Há cerca de 70 mil anos, o vulcão Toba, localizado em Sumatra, na Indonésia, entrou em erupção. O evento, de escala oito no índice de explosividade vulcânica (IEV), foi tão catastrófico que faria a destruição de Pompeia pelo Vesúvio (um mero cinco no IEV), em 79 d.C., parecer fichinha. Como resultado, a então jovem espécie humana, que ainda engatinhava para fora da África, quase foi extinta, tendo sido reduzida a algo próximo de 10 mil indivíduos. Graças a esse gargalo evolutivo, hoje há mais variabilidade genética entre dois chimpanzés de uma mesma colônia do que entre dois seres humanos de continentes distintos.
Se somos tão semelhantes, por que há tanto preconceito? É isso que o livro Racismos: Das Cruzadas ao Século XX, do historiador português Francisco Bethencourt, professor do King’s College, em Londres, se propõe a entender. Calcado em inúmeros exemplos e examinando um amplo intervalo de tempo, a obra é um monumental estudo das manifestações de racismo ao longo da história e leva em consideração as diferenças e semelhanças entre os modelos de colonização, a relação entre religião e raça, e como a ciência foi usada para embasar as teorias hierárquicas.
A tese do pesquisador é que todas as ações discriminatórias dos últimos séculos foram estimuladas por governos e movidas por fins políticos, territoriais e econômicos. Sobre a obra, o professor Bethencourt concedeu entrevista ao Aliás:
Independente do preconceito baseado em estereótipos, as ações discriminatórias contra certos grupos sempre foram incentivadas pelos Estados? O que procurei demonstrar no livro é que não existe um racismo atávico inato a todos os seres humanos e que o racismo é o preconceito de origem étnica combinado com ações discriminatórias. Meus colegas da academia que trabalham com psicologia defendem que o preconceito é social, então do ponto de vista histórico eu não tenho mais a avaliar sobre o preconceito. Tenho que avaliar a partir da ação discriminatória. Procurei demonstrar historicamente onde é que o racismo aparece, pois não é difuso. Me concentrei mais no caso ocidental, mas para mim ele aparece sempre ligado a uma luta pela monopolização dos recursos econômicos, sociais e políticos. Há sempre um movimento político por trás de ações racistas. Para manter uma ordem social na qual elementos da população estão debaixo de uma hierarquia, como aconteceu nos Estados Unidos com a população de origem africana e o racismo que tenta justificar sua situação inferior. Em outros casos, como os armênios no Império Otomano, são populações competitivas, e o racismo, como se vê na 1.ª Guerra, com o massacre da população armênia, tem a ver com exclusão, controle de território e afirmação da nacionalidade turca. Portanto o racismo pode manifestar-se de maneira a justificar hierarquias ou promover exclusões e estar ligado ao nacionalismo, mas em todos os casos está embasado por atos políticos.
O racismo advém da intolerância religiosa, a precede ou ambos sugiram independentemente e foram mutuamente alimentados? Eu acho que são dois processos que se cruzam, a intolerância religiosa e o racismo. Em certas circunstâncias, existe uma racialização de religiões que competem com a religião dominante, e portanto há um cruzamento entre os processos. No caso do racismo em relação aos africanos, que vinham de partes diferentes da África e pouco tinham de relação entre eles, foram racializados pela visão europeia ocidental que tinha a ver com uma divisão internacional do trabalho, que procurava justificar uma situação de escravatura e uma hierarquia. No caso da religião, é um processo um pouco similar. Populações, por exemplo, muçulmanas começaram a ser racializadas e vistas como uma raça comum. Mas a religião islâmica cobre uma multiplicidade imensa de povos, e quase todos entram nessa mesma classificação, como se fossem uma raça, o que não faz sentido.
Como o modelo colonial ibérico no Brasil, voltado à expansão imperial e conversão religiosa, e o britânico nos EUA, motivado pelo lucro, geraram sociedades diferentes? O problema dos EUA é que define raça por hipodescendência, isto é, a pessoa pode ser considerada negra tendo uma ascendência africana muito tênue. No Brasil, a diferença é que não existe essa regra. É o elemento social que predomina. Se a pessoa for de classe média, mesmo que tenha uma tez não branca, é classificada como branca. O elemento social e econômico predomina. Mas numa sociedade como o Brasil as pessoas mais pobres são mais negras e, portanto, essa herança da escravatura se perpetua, pois quem nasce com essa origem e não tem oportunidade de subir na escala social está em uma espiral de pobreza. Há também o problema de quadro legal e institucional. Nos EUA, por exemplo, é verdade que o racismo foi muito mais rígido. Não quer dizer que o racismo brasileiro tenha sido menor. No livro, tive o cuidado de mostrar que o racismo era praticamente idêntico. Havia mais flexibilidade no Brasil justamente por causa da conversão forçada, que era também uma violência, mas até os escravos tinham alguma capacidade de petição. Havia uma margem de negociação que indica uma relativa integração, embora subordinada. Isso não se verificava nas colônias inglesas, em que os nativos americanos nunca foram integrados. Os EUA, apesar de tudo, têm um quadro legal claro, mesmo com as leis que favoreceram a exclusão da população negra ao voto depois da unificação. Mas nos anos 1960, com os movimentos pelos direitos civis, eles conseguiram ser integrados à legislação. Apesar de ser uma sociedade ainda com o preconceito muito entranhado, quando há uma pressão legislativa, ela é em geral implementada. Então há menos espaço para o racismo informal, relativamente.
As pesquisas demedição e comparação de características anatômicas tiveram como intuito apenas embasar pseudocientificamente alguns preconceitos já existentes na época? A ciência nunca está isolada dos preconceitos sociais, portanto essas pesquisas procuravam explicar e fornecer uma base científica para as formas de hierarquia, estudos de quantificação que são bastante enviesados. Depois se demonstrou como essas medições do crânio humano não tinham um critério científico. Os cientistas do século 18 tinham a noção de que o homem branco está no topo e que a espécie humana estava em progresso. Eles colocavam as raças em uma escala linear evolutiva. Mas nessa altura já há uma tentativa de pesquisa que não podemos descartar como sendo só preconceitos. Há transferências da literatura de viagem para o domínio científico. A ciência se desenvolve e, com Darwin, passa a se basear em evidências e conceitos mais sólidos. No século 19, alguns cientistas, não todos, como Prichard e o Humboldt, contestaram completamente a ideia de raças. Consideraram que não havia fronteira de raça e que não fazia sentido criar essas divisões. Para mim, o fundamental dessa rigidez, dessa visão compartimentada de raças e perfeitamente racista é que surge após as revoluções de 1848 na Europa e as lutas nos EUA que vão dar origem à Guerra Civil, e também coincide com o desenvolvimento do comunismo inglês e na Ásia. O período por volta de 1848 que vai dar uma reação na Europa de movimentos mais conservadores, como Arthur de Gobineau, que é um resultado imediato de 1848, e procura provar que a natureza é desigual e as raças são desiguais, aliás o título do livro dele é Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas, e é uma reação extremamente conservadora contra os ideais de igualdade que avançaram em 1848. Nos EUA, é a mesma história: a ideia de que, desde a concepção da raça humana, havia uma hierarquia de raças desde o início, que não se altera, para se justificar a escravatura. Por isso o século 19 é um período revelador, porque contra toda a expectativa anterior, como mostram Prichard e Humboldt, que eram críticos das teorias raciais, surgem teorias mais rígidas do que no século anterior, que servem a projetos políticos.
Como a descoberta da seleção natural e da evolução, algo que ia contra o pensamento conservador, acabou por embasar justamente o evolucionismo social, que justificava a escravidão, violência e hierarquização das raças? Darwin rompeu com as visões compartimentadas das espécies animais, com as visões criacionistas de que as espécies tinham sido criadas e estavam aqui desde o início, e mostrou que estamos em permanente evolução. Mas, por outro lado, penso que o evolucionismo social está também com Darwin, embora ele não o tivesse desenvolvido tanto quanto outros no século 19. O primeiro texto de Darwin foi A Viagem do Beagle, porque foi a primeira viagem científica, foi a volta ao mundo e tem a observação de populações nativas da Terra do Fogo, de outras partes da Polinésia, da África do Sul e de outras partes do mundo. Quando ele esteve no Rio de Janeiro, era abolicionista convicto e ficou indignado com as punições severas aos escravos. Mas, em outros lugares, é curioso porque a sua capacidade científica é enviesada. Naquela época já havia outros autores para compreender os contatos interculturais. E ele se deixa influenciar por Malthus, considera que essas populações com vida comunitária viviam no mais abjeto primitivismo e sobreviviam com poucas condições justamente porque não havia propriedade privada, que é o que permitiria o desenvolvimento econômico e social. A ideia de que essas populações iriam acabar por desaparecer provém desse pensamento, de que as diferentes raças humanas não iriam conseguir se adaptar ao novo mundo.
Houve um período em que cristãos, mouros e judeus conviveram de uma forma relativamente pacífica na Península Ibérica e na Sicília? O que mudou para que os monarcas passassem a perseguir esses povos? Bem, nunca foi completamente pacífico. Há livros que contestam essa ideia da convivência pacífica, que estava muito instalada na historiografia espanhola, mas é verdade que foi relativamente menos conflituosa do que depois do século 14. Há que se comparar o que se passou em Portugal na Espanha com o que se passou no resto da Europa. Durante as cruzadas, houve expulsão de judeus em diversas cidades da Alemanha, por exemplo. Depois, houve na Inglaterra e, um século mais tarde, na França. E depois surgiram as conversões forçadas na Espanha e isso criou uma realidade completamente diferente porque houve esse impulso de converter à força os judeus, integrá-los e depois, mesmo assim, são discriminados. E é essa tensão permanente que torna o caso espanhol e português diferente dos outros casos europeus.
Por que a Inquisição não perseguiu os nativos recém-convertidos na América espanhola, ao contrário do que ocorreu no Brasil, na Índia e com os mouriscos e cristãos-novos na Península Ibérica? Há alguns acontecimentos históricos que nos fazem refletir, porque enquanto na península ibérica a perseguição de cristãos-novos e mouriscos foi desenvolvida durante bastante tempo, praticamente dois séculos e meio. Houve projetos que excluíam cristãos-novos e mouriscos de empregos públicos. De fato, na iberoamérica, talvez pela instituição de uma sociedade colonial, e é verdade que os processos coloniais foram extremamente violentos e extirparam populações, mas por outro lado esses projetos coloniais eram frágeis e portanto existia ali alguma base de discussão. Essa relativa fragilidade, que contrasta com a violência cotidiana dos projetos coloniais, explica, a meu ver, esta opção de excluir os nativos americanos dos tribunais da inquisição espanhola.