Não é novidade que a literatura de Haruki Murakami incorpora a 2° Guerra Mundial como pano de fundo de suas narrativas. Entretanto, na novela Abandonar Um Gato (Alfaguara), o escritor trabalha essa atmosfera da guerra a partir da perspectiva familiar, isto é, filho de um professor convocado pelo serviço militar (o pai serviu apenas um ano, pois logo ingressou na Universidade), Murakami foi criado sob a influência de conflitos como as guerras Sino-Japonesa e a do Pacífico. Os sobreviventes das guerras, na literatura, voltam a esse tempo, como em Matadouro Cinco, do norte-americano Kurt Vonnegut (1922 – 2007). Outro exemplo é a poesia soturna do sérvio Charles Simic. São obras que retratam a violência que devastou a Europa no período, como Simic, que retrata a dura infância quando fala dos brinquedos, como galhos de árvore que representavam rifles. Em Abandonar Um Gato, Murakami logo no início nos conta quando uma gata aparece na casa de sua família e o pai, rígido docente (que, em suas palavras, foi amansando ao longo da vida), resolve abandonar o animal em uma praia. O garoto lamenta, mas a decisão do patriarca (na composição da tradicional família japonesa) é palavra de ordem.
Quando o gato reaparece em sua casa, primeiro vem o espanto. Como o animal havia percorrido a distância entre o litoral e a morada em menos tempo que os humanos? O pai, finalmente, cede e passa a conviver com o mascote. No Japão, a figura do Maneki Neko (gato que convida) é uma lenda difundida na cultura do país até hoje. A história remete ao período Edo (1603 – 1867), quando um sacerdote do templo Gotoku-ji cuidava de um felino que salvou um samurai de um raio durante uma tempestade. Murakami reflete sobre si a partir das lembranças do pai e joga luz em episódios da infância que revelam uma visão já poética da vida. Volta a histórias do pai durante o serviço militar e oferece ao leitor haicais atribuídos à figura. Embora ficção, os relatos evocam sua biografia, a influência literária do pai e as marcas que a guerra deixa em um país.
Ele lembra de quando a juventude nazista visitou o Japão, mostra o destino inexorável do conflito: “Os jovens hitleristas , que naquele instante se divertiam no Japão, talvez tenham encontrado seu fim no rigoroso inverno do front Leste”. Em vários momentos, o escritor, hoje com 73 anos, relembra a arquitetura devastada pelos anos de guerra. “Meu pai se formou na Escola Seizan na primavera de 1941 e, no final de setembro, recebeu um aviso de convocação extraordinária. Foi assim que voltou, no dia 3 de outubro, ao serviço militar”. E sobre a vivência no front, Murakami cita outros escritores que, como o pai, lá estiveram, como Tsutomu Mizukami (1919-2004) e Noburo Suzuka (1887-1971), o mestre de haicai. Ao longo de Abandonar Um Gato, o autor traz os pequenos poemas japoneses que fazem referência ao tempo em que o Japão mandava seus homens aos campos de batalha, como este de Suzuka: Varão, eu serei/mais um vez escudo/outono da nação/Chiaki . Traduzida em mais de 50 idiomas, a obra de Haruki Murakami atravessou fronteiras e mostra o diálogo bem sucedido do escritor com o Ocidente (que, inclusive, lhe rendeu críticas de autores japoneses). Best-sellers, os livros da trilogia 1Q84 ao, agora clássico, Crônica de Um Pássaro de Corda, trazem sempre protagonistas ligados às letras. Abandonar Um Gato é considerado pela crítica como trabalho mais intimista do escritor japonês e mostra que os traumas da guerra são inevitáveis não só para aqueles que a viveram, como seus descendentes.