Lacan e questões da sua própria identidade foram o combustível para que a psicanalista e escritora Betty Milan escrevesse a peça Adeus Doutor, em 1990. Agora, a peça ganha sua primeira montagem – depois de leituras no Brasil e na França – em Nova York, onde estreou na semana passada, produzida pela atriz, roteirista e cineasta Barbara Riethe, que interpreta a protagonista Seriema, em parceria com a companhia Psykout!. “A verdadeira obra literária não é datada”, diz Betty à repórter Marcela Paes. Leia abaixo a entrevista com Milan.
Qual foi a sua maior inspiração para escrever ‘Adeus Doutor’?
Primeiro eu escrevi um romance chamado Papagaio Doutor, que foi publicado no Brasil, depois na França e na Argentina. Eu escrevi quando voltei para a França, depois de muitos anos de ter feito a minha análise com o Lacan, mas é inspirado na minha análise com ele. Anos depois, eu quis que a questão passasse pro teatro e retomei o tema da imigração, da maternidade e do gênero. A Seriema (principal personagem da peça) é uma mulher que, por ser uma ocidental moderna, não se identifica com os ancestrais de origem oriental. Ela é descendente, como eu, de imigrantes libaneses que se radicaram no Brasil. O problema dela é o contrário do problema da maioria das mulheres, ela não se identifica com o gênero ao qual o sexo biológico dela a destina. Então, os temas da peça são de grande atualidade.
A peça então tem um viés autobiográfico?
Tem, claro. É profundamente inspirada na minha própria história. Encontrei o Lacan nos anos 1970 e trabalhei com ele de 74 a 78. Esses temas são de grande atualidade, mas já estavam na minha história pregressa. A verdadeira obra literária não é datada. A peça foi montada em Nova York, mas já foi transformada em filme, e já foi lida na França e no Brasil. Isso acontece por causa da universalidade da obra.
A psicanálise nunca foi tão popular. Há muito mais gente falando sobre assunto em redes sociais, por exemplo.
Isso é verdade no Brasil e talvez na Argentina, mas na França não. O que acontece é que tem muita gente dizendo que faz psicanálise lacaniana, que trabalhou com Lacan, mas não é verdade. Só quem trabalhou com o Lacan, que eu saiba, foi o Paulo Emílio Sales Gomes, marido de Lígia Fagundes Teles, e o Magno Machado Dias, com quem eu fundei o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, e eu. É preciso que o analisando seja de fato escutado, e a maioria dos profissionais são orientadores, são coachs, são diretores de consciência, mas não são analistas. O que o analista faz é induzir o analisando a interpretar a sua própria história. Cada um de nós tem uma história que é uma epopeia, mas é preciso chegar à ela.
Ser escritora lhe ajudou já com a psicanálise? E o contrário, a psicanálise a ajudou como escritora?
Claro. É um tipo muito particular de escrita a que eu faço, que é influenciada pela minha escuta arguta, porque fui formada para isso. É uma escrita que estiliza a oralidade e privilegia a rememoração. A meta da psicanálise é rememorar para não repetir. A influência da literatura na psicanálise também foi grande. Lacan dizia ‘não sou suficientemente poeta para ser um grande analista’. Ele era poeta, claro. O James Baldwin, que estou lendo agora, tem fragmentos que são a definição perfeita do inconsciente, da tendência à repetição, da bissexualidade profunda. Nós somos todos bissexuais. Somos tão cruéis quanto capazes de compaixão, somos seres absolutamente contraditórios e o grande romancista é capaz de dar conta disso. Por isso, é muito aconselhável que os psicanalistas em formação se valham da literatura.
Diria que é impossível ser um bom psicanalista sem ser um leitor?
Com certeza. Aliás, esse tempo do privilégio absoluto da imagem vai passar. As pessoas vão voltar pro livro, porque na literatura a gente atinge mais profundidade do que no cinema. São searas diferentes, mas a seara da leitura não pode ser abandonada.
A experiência de ser analisada pelo Lacan foi algo marcante na sua vida?
Graças à minha análise eu pude aceitar as minhas origens. Eu tinha feito análise antes no Brasil e tinha muito preconceito em relação às minhas origens. Não suportava ser chamada de turca, aliás, com toda a razão, porque os libaneses não imigraram por acaso, eles imigraram por causa do império otomano. A análise com o Lacan me permitiu vencer a autoxenofobia. Aliás, nas primeiras sessões o Lacan me fez falar das minhas origens, e foi aí que eu resolvi fazer análise com ele. Eu larguei tudo pra fazer análise com ele. Isso permitiu que eu aceitasse minhas origens, me tornasse mãe, permitiu, portanto, que eu aceitasse meu sexo biológico sem abrir mão do essencial. Foi uma experiência decisiva.