O Torcicologologista, Excelência é um livro bem difícil. É difícil de ler e mais difícil ainda de explicar, de definir. É difícil porque é original, porque não se parece com nada, é único. Portanto, exige esforço na leitura.
Gonçalo M. Tavares é um escritor que produz muito, sempre com muita qualidade, que passeia livremente por uma gama enorme de possibilidades estéticas e é capaz de lidar brilhantemente com qualquer tipo de conteúdo. Em cada uma de suas obras, ele parece ser um autor diferente, embora seja sempre o inconfundível Gonçalo Tavares, que, neste livro, vai fundo na banalidade do mundo e na questão da sagrada inutilidade da arte.
O Torcicologologista, Excelência não é um livro para ser lido relaxadamente, pelo simples prazer da leitura ou pelo mero entretenimento intelectual. Mais do que para ser lido, é um livro para ser pensado. É um livro que exige o pensamento do leitor que, inevitavelmente, acaba se mesclando ao pensamento do texto.
A primeira parte do volume é construída a partir de uma série de diálogos entre dois seres (humanos?), que se tratam cerimoniosamente por “Excelência”, sem que se explique qualquer razão para a pompa. Da mesma forma, os dois bizarros personagens não possuem qualquer característica física ou psicológica. Os personagens 1 e 2 são feitos de linguagem pura. E sobre o que dialogam nossas “Excelências”? Sobre nada. Quer dizer, sobre tudo.
É assim: elas desenvolvem pensamentos profundos sobre temas banais para logo depois falarem coisas banais sobre temas profundos. E nós, leitores, peças de um jogo literário dos mais intricados, quando percebemos, estamos inventando nossos próprios diálogos interiores a partir do que nos é proposto pelos dois seres torcicologologistas.
Logo de cara, no primeiro diálogo, Sobre a Revolução, tema tão caro às mais brilhantes mentes na história da humanidade, somos assolados pela certeza absoluta de que não chegaremos a lugar algum. Ou que chegaremos apenas à pueril conclusão de que, para fazer uma revolução, devemos, “pois, ter uma mão livre e na outra uma pedra. E essa pedra pode ser utilizada para dois objetivos: partir um vidro ou uma cabeça.” Conclusões como esta, já no começo do livro, chegam a causar irritação, pois transformam conceitos complexos, como “Revolução”, em algo totalmente vazio, em desfile de palavras. É assim com o conceito “Revolução”, é assim com conceitos tão complexos quanto: “Tempo”, “Espaço”, “Linguagem”, “Corpo”, “Vida”, “Morte”, “Justiça”, “Liberdade”, “Deus”. Dessa forma, as “Excelências” 1 e 2, percorrendo caminhos cheios de curvas fechadas, chegam mesmo a provocar torcicolo no leitor com seus pensamentos “patafísicos”*, tais como:
“A gula é um pecado auditivo.” – “Um é um, dois é dois. Um é a metade de dois.” – “Um corpo que não obedece à boa lógica da contabilidade é um corpo ANIMALESCO.” – “Uma conversa entre surdos é uma conversa em que os dois trocam definições.” – “Todos temos um enorme passado à nossa frente.”
Trata-se de finíssima filosofia grouxomarxista aplicada à falta de sentido em todo conhecimento humano. O Torcicologista, Excelência revela que a realidade mais real é totalmente nonsense, afinal “tudo o que é sério tem dois lados divertidos”. Estranhamente naturalistas, os personagens 1 e 2 “em vez de trocarem argumentos, trocam conclusões”. Já na segunda parte do livro – A Cidade – a banalidade da existência é levada ao ponto máximo, com pessoas/números (Número 1, Número 2, Número 3, Número 4 etc.) vivendo a naturalidade de seus afazeres, como se o pensamento não mais existisse, apenas a realidade concreta:
“O Número 2 não para de falar. O Número 4 está entediado. O Número 10 tem um câncer, mas disse aos pais que vai se curar. O Número 15 grita. O Número 6 está na internet. O Número 29 é uma mulher.”
Assim, a realidade objetiva e o pensamento provocado pela linguagem estão o tempo todo discutindo no corpo do livro. Nos Diálogos, só há pensamento. Em A Cidade só há fatos concretos, sem qualquer racionalização.
No final de tudo, Gonçalo M. Tavares prova com sua linguagem rebelde que a arte e o pensamento são tarefas inúteis e, por isso mesmo, são também as maiores realizações do ser humano, esse animal ambicioso, que cria universos complexos a partir da mais ínfima banalidade. O Torcicologologista, Excelência cria o imprevisto dentro da razão. É literatura subversiva, que enfeitiça, que torna insuportável a nossa realidade absurda.
*Patafísica é a “ciência das soluções imaginárias” – filosofia anarquista criada por Alfred Jarry, escritor e dramaturgo francês do início do século 20, autor da peça Ubu Rei.
André Sant'Anna é escritor, roteirista de publicidade, cinema e TV, além de autor dos livros 'Sexo e Amizade' e 'O Brasil É Bom', ambos pela Companhia das Letras
O Torcicologologista, Excelência Autor: Gonçalo M. TavaresEditora: Dublinense 256 páginas R$ 39,90