Avesso a homenagens, Ney Matogrosso acabou cedendo à tentação de um tributo aos seus 50 anos de carreira quando o produtor Marco Mazzola lhe vendeu a ideia como parte do 3º Rio Montreux Jazz Festival. “Homenagem é uma coisa que me deixa meio assim, mas não posso impedir que aconteçam algumas”, diz ao Estadão.
Aos 82 anos, Ney terá uma celebração no melhor dos estilos na quinta-feira, 12, com um show inédito e exclusivo no Morro da Urca, no Rio de Janeiro, e a participação das artistas Liniker, Filipe Catto, Ana Cañas e Duda Brack, escolhidas a dedo pelo próprio homenageado. “São nomes que eu conheço, admiro, gosto e são completamente inesperados juntos.”
No meio século desde que cantou pela primeira vez com o Secos & Molhados e se lançou na carreira musical, a arte, o corpo e o entorno de Ney obviamente mudaram, mas “o espírito” permanece. “Não me acomodei e não vou me acomodar nunca, porque não tem graça uma vida assim.”
A ferocidade com que ele se rende ao público também não mudou, nem seu peito aberto (em todos os sentidos) ou o vai-e-vem dos seus quadris. Pioneiro rebelde do movimento hoje chamado LGBT+, ele enfrentou a censura da ditadura militar exibindo orgulhoso sua sexualidade nos palcos e fora deles, algo que faz até hoje. “A libido ainda existe. Não sei explicar como nem porquê, mas ainda existe. Talvez por eu sempre ter exercitado isso”, diz com naturalidade. “Enquanto eu estiver vivo e puder…”
A música mais recente de Ney foi lançada há sete dias, uma versão ainda mais dramática de “Máscara”, clássico rock do repertório de Pitty e relançado agora em sua voz para celebrar os 20 anos do disco Admirável Chip Novo. “Seja você, mesmo que seja estranho”, diz o refrão. “É sobre esse mesmo assunto (de liberdade sexual) que a gente tá falando”, explica sobre a conexão que sentiu com a letra.
Ao Direto da Fonte, Ney Matogrosso comenta o gosto agridoce da homenagem aos seus 50 anos na música, nega qualquer arrependimento ou vontade não vivida até aqui, conta o impacto das perdas recentes de nomes próximos como Gal Costa e Rita Lee e por que nunca haverá outro Cazuza (nem outro Ney).
O que lembra do seu primeiro ano de estreia na música e, comparando com o ínicio, o que mais mudou e o que permanece?
Meu primeiro ano na música foi com o Secos & Molhados. De lá pra cá, muita coisa mudou, né? Já são 50 anos, é muito tempo. O espírito é o mesmo. Eu não estou acomodado. Não me acomodei e não vou me acomodar nunca, porque não tem graça uma vida assim.
Por que você escolheu esses nomes?
Esse show é uma iniciativa do Mazzola. Eu apenas ajudei a selecionar as pessoas que achei que poderiam ser interessantes. São nomes que eu conheço, admiro, gosto e são completamente inesperados juntos. Homenagem é uma coisa que me deixa meio assim, mas não posso impedir que aconteça algumas. Então, já que vai acontecer, me envolvi nesse sentido. Esse show não vai passar por outros lugares, vai ser uma coisa única, ali no Morro da Urca.
Que, por si só, já é um cenário único também.
Sim. Eu já cantei muito ali, mas antigamente não tinha aquele teatro ali. Era ao ar livre, o que também era interessante. Mas estou falando nos anos 1970. Eu só subia lá quando tinha que cantar, porque tenho muito medo daquele bonde. Você se vê lá no ar e me dava nervoso ver que ele tinha que se encaixar no quadradinho. Oscila pra lá, oscila pra cá, mas entra. (risos)
O show será em um festival de jazz, mas você já transitou por vários gêneros musicais ao longo da carreira. Tem algum que te atrai mais?
É jazz mais ou menos. Nem lá na Suíça era exclusivamente jazz. Eu mesmo já fui lá várias vezes, com trabalhos bem distintos que estava fazendo na minha vida. Mas não tenho isso, gosto de tudo. Sou da música e a música brasileira toda me interessa. No começo, eu achava que não poderia cantar forró por não ser do Nordeste, mas isso é uma bobagem. Eu sou do Brasil e é música brasileira. Não tenho problema com nenhum estilo de música daqui.
As participações da Filipe Catto e da Liniker me chamaram atenção porque elas encabeçam hoje um movimento de artistas LGBTQIA+ na música brasileira e você foi um dos pioneiros desse debate. O que vê de mudanças no cenário daquela época para hoje? Acha que as pessoas ficaram mais ou menos caretas nos últimos quatro anos?
Eu acho que hoje em dia já se olha para isso com mais naturalidade. O público, por quatro anos, ficou careta. Não o público em si, mas a mentalidade que conduzia isso. Independente disso, essas pessoas são muito vistas e têm muita gente que vai aos shows delas. Isso é o normal, sabe? Eu não sou trans, mas as pessoas têm o direito de ser o que elas quiserem. E ninguém escolhe isso também. Precisamos acabar com essa mentalidade idiota. Você nasce desse jeito e pronto.
Essa questão da liberdade sexual é algo que te acompanha desde o início, tanto em cima do palco ou fora dele, seja no figurino, na dança ou na forma como você se comunica com o público. Isso mudou para você ao longo do tempo até hoje, com 82 anos?
A libido ainda existe. Não sei explicar como nem porquê, mas ainda existe. Talvez por eu sempre ter exercitado isso. Algumas pessoas chegam a certa idade e não querem nem exercitar a libido mais, mas eu acho bom, saudável. Estou vivo, não morri ainda. Enquanto eu estiver vivo e puder…
Você acaba de lançar sua releitura para “Máscara”, da Pitty, que foi escolhida por ela para você cantar. O que te atraiu nessa música?
A letra, exatamente. Seja quem você quiser, tire suas máscaras. É sobre esse mesmo assunto que a gente tá falando. E eu gosto muito da Pitty, sempre a admirei à distância. Nos encontramos poucas vezes, mas nos últimos anos temos nos visto mais por causa dos shows em festivais. Fico muito impressionado, porque ela dá uma introdução de uma música e o povo canta inteira.
A inteligência artificial parece um caminho sem volta na arte. O que acha disso?
Sim, entendo que seja. Mas quando vi a Elis Regina, achei estranho aquilo. Quando me vi (no Fantástico), também achei estranho. Não tem vida, né? Agora, isso é uma pontinha da história, porque tudo é muito mais profundo e abrangente. Um amigo estava comigo no chatGPT e ele pediu para escrever um soneto sobre Ney Matogrosso, na minha frente. Em menos de um minuto veio um negócio pronto, respeitando as métricas e sílabas, fiquei chocado. Daqui a pouquinho pode ficar independente da gente. Muito louco isso.
A ideia de alguém usar a inteligência artificial para fazer algo seu no futuro, como um cover ou uma música, te incomoda?
Não pode ser vendido como eu. Nunca.
Muitos artistas ao longo dos anos têm se autodeclarado ou sido chamados de “Cazuza da nova geração”. Você que o conheceu de forma tão íntima, pessoal e profissionalmente, acha que algum nome é digno desse título?
Acho que isso nunca vai existir, porque ninguém nunca pode ocupar o lugar de ninguém. Isso é uma bobagem, não há necessidade. Cada um vai gerar seu próprio espaço. Nunca será o Cazuza, como nunca será outro cantor. Só acho bobo querer isso. Nunca vai ter outro Ney, outra Gal,outro Chico, outro Caetano…
Falando em Gal, nos últimos anos tivemos um baque atrás dos outros com a perda de grandes nomes da música brasileira. Você que já sobreviveu à ditadura, à epidemia do HIV e a tantas outras perdas, essas mortes recentes te atingem de alguma forma diferente hoje em dia?
Foi muita gente e é muito triste para nós. É como se a gente tivesse empobrecendo, né? Claro que sinto. Agora, eu aceito a morte. Fui obrigado a ter uma aceitação da morte quando meus amigos morriam por dia, sabe? Mas isso não significa que eu não sinta e não lamente a ausência dessas pessoas.
Ao longo desses 50 anos de carreira, ficou algum arrependimento ou vontade ainda não concretizada?
Não. Arrependimento nenhum de nada, mesmo. Sempre fiz tudo que acreditei que deveria fazer, então não me sinto com nada faltando. Agora, outras coisas virão. Ainda não acabei. Não sei dizer qual será um próximo passo, mas haverá um próximo passo.