Mick Jagger assiste à cena ainda incrédulo. No meio de uma pancadaria entre o público que assiste a um show dos Rolling Stones, uma faca aparece ao longe e um jovem fã negro identificado mais tarde como Meredith Hunter é assassinado por um dos integrantes do Hell´s Angels, grupo contratado para prover a segurança de um dos mais infames concertos dos Stones. A cena fez parte do famoso documentário Gimme Shelter, dirigido pelos irmãos David e Albert Maysles e também Charlotte Zwerin. Considerado ao lado de Don´t Look Back, sobre Bob Dylan, como um dos melhores documentários sobre a cena do rock, Gimme Shelter será apresentado na TV brasileira amanhã, às 21 h, pelo canal de TV paga HBO. Os irmãos Maysles (David morreu em 1997 e Alfred continua na ativa) foram chamados pelos Stones para filmar a turnê americana deles em 1969. Um dos pontos altos seria o show gratuito no Autódromo de Altamont, na Califórnia, no começo da noite de 6 de dezembro. Mas os problemas começaram dias antes, com a discussão do estacionamento para o evento, uma vez que um fazendeiro local teria voltado atrás. No dia fatídico, em que 850 pessoas ficaram feridas e duas perderam suas vidas, os irmãos Maysles colocaram sua equipe de cameramen em todas as frentes. Entre os profissionais empunhando as câmeras no meio da multidão e flagrando Marty Balin, a vocalista da banda Jefferson Airplane, que tocou antes dos Stones, sendo agredida verbalmente pelo público e os Hell´ Angels, estavam dois futuros nomes famosos: o cineasta George Lucas e o editor e especialista em som Walter Murch, que venceu Oscars por O Paciente Inglês e Apocalypse Now. Em entrevista ao Estado, Charlotte Zwerin, que dirigiu vários filmes com os irmãos Maysles e mais recentemente fez documentários sobre Thelonious Monk, Ella Fitzgerald e o compositor japonês Tori Takemitsu, diz que Gimme Shelter deveria ser visto por todos os organizadores de shows gratuitos e que eventos como o Altamont continuam a ocorrer, como foi o caso recente do show do Pearl Jam em Roskilde, Dinamarca, em que nove fãs morreram espremidos contra o palco. Alfred Maysles, ainda também na ativa, é co-diretor de um dos documentários que concorrem ao Oscar domingo. Trata-se de Lalee´s Kin: The Legacy of Cotton, que acompanha a história de uma apanhadora de algodão analfabeta do Mississippi. Confira a entrevista com Charlotte. Estado - Em que estágio da produção de Gimme Shelter a senhora entrou? Charlotte Zwerin - Logo depois que David e Al filmaram nos EUA e um pouco antes de eles irem para Londres para filmar a mixagem do disco Get Your Ya-Ya´s Out, dos Stones. No prólogo de Gimme Shelter podemos ver três dos Rolling Stones assistindo às cenas do fatídico clímax do concerto de Altamont. Qual foi o clima na sala edição naquele dia? E quem teve a idéia de os Stones assistirem à própria performance? Fui eu quem sugeriu. Desde que eles iam mostrar a versão preliminar do filme para os Stones, por que não convidá-los para vê-lo na máquina de edição e documentar a reação deles? Isso nos daria a oportunidade de mostrar a eles certas cenas mais de uma vez e, talvez, conseguir uma reação mais pensativa e filosófica. Todos chegaram separados, exceto Keith que não foi, e tiveram respostas muito diferentes. Mick estava muito preocupado a respeito da exibição pública do filme. Os Stones vinham sendo acusados de ter causado os assassinatos em Altamont e achavam que o filme só aumentaria a reação negativa em cima deles. Como a senhora os convenceu do contrário? Estava bastante convencida de que, mostrando a preocupação deles no filme, ajudaria as pessoas a entenderem que os Stones foram surpreendidos numa situação na qual não tinham nenhum controle. É verdade que eles não foram isentos de culpa, mas apontar o dedo somente na direção deles parecia-me injusto. Também achei que precisávamos deixar claro para o público no começo de Shelter que aquele não era tipicamente um filme sobre um show, e as cenas da ilha de edição deixavam isso bem claro. Foi David quem finalmente conseguiu convencer os Stones de que o filme limparia a barra deles a respeito de Altamont e eles finalmente disseram sim. Famosos críticos de cinema da época como Vincent Canby e Pauline Kael escreveram comentários maldosos em suas resenhas sobre Gimme Shelter, dizendo que o documentário capitalizava em cima da desgraça alheia. Como vocês reagiram as críticas deles na época? Aparentemente, o filme não esclareceu o evento para a satisfação de Canby, Kael e outros. Eles pareceram-me ultrajados pelo fato de que incluímos as cenas do assassinato. Mas como fazer um documentário de um show amplamente propagandeado e deixar de fora o fato central, que é um assassinato? Gimme Shelter ainda é um documentário extremamente relevante. Por que a senhora acredita que ele não ficou datado como alguns filmes sobre o cenário do rock? Existem lições a serem aprendidas com Shelter. É por isso que ele se torna relevante hoje em dia. Existiram inúmeras mudanças no concertos de rock depois de Altamont, mas eventos como aquele de 1969 continuaram a acontecer e vão ainda acontecer no futuro. Acho que o filme deveria ser visto por qualquer organizador de um megashow gratuito. A senhora tem um filme sobre concerto favorito? E, a propósito, quais são os documentaristas que representam uma nova voz hoje no cinema? Além de Shelter, meu documentário musical favorito é Don´t Look Back. E meus documentaristas preferidos ainda continuam a ser os mesmos: Maysles, (D.A.) Pennebaker, (Chris) Hegedus, (Frederick) Wiseman e (Richard) Leacock. A senhora dirigiu há três anos um documentário sobre o grande músico japonês Toru Takemitsu, que também compôs trilha sonoras de filmes de Akira Kurosawa, Hiroshi Teshigahara e Nagisa Oshima. Por que decidiu tê-lo como tema? Ele foi um grande homem e aprendi muito coisa com ele. Toru me ensinou muto sobre ritmo e silêncio num filme. Antes da estréia de Gimme Shelter, em 1970, houve alguma ameaça dos integrantes do Hell´s Angels? Aparentemente eles fizeram muitas ameças, mas nunca recebi uma diretamente. Encontrei alguns deles anos mais tarde num show do Grateful Dead. Acho que eles acabaram esquecendo de tudo, porque eu ainda estou por aqui.