'Homens culpam mulheres desde Adão e Eva', diz historiadora Rebecca Solnit


Ativista pelo feminismo foi responsável pelo termo 'mansplaining' e tem dois livros publicados no Brasil

Por André Cáceres
A historiadora, escritora e ativista norte-americana Rebecca Solnit Foto: Jude Mooney

Dar nome às coisas é uma etapa importante da resolução de um problema. A expressão “assédio sexual” foi cunhada em 1974, mas o conceito foi difundido apenas nos anos 1990, nos informa a historiadora norte-americana Rebecca Solnit em A Mãe de Todas as Perguntas, lançado em março deste ano nos EUA. “Novos reconhecimentos exigem uma nova linguagem, e o feminismo cunhou uma imensidão de termos para descrever as experiências individuais que passaram a sair dos seus esconderijos durante os debates dos anos 1960 e 1970”, escreve a ativista. 

Nomear uma experiência individual também é o que motivou seu ensaio mais popular, Os Homens Explicam Tudo Para Mim, que originou o termo “mansplaining” – embora ele não tenha sido cunhado por Rebecca –, incluído no dicionário Oxford em 2014, ano da publicação do livro nos EUA (o ensaio principal foi escrito em 2008). 

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Por e-mail, a autora falou ao Aliás sobre as ideias que norteiam ambos os livros, que recebem edições no Brasil em agosto. 

Ambos os livros começam com exemplos pessoais. Essa é uma estratégia, criar empatia? O ensaio em língua inglesa descende dos sermões da Igreja, nos quais o pregador escolhe uma frase ou passagem da Bíblia e explora o seu significado. Hoje, nós pegamos um incidente da vida e fazemos o mesmo. Comece com o particular. Interrogue-o para ver quais princípios gerais podem se erguer dele, em quais padrões se encaixa, o que nos diz sobre o mundo mais amplamente. É claro que à vezes eu faço o caminho inverso, e uso um princípio geral para encontrar as particularidades que lançam luz sobre ele. 

A violência contra a mulher ainda é um padrão na sociedade. O que pode mudar a mentalidade, quando nem as leis parecem funcionar? A premissa desses ataques, pequenos e grandes, é que homens têm o direito de controlar as mulheres, puni-las, usá-las para seu próprio prazer. A violência é autoritária, e homens que assassinam suas mulheres, namoradas e ex-parceiras garantiram para si uma autoridade totalmente ilegítima, como a de um deus, sobre se essas mulheres devem viver ou morrer. Há soluções práticas na aplicação da lei, mas somente mudar o sistema de crenças subjacentes vai alterar o padrão. Que mulheres são iguais a homens, que nenhum de nós tem o direito de tirar uma vida, que a violência é um sinal de fraqueza, não de força, que todos têm o direito de autodeterminação, incluindo encerrar um relacionamento, recusar sexo e controlar seu corpo, são três coisas pelas quais mulheres são frequentemente espancadas e, às vezes, assassinadas.

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No Brasil, muitas pessoas que não apoiam o feminismo creem que ele é uma espécie de preconceito contra homens. Como o feminismo pode solucionar esses mitos e concepções equivocadas? Há direitos humanos suficientes para todos! Outros tendo acesso a direitos não significa que eles estão sendo roubados do seu monte, a menos que você pense que os seus incluem direitos sobre outras pessoas, direito a dominá-las, tratá-las como inferiores. O feminismo é simplesmente a crença de que mulheres são pessoas que possuem os mesmos direitos e capacidades e é uma campanha de direitos humanos para assegurar a segurança das mulheres, seu acesso ao trabalho, educação, saúde, jurisdição sobre seus próprios corpos e dignidades. Ele não opõe mulheres e homens. Ele opõe todos nós que acreditamos nos direitos das mulheres contra aqueles que os negam, e há tanto mulheres quanto homens em ambos os lados. Mas eu sempre vejo no meu próprio país a ideia de que o feminismo está tentando tirar algo dos homens, ao mesmo tempo que não se quer reconhecer o que está sendo tirado: os direitos de mestres sobre escravos e servos, os benefícios da desigualdade. Eu também acredito que os papéis convencionais de gênero podem limitar o que é permitido a cada um de nós pensar, fazer, ser e desfrutar, e o feminismo é uma parte de um projeto libertador mais amplo que pode libertar homens também. 

Por que a sociedade tende a culpar as vítimas em vez dos criminosos em casos de assédio sexual e estupro? Homens têm culpado as mulheres desde que Adão culpou Eva, e aquele modelo feminino como tentação e masculino como incapaz de resistir ou não responsável pela resistência está por trás disso. O desejo masculino, nós somos ensinados, é como a natureza, algo que eles não podem controlar, e as mulheres têm a responsabilidade de não provocar a natureza. Ainda temos garotas em escolas ensinadas a não usar roupas que “distraiam os garotos”, enviando a mensagem de que meninas são responsáveis pelos pensamentos e ações dos meninos, e eles não o são. A ideia de um desejo irresistível pode facilmente ser desconstruída pelo fato de que estupradores fazem o que fazem quando creem que vão sair impunes. Estupradores não violentam alguém no meio de uma loja de conveniência. É um crime de oportunidade e uma assertiva de que seus direitos são infinitos e os dela não existem, de que seus direitos se estendem até para dentro das fronteiras dos corpos delas. É também um crime do qual eles esperam sair impunes e muito frequentemente saem. No final das contas, por que a sociedade culpa as vítimas? “Até que o leão aprenda a escrever, todas as histórias glorificarão o caçador.” Para usar essa metáfora, meus livros são histórias por e para as leoas. 

Você acredita que o feminismo enfrenta dificuldades para se explicar em termos simples para as pessoas comuns? Não! Mulheres têm direitos, mulheres têm o mesmo valor, mulheres não são uma classe subserviente, são conceitos claros e diretos que eu discuti entre habitantes de vilarejos na área rural do Nepal, revolucionários zapatistas indígenas na selva de Lancadon, no México, entre pessoas em todos os lugares. A ideia de autodeterminação é uma ideia clara e importante que eu acho que todos os seres humanos compreendem.

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Um de seus ensaios, ‘Elogio à Ameaça’, relaciona brilhantemente o sexismo à resistência conservadora ao casamento gay. Você pode descrever como a união entre pessoas do mesmo gênero ameaça a hierarquia estabelecida na “família tradicional”? O casamento tradicional é baseado na ideia de que homens e mulheres são radicalmente diferentes e têm funções distintas na cama, na casa, na família, no mundo (e normalmente que o homem é o chefe, o que tem poder superior). Se duas pessoas do mesmo gênero podem se casar, então os papéis não são inerentes: com duas mulheres e dois homens, não há funções predeterminadas, nem regras quanto a quem limpa a casa e quem toma as decisões. O termo “casamento igualitário” era normalmente usado para significar que esses casais têm direitos iguais aos heterossexuais. Para mim, contudo, essa é uma frase reveladora que também significa igualdade dentro do casamento. 

Capa do livro 'Os Homens Explicam Tudo Para Mim', de Rebecca Solnit 

Os Homens Explicam Tudo para Mim Autora: Rebecca SolnitTradução: Isa Mara LandoEditora: Cultrix 208 páginas R$ 34

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Capa do livro 'A Mãe de Todas as Perguntas', de Rebecca Solnit 

A Mãe de Todas as Perguntas Autora: Rebecca SolnitTradução: Denise BottmannEditora: Companhia das Letras 164 páginas R$ 39,90

A historiadora, escritora e ativista norte-americana Rebecca Solnit Foto: Jude Mooney

Dar nome às coisas é uma etapa importante da resolução de um problema. A expressão “assédio sexual” foi cunhada em 1974, mas o conceito foi difundido apenas nos anos 1990, nos informa a historiadora norte-americana Rebecca Solnit em A Mãe de Todas as Perguntas, lançado em março deste ano nos EUA. “Novos reconhecimentos exigem uma nova linguagem, e o feminismo cunhou uma imensidão de termos para descrever as experiências individuais que passaram a sair dos seus esconderijos durante os debates dos anos 1960 e 1970”, escreve a ativista. 

Nomear uma experiência individual também é o que motivou seu ensaio mais popular, Os Homens Explicam Tudo Para Mim, que originou o termo “mansplaining” – embora ele não tenha sido cunhado por Rebecca –, incluído no dicionário Oxford em 2014, ano da publicação do livro nos EUA (o ensaio principal foi escrito em 2008). 

Por e-mail, a autora falou ao Aliás sobre as ideias que norteiam ambos os livros, que recebem edições no Brasil em agosto. 

Ambos os livros começam com exemplos pessoais. Essa é uma estratégia, criar empatia? O ensaio em língua inglesa descende dos sermões da Igreja, nos quais o pregador escolhe uma frase ou passagem da Bíblia e explora o seu significado. Hoje, nós pegamos um incidente da vida e fazemos o mesmo. Comece com o particular. Interrogue-o para ver quais princípios gerais podem se erguer dele, em quais padrões se encaixa, o que nos diz sobre o mundo mais amplamente. É claro que à vezes eu faço o caminho inverso, e uso um princípio geral para encontrar as particularidades que lançam luz sobre ele. 

A violência contra a mulher ainda é um padrão na sociedade. O que pode mudar a mentalidade, quando nem as leis parecem funcionar? A premissa desses ataques, pequenos e grandes, é que homens têm o direito de controlar as mulheres, puni-las, usá-las para seu próprio prazer. A violência é autoritária, e homens que assassinam suas mulheres, namoradas e ex-parceiras garantiram para si uma autoridade totalmente ilegítima, como a de um deus, sobre se essas mulheres devem viver ou morrer. Há soluções práticas na aplicação da lei, mas somente mudar o sistema de crenças subjacentes vai alterar o padrão. Que mulheres são iguais a homens, que nenhum de nós tem o direito de tirar uma vida, que a violência é um sinal de fraqueza, não de força, que todos têm o direito de autodeterminação, incluindo encerrar um relacionamento, recusar sexo e controlar seu corpo, são três coisas pelas quais mulheres são frequentemente espancadas e, às vezes, assassinadas.

No Brasil, muitas pessoas que não apoiam o feminismo creem que ele é uma espécie de preconceito contra homens. Como o feminismo pode solucionar esses mitos e concepções equivocadas? Há direitos humanos suficientes para todos! Outros tendo acesso a direitos não significa que eles estão sendo roubados do seu monte, a menos que você pense que os seus incluem direitos sobre outras pessoas, direito a dominá-las, tratá-las como inferiores. O feminismo é simplesmente a crença de que mulheres são pessoas que possuem os mesmos direitos e capacidades e é uma campanha de direitos humanos para assegurar a segurança das mulheres, seu acesso ao trabalho, educação, saúde, jurisdição sobre seus próprios corpos e dignidades. Ele não opõe mulheres e homens. Ele opõe todos nós que acreditamos nos direitos das mulheres contra aqueles que os negam, e há tanto mulheres quanto homens em ambos os lados. Mas eu sempre vejo no meu próprio país a ideia de que o feminismo está tentando tirar algo dos homens, ao mesmo tempo que não se quer reconhecer o que está sendo tirado: os direitos de mestres sobre escravos e servos, os benefícios da desigualdade. Eu também acredito que os papéis convencionais de gênero podem limitar o que é permitido a cada um de nós pensar, fazer, ser e desfrutar, e o feminismo é uma parte de um projeto libertador mais amplo que pode libertar homens também. 

Por que a sociedade tende a culpar as vítimas em vez dos criminosos em casos de assédio sexual e estupro? Homens têm culpado as mulheres desde que Adão culpou Eva, e aquele modelo feminino como tentação e masculino como incapaz de resistir ou não responsável pela resistência está por trás disso. O desejo masculino, nós somos ensinados, é como a natureza, algo que eles não podem controlar, e as mulheres têm a responsabilidade de não provocar a natureza. Ainda temos garotas em escolas ensinadas a não usar roupas que “distraiam os garotos”, enviando a mensagem de que meninas são responsáveis pelos pensamentos e ações dos meninos, e eles não o são. A ideia de um desejo irresistível pode facilmente ser desconstruída pelo fato de que estupradores fazem o que fazem quando creem que vão sair impunes. Estupradores não violentam alguém no meio de uma loja de conveniência. É um crime de oportunidade e uma assertiva de que seus direitos são infinitos e os dela não existem, de que seus direitos se estendem até para dentro das fronteiras dos corpos delas. É também um crime do qual eles esperam sair impunes e muito frequentemente saem. No final das contas, por que a sociedade culpa as vítimas? “Até que o leão aprenda a escrever, todas as histórias glorificarão o caçador.” Para usar essa metáfora, meus livros são histórias por e para as leoas. 

Você acredita que o feminismo enfrenta dificuldades para se explicar em termos simples para as pessoas comuns? Não! Mulheres têm direitos, mulheres têm o mesmo valor, mulheres não são uma classe subserviente, são conceitos claros e diretos que eu discuti entre habitantes de vilarejos na área rural do Nepal, revolucionários zapatistas indígenas na selva de Lancadon, no México, entre pessoas em todos os lugares. A ideia de autodeterminação é uma ideia clara e importante que eu acho que todos os seres humanos compreendem.

Um de seus ensaios, ‘Elogio à Ameaça’, relaciona brilhantemente o sexismo à resistência conservadora ao casamento gay. Você pode descrever como a união entre pessoas do mesmo gênero ameaça a hierarquia estabelecida na “família tradicional”? O casamento tradicional é baseado na ideia de que homens e mulheres são radicalmente diferentes e têm funções distintas na cama, na casa, na família, no mundo (e normalmente que o homem é o chefe, o que tem poder superior). Se duas pessoas do mesmo gênero podem se casar, então os papéis não são inerentes: com duas mulheres e dois homens, não há funções predeterminadas, nem regras quanto a quem limpa a casa e quem toma as decisões. O termo “casamento igualitário” era normalmente usado para significar que esses casais têm direitos iguais aos heterossexuais. Para mim, contudo, essa é uma frase reveladora que também significa igualdade dentro do casamento. 

Capa do livro 'Os Homens Explicam Tudo Para Mim', de Rebecca Solnit 

Os Homens Explicam Tudo para Mim Autora: Rebecca SolnitTradução: Isa Mara LandoEditora: Cultrix 208 páginas R$ 34

Capa do livro 'A Mãe de Todas as Perguntas', de Rebecca Solnit 

A Mãe de Todas as Perguntas Autora: Rebecca SolnitTradução: Denise BottmannEditora: Companhia das Letras 164 páginas R$ 39,90

A historiadora, escritora e ativista norte-americana Rebecca Solnit Foto: Jude Mooney

Dar nome às coisas é uma etapa importante da resolução de um problema. A expressão “assédio sexual” foi cunhada em 1974, mas o conceito foi difundido apenas nos anos 1990, nos informa a historiadora norte-americana Rebecca Solnit em A Mãe de Todas as Perguntas, lançado em março deste ano nos EUA. “Novos reconhecimentos exigem uma nova linguagem, e o feminismo cunhou uma imensidão de termos para descrever as experiências individuais que passaram a sair dos seus esconderijos durante os debates dos anos 1960 e 1970”, escreve a ativista. 

Nomear uma experiência individual também é o que motivou seu ensaio mais popular, Os Homens Explicam Tudo Para Mim, que originou o termo “mansplaining” – embora ele não tenha sido cunhado por Rebecca –, incluído no dicionário Oxford em 2014, ano da publicação do livro nos EUA (o ensaio principal foi escrito em 2008). 

Por e-mail, a autora falou ao Aliás sobre as ideias que norteiam ambos os livros, que recebem edições no Brasil em agosto. 

Ambos os livros começam com exemplos pessoais. Essa é uma estratégia, criar empatia? O ensaio em língua inglesa descende dos sermões da Igreja, nos quais o pregador escolhe uma frase ou passagem da Bíblia e explora o seu significado. Hoje, nós pegamos um incidente da vida e fazemos o mesmo. Comece com o particular. Interrogue-o para ver quais princípios gerais podem se erguer dele, em quais padrões se encaixa, o que nos diz sobre o mundo mais amplamente. É claro que à vezes eu faço o caminho inverso, e uso um princípio geral para encontrar as particularidades que lançam luz sobre ele. 

A violência contra a mulher ainda é um padrão na sociedade. O que pode mudar a mentalidade, quando nem as leis parecem funcionar? A premissa desses ataques, pequenos e grandes, é que homens têm o direito de controlar as mulheres, puni-las, usá-las para seu próprio prazer. A violência é autoritária, e homens que assassinam suas mulheres, namoradas e ex-parceiras garantiram para si uma autoridade totalmente ilegítima, como a de um deus, sobre se essas mulheres devem viver ou morrer. Há soluções práticas na aplicação da lei, mas somente mudar o sistema de crenças subjacentes vai alterar o padrão. Que mulheres são iguais a homens, que nenhum de nós tem o direito de tirar uma vida, que a violência é um sinal de fraqueza, não de força, que todos têm o direito de autodeterminação, incluindo encerrar um relacionamento, recusar sexo e controlar seu corpo, são três coisas pelas quais mulheres são frequentemente espancadas e, às vezes, assassinadas.

No Brasil, muitas pessoas que não apoiam o feminismo creem que ele é uma espécie de preconceito contra homens. Como o feminismo pode solucionar esses mitos e concepções equivocadas? Há direitos humanos suficientes para todos! Outros tendo acesso a direitos não significa que eles estão sendo roubados do seu monte, a menos que você pense que os seus incluem direitos sobre outras pessoas, direito a dominá-las, tratá-las como inferiores. O feminismo é simplesmente a crença de que mulheres são pessoas que possuem os mesmos direitos e capacidades e é uma campanha de direitos humanos para assegurar a segurança das mulheres, seu acesso ao trabalho, educação, saúde, jurisdição sobre seus próprios corpos e dignidades. Ele não opõe mulheres e homens. Ele opõe todos nós que acreditamos nos direitos das mulheres contra aqueles que os negam, e há tanto mulheres quanto homens em ambos os lados. Mas eu sempre vejo no meu próprio país a ideia de que o feminismo está tentando tirar algo dos homens, ao mesmo tempo que não se quer reconhecer o que está sendo tirado: os direitos de mestres sobre escravos e servos, os benefícios da desigualdade. Eu também acredito que os papéis convencionais de gênero podem limitar o que é permitido a cada um de nós pensar, fazer, ser e desfrutar, e o feminismo é uma parte de um projeto libertador mais amplo que pode libertar homens também. 

Por que a sociedade tende a culpar as vítimas em vez dos criminosos em casos de assédio sexual e estupro? Homens têm culpado as mulheres desde que Adão culpou Eva, e aquele modelo feminino como tentação e masculino como incapaz de resistir ou não responsável pela resistência está por trás disso. O desejo masculino, nós somos ensinados, é como a natureza, algo que eles não podem controlar, e as mulheres têm a responsabilidade de não provocar a natureza. Ainda temos garotas em escolas ensinadas a não usar roupas que “distraiam os garotos”, enviando a mensagem de que meninas são responsáveis pelos pensamentos e ações dos meninos, e eles não o são. A ideia de um desejo irresistível pode facilmente ser desconstruída pelo fato de que estupradores fazem o que fazem quando creem que vão sair impunes. Estupradores não violentam alguém no meio de uma loja de conveniência. É um crime de oportunidade e uma assertiva de que seus direitos são infinitos e os dela não existem, de que seus direitos se estendem até para dentro das fronteiras dos corpos delas. É também um crime do qual eles esperam sair impunes e muito frequentemente saem. No final das contas, por que a sociedade culpa as vítimas? “Até que o leão aprenda a escrever, todas as histórias glorificarão o caçador.” Para usar essa metáfora, meus livros são histórias por e para as leoas. 

Você acredita que o feminismo enfrenta dificuldades para se explicar em termos simples para as pessoas comuns? Não! Mulheres têm direitos, mulheres têm o mesmo valor, mulheres não são uma classe subserviente, são conceitos claros e diretos que eu discuti entre habitantes de vilarejos na área rural do Nepal, revolucionários zapatistas indígenas na selva de Lancadon, no México, entre pessoas em todos os lugares. A ideia de autodeterminação é uma ideia clara e importante que eu acho que todos os seres humanos compreendem.

Um de seus ensaios, ‘Elogio à Ameaça’, relaciona brilhantemente o sexismo à resistência conservadora ao casamento gay. Você pode descrever como a união entre pessoas do mesmo gênero ameaça a hierarquia estabelecida na “família tradicional”? O casamento tradicional é baseado na ideia de que homens e mulheres são radicalmente diferentes e têm funções distintas na cama, na casa, na família, no mundo (e normalmente que o homem é o chefe, o que tem poder superior). Se duas pessoas do mesmo gênero podem se casar, então os papéis não são inerentes: com duas mulheres e dois homens, não há funções predeterminadas, nem regras quanto a quem limpa a casa e quem toma as decisões. O termo “casamento igualitário” era normalmente usado para significar que esses casais têm direitos iguais aos heterossexuais. Para mim, contudo, essa é uma frase reveladora que também significa igualdade dentro do casamento. 

Capa do livro 'Os Homens Explicam Tudo Para Mim', de Rebecca Solnit 

Os Homens Explicam Tudo para Mim Autora: Rebecca SolnitTradução: Isa Mara LandoEditora: Cultrix 208 páginas R$ 34

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A Mãe de Todas as Perguntas Autora: Rebecca SolnitTradução: Denise BottmannEditora: Companhia das Letras 164 páginas R$ 39,90

A historiadora, escritora e ativista norte-americana Rebecca Solnit Foto: Jude Mooney

Dar nome às coisas é uma etapa importante da resolução de um problema. A expressão “assédio sexual” foi cunhada em 1974, mas o conceito foi difundido apenas nos anos 1990, nos informa a historiadora norte-americana Rebecca Solnit em A Mãe de Todas as Perguntas, lançado em março deste ano nos EUA. “Novos reconhecimentos exigem uma nova linguagem, e o feminismo cunhou uma imensidão de termos para descrever as experiências individuais que passaram a sair dos seus esconderijos durante os debates dos anos 1960 e 1970”, escreve a ativista. 

Nomear uma experiência individual também é o que motivou seu ensaio mais popular, Os Homens Explicam Tudo Para Mim, que originou o termo “mansplaining” – embora ele não tenha sido cunhado por Rebecca –, incluído no dicionário Oxford em 2014, ano da publicação do livro nos EUA (o ensaio principal foi escrito em 2008). 

Por e-mail, a autora falou ao Aliás sobre as ideias que norteiam ambos os livros, que recebem edições no Brasil em agosto. 

Ambos os livros começam com exemplos pessoais. Essa é uma estratégia, criar empatia? O ensaio em língua inglesa descende dos sermões da Igreja, nos quais o pregador escolhe uma frase ou passagem da Bíblia e explora o seu significado. Hoje, nós pegamos um incidente da vida e fazemos o mesmo. Comece com o particular. Interrogue-o para ver quais princípios gerais podem se erguer dele, em quais padrões se encaixa, o que nos diz sobre o mundo mais amplamente. É claro que à vezes eu faço o caminho inverso, e uso um princípio geral para encontrar as particularidades que lançam luz sobre ele. 

A violência contra a mulher ainda é um padrão na sociedade. O que pode mudar a mentalidade, quando nem as leis parecem funcionar? A premissa desses ataques, pequenos e grandes, é que homens têm o direito de controlar as mulheres, puni-las, usá-las para seu próprio prazer. A violência é autoritária, e homens que assassinam suas mulheres, namoradas e ex-parceiras garantiram para si uma autoridade totalmente ilegítima, como a de um deus, sobre se essas mulheres devem viver ou morrer. Há soluções práticas na aplicação da lei, mas somente mudar o sistema de crenças subjacentes vai alterar o padrão. Que mulheres são iguais a homens, que nenhum de nós tem o direito de tirar uma vida, que a violência é um sinal de fraqueza, não de força, que todos têm o direito de autodeterminação, incluindo encerrar um relacionamento, recusar sexo e controlar seu corpo, são três coisas pelas quais mulheres são frequentemente espancadas e, às vezes, assassinadas.

No Brasil, muitas pessoas que não apoiam o feminismo creem que ele é uma espécie de preconceito contra homens. Como o feminismo pode solucionar esses mitos e concepções equivocadas? Há direitos humanos suficientes para todos! Outros tendo acesso a direitos não significa que eles estão sendo roubados do seu monte, a menos que você pense que os seus incluem direitos sobre outras pessoas, direito a dominá-las, tratá-las como inferiores. O feminismo é simplesmente a crença de que mulheres são pessoas que possuem os mesmos direitos e capacidades e é uma campanha de direitos humanos para assegurar a segurança das mulheres, seu acesso ao trabalho, educação, saúde, jurisdição sobre seus próprios corpos e dignidades. Ele não opõe mulheres e homens. Ele opõe todos nós que acreditamos nos direitos das mulheres contra aqueles que os negam, e há tanto mulheres quanto homens em ambos os lados. Mas eu sempre vejo no meu próprio país a ideia de que o feminismo está tentando tirar algo dos homens, ao mesmo tempo que não se quer reconhecer o que está sendo tirado: os direitos de mestres sobre escravos e servos, os benefícios da desigualdade. Eu também acredito que os papéis convencionais de gênero podem limitar o que é permitido a cada um de nós pensar, fazer, ser e desfrutar, e o feminismo é uma parte de um projeto libertador mais amplo que pode libertar homens também. 

Por que a sociedade tende a culpar as vítimas em vez dos criminosos em casos de assédio sexual e estupro? Homens têm culpado as mulheres desde que Adão culpou Eva, e aquele modelo feminino como tentação e masculino como incapaz de resistir ou não responsável pela resistência está por trás disso. O desejo masculino, nós somos ensinados, é como a natureza, algo que eles não podem controlar, e as mulheres têm a responsabilidade de não provocar a natureza. Ainda temos garotas em escolas ensinadas a não usar roupas que “distraiam os garotos”, enviando a mensagem de que meninas são responsáveis pelos pensamentos e ações dos meninos, e eles não o são. A ideia de um desejo irresistível pode facilmente ser desconstruída pelo fato de que estupradores fazem o que fazem quando creem que vão sair impunes. Estupradores não violentam alguém no meio de uma loja de conveniência. É um crime de oportunidade e uma assertiva de que seus direitos são infinitos e os dela não existem, de que seus direitos se estendem até para dentro das fronteiras dos corpos delas. É também um crime do qual eles esperam sair impunes e muito frequentemente saem. No final das contas, por que a sociedade culpa as vítimas? “Até que o leão aprenda a escrever, todas as histórias glorificarão o caçador.” Para usar essa metáfora, meus livros são histórias por e para as leoas. 

Você acredita que o feminismo enfrenta dificuldades para se explicar em termos simples para as pessoas comuns? Não! Mulheres têm direitos, mulheres têm o mesmo valor, mulheres não são uma classe subserviente, são conceitos claros e diretos que eu discuti entre habitantes de vilarejos na área rural do Nepal, revolucionários zapatistas indígenas na selva de Lancadon, no México, entre pessoas em todos os lugares. A ideia de autodeterminação é uma ideia clara e importante que eu acho que todos os seres humanos compreendem.

Um de seus ensaios, ‘Elogio à Ameaça’, relaciona brilhantemente o sexismo à resistência conservadora ao casamento gay. Você pode descrever como a união entre pessoas do mesmo gênero ameaça a hierarquia estabelecida na “família tradicional”? O casamento tradicional é baseado na ideia de que homens e mulheres são radicalmente diferentes e têm funções distintas na cama, na casa, na família, no mundo (e normalmente que o homem é o chefe, o que tem poder superior). Se duas pessoas do mesmo gênero podem se casar, então os papéis não são inerentes: com duas mulheres e dois homens, não há funções predeterminadas, nem regras quanto a quem limpa a casa e quem toma as decisões. O termo “casamento igualitário” era normalmente usado para significar que esses casais têm direitos iguais aos heterossexuais. Para mim, contudo, essa é uma frase reveladora que também significa igualdade dentro do casamento. 

Capa do livro 'Os Homens Explicam Tudo Para Mim', de Rebecca Solnit 

Os Homens Explicam Tudo para Mim Autora: Rebecca SolnitTradução: Isa Mara LandoEditora: Cultrix 208 páginas R$ 34

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A Mãe de Todas as Perguntas Autora: Rebecca SolnitTradução: Denise BottmannEditora: Companhia das Letras 164 páginas R$ 39,90

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