Aniversário no escuro


Maltratado pelo governo de Minas, um ótimo suplemento chega sem festa aos 54 anos

Por Humberto Werneck
Atualização:

Sábio e sabedor, mestre Antonio Carlosuma vez mais vem socorrer a minha ignorância, notoriamente vasta e não especializada: não, o Suplemento Literário de Minas Gerais não é, no gênero, a publicação mais antiga do Brasil, posto ocupado pelo Correio das Artes, septuagenário encarte do jornal paraibano A União. Mas também nesse ranking não faz má figura, longe disso, o suplemento criado há mais de meio século pelo contista Murilo Rubião. Pena que seus 54 anos de existência, completados neste 3 de setembro, não possam ser celebrados, pois o SLMG, nascido e desde sempre editado sob as asas do governo mineiro e que, a partir dali, construiu prestígio não somente nacional, vive hoje o seu pior momento, mais sombrio do que alguns vividos ao tempo da ditadura militar.

Exagero? Então tente imaginar uma publicação que, elaborada no capricho por uma equipe tão competente quanto microscópica, nos últimos dois anos não teve uma única edição impressa e, desde o segundo semestre de 2019, sequer edição eletrônica. Certamente não por culpa do diretor do suplemento, o contista e romancista Jaime Prado Gouvêa que, na juventude, pertenceu à equipe de Murilo Rubião, com quem terá aprendido também a desafiadora arte de produzir publicação de qualidade nas entranhas de uma enferrujada burocracia estadual. O diretor, cujo time ultimamente se resume ao jornalista João Barile, dono de saudável inquietação intelectual, esteve no comando em outras ocasiões – nenhuma tão dramática quanto a atual. Viu o SLMG, nascido como encarte semanal do Minas Gerais, o diário oficial do Estado, ser empurrado de pouso em pouso, como enjeitado, e ter a sua periodicidade cruamente rarefeita. Quando circulou pela última vez, em papel ou na internet, o antigo semanário era bimestral. Hoje, relegado a um nicho na Biblioteca Pública Estadual, nem isso. 

*

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Minha indignação é dobrada pelo fato de que também eu participei de melhores tempos do Suplemento Literário, primeiro como colaborador, depois, por dois anos, como redator, numa equipe quatro vezes mais numerosa que a atual. Foram ali, sob o comando de Murilo Rubião, os meus começos como jornalista. A redação, no centenário prédio da hoje extinta Imprensa Oficial, ocupava uma sala cujo nome homenageava um jovem redator que por ali passou, Carlos Drummond de Andrade, o “Antônio Crispim”, “Barba Azul” ou “Mickey” que, entre aquelas paredes, escrevia crônicas para o Minas Gerais. Eu gostava de lembrar que ali ao lado, em 1930, foram rodados os 500 exemplares de Alguma Poesia, o livro de estreia do poeta, mediante desconto nos vencimentos do autor. E que, num galpão do prédio, na República Velha, um maluquinho usou seu peso de filho do governador para construir nada menos que um avião, só não chegando, aquele Santos Dumont retardatário, ao extremo de tentar fazer voar a geringonça.

Numa esquina no centro da cidade, nossa redação virou ponto de encontro para uma fartura de aspirantes à literatura, entre eles Sérgio Sant’Anna e Luiz Vilela, e também para veteranos como Emílio Moura, Francisco Iglésias, Affonso Avila e Bueno de Rivera. Não havia forasteiro ilustre – Clarice Lispector, Otto Maria Carpeaux, Roman Jakobson, Cyro dos Anjos, Fernando Sabino, Décio Pignatari, João Antônio, Hélio Pellegrino e tantos mais – que, de passagem por Belo Horizonte, não fosse visitar a redação.

Intelectual generoso como poucos tenho visto, Murilo Rubião, às vezes na contramão de seu gosto pessoal, abria espaço para iniciantes que lhe parecessem merecedores de oportunidade. Aos jovens, tinha ele a sabedoria de mesclar autores consagrados, e seu prestígio permitiu que o suplemento publicasse, frequentemente em primeira mão, graúdos como Drummond, Murilo Mendes, Lygia Fagundes Telles, Antonio Candido, Rubem Fonseca, José J. Veiga. Num tempo em que se propagava a febre da literatura hispano-americana, o olho esperto de Laís Corrêa de Araújo nos permitiu divulgar escritores que aqui eram novidade. Entre meus pecados de escriba jovem, ainda me fazem corar as traduções que perpetrei de García Márquez e de Julio Cortázar – de quem Angelo Oswaldo, sucessor de Murilo e amigo do autor, conseguiu pelo menos um inédito. 

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Delicado e habilidoso a ponto de nos permitir às vezes a ilusão de que também mandávamos, Murilo Rubião deu corda a iniciativas como a criação de uma série de entrevistas e depoimentos que, começando pelos mineiros, logo se abriu a autores novos de todo canto do Brasil, dando vez e voz a talentos como os gaúchos Caio Fernando Abreu e Moacyr Scliar.

Foi preciso trocar Belo Horizonte por São Paulo, em maio de 1970, e depois viver por alguns anos na Europa, para me dar conta de que o nosso jornal tinha mais prestígio e admiradores fora de Minas Gerais. Seria bom que o atual governo estadual soubesse disso, e permitisse que o Suplemento Literário, até para honrar a tradição, recupere a visibilidade que já teve. Para isso sirva a melancólica passagem de um 3 de setembro que outrora foi festivo, e que hoje, lamentavelmente, dá sentido imprevisto a uns versos de Drummond: “Teu aniversário, no escuro/ não se comemora”.

Sábio e sabedor, mestre Antonio Carlosuma vez mais vem socorrer a minha ignorância, notoriamente vasta e não especializada: não, o Suplemento Literário de Minas Gerais não é, no gênero, a publicação mais antiga do Brasil, posto ocupado pelo Correio das Artes, septuagenário encarte do jornal paraibano A União. Mas também nesse ranking não faz má figura, longe disso, o suplemento criado há mais de meio século pelo contista Murilo Rubião. Pena que seus 54 anos de existência, completados neste 3 de setembro, não possam ser celebrados, pois o SLMG, nascido e desde sempre editado sob as asas do governo mineiro e que, a partir dali, construiu prestígio não somente nacional, vive hoje o seu pior momento, mais sombrio do que alguns vividos ao tempo da ditadura militar.

Exagero? Então tente imaginar uma publicação que, elaborada no capricho por uma equipe tão competente quanto microscópica, nos últimos dois anos não teve uma única edição impressa e, desde o segundo semestre de 2019, sequer edição eletrônica. Certamente não por culpa do diretor do suplemento, o contista e romancista Jaime Prado Gouvêa que, na juventude, pertenceu à equipe de Murilo Rubião, com quem terá aprendido também a desafiadora arte de produzir publicação de qualidade nas entranhas de uma enferrujada burocracia estadual. O diretor, cujo time ultimamente se resume ao jornalista João Barile, dono de saudável inquietação intelectual, esteve no comando em outras ocasiões – nenhuma tão dramática quanto a atual. Viu o SLMG, nascido como encarte semanal do Minas Gerais, o diário oficial do Estado, ser empurrado de pouso em pouso, como enjeitado, e ter a sua periodicidade cruamente rarefeita. Quando circulou pela última vez, em papel ou na internet, o antigo semanário era bimestral. Hoje, relegado a um nicho na Biblioteca Pública Estadual, nem isso. 

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Minha indignação é dobrada pelo fato de que também eu participei de melhores tempos do Suplemento Literário, primeiro como colaborador, depois, por dois anos, como redator, numa equipe quatro vezes mais numerosa que a atual. Foram ali, sob o comando de Murilo Rubião, os meus começos como jornalista. A redação, no centenário prédio da hoje extinta Imprensa Oficial, ocupava uma sala cujo nome homenageava um jovem redator que por ali passou, Carlos Drummond de Andrade, o “Antônio Crispim”, “Barba Azul” ou “Mickey” que, entre aquelas paredes, escrevia crônicas para o Minas Gerais. Eu gostava de lembrar que ali ao lado, em 1930, foram rodados os 500 exemplares de Alguma Poesia, o livro de estreia do poeta, mediante desconto nos vencimentos do autor. E que, num galpão do prédio, na República Velha, um maluquinho usou seu peso de filho do governador para construir nada menos que um avião, só não chegando, aquele Santos Dumont retardatário, ao extremo de tentar fazer voar a geringonça.

Numa esquina no centro da cidade, nossa redação virou ponto de encontro para uma fartura de aspirantes à literatura, entre eles Sérgio Sant’Anna e Luiz Vilela, e também para veteranos como Emílio Moura, Francisco Iglésias, Affonso Avila e Bueno de Rivera. Não havia forasteiro ilustre – Clarice Lispector, Otto Maria Carpeaux, Roman Jakobson, Cyro dos Anjos, Fernando Sabino, Décio Pignatari, João Antônio, Hélio Pellegrino e tantos mais – que, de passagem por Belo Horizonte, não fosse visitar a redação.

Intelectual generoso como poucos tenho visto, Murilo Rubião, às vezes na contramão de seu gosto pessoal, abria espaço para iniciantes que lhe parecessem merecedores de oportunidade. Aos jovens, tinha ele a sabedoria de mesclar autores consagrados, e seu prestígio permitiu que o suplemento publicasse, frequentemente em primeira mão, graúdos como Drummond, Murilo Mendes, Lygia Fagundes Telles, Antonio Candido, Rubem Fonseca, José J. Veiga. Num tempo em que se propagava a febre da literatura hispano-americana, o olho esperto de Laís Corrêa de Araújo nos permitiu divulgar escritores que aqui eram novidade. Entre meus pecados de escriba jovem, ainda me fazem corar as traduções que perpetrei de García Márquez e de Julio Cortázar – de quem Angelo Oswaldo, sucessor de Murilo e amigo do autor, conseguiu pelo menos um inédito. 

Delicado e habilidoso a ponto de nos permitir às vezes a ilusão de que também mandávamos, Murilo Rubião deu corda a iniciativas como a criação de uma série de entrevistas e depoimentos que, começando pelos mineiros, logo se abriu a autores novos de todo canto do Brasil, dando vez e voz a talentos como os gaúchos Caio Fernando Abreu e Moacyr Scliar.

Foi preciso trocar Belo Horizonte por São Paulo, em maio de 1970, e depois viver por alguns anos na Europa, para me dar conta de que o nosso jornal tinha mais prestígio e admiradores fora de Minas Gerais. Seria bom que o atual governo estadual soubesse disso, e permitisse que o Suplemento Literário, até para honrar a tradição, recupere a visibilidade que já teve. Para isso sirva a melancólica passagem de um 3 de setembro que outrora foi festivo, e que hoje, lamentavelmente, dá sentido imprevisto a uns versos de Drummond: “Teu aniversário, no escuro/ não se comemora”.

Sábio e sabedor, mestre Antonio Carlosuma vez mais vem socorrer a minha ignorância, notoriamente vasta e não especializada: não, o Suplemento Literário de Minas Gerais não é, no gênero, a publicação mais antiga do Brasil, posto ocupado pelo Correio das Artes, septuagenário encarte do jornal paraibano A União. Mas também nesse ranking não faz má figura, longe disso, o suplemento criado há mais de meio século pelo contista Murilo Rubião. Pena que seus 54 anos de existência, completados neste 3 de setembro, não possam ser celebrados, pois o SLMG, nascido e desde sempre editado sob as asas do governo mineiro e que, a partir dali, construiu prestígio não somente nacional, vive hoje o seu pior momento, mais sombrio do que alguns vividos ao tempo da ditadura militar.

Exagero? Então tente imaginar uma publicação que, elaborada no capricho por uma equipe tão competente quanto microscópica, nos últimos dois anos não teve uma única edição impressa e, desde o segundo semestre de 2019, sequer edição eletrônica. Certamente não por culpa do diretor do suplemento, o contista e romancista Jaime Prado Gouvêa que, na juventude, pertenceu à equipe de Murilo Rubião, com quem terá aprendido também a desafiadora arte de produzir publicação de qualidade nas entranhas de uma enferrujada burocracia estadual. O diretor, cujo time ultimamente se resume ao jornalista João Barile, dono de saudável inquietação intelectual, esteve no comando em outras ocasiões – nenhuma tão dramática quanto a atual. Viu o SLMG, nascido como encarte semanal do Minas Gerais, o diário oficial do Estado, ser empurrado de pouso em pouso, como enjeitado, e ter a sua periodicidade cruamente rarefeita. Quando circulou pela última vez, em papel ou na internet, o antigo semanário era bimestral. Hoje, relegado a um nicho na Biblioteca Pública Estadual, nem isso. 

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Minha indignação é dobrada pelo fato de que também eu participei de melhores tempos do Suplemento Literário, primeiro como colaborador, depois, por dois anos, como redator, numa equipe quatro vezes mais numerosa que a atual. Foram ali, sob o comando de Murilo Rubião, os meus começos como jornalista. A redação, no centenário prédio da hoje extinta Imprensa Oficial, ocupava uma sala cujo nome homenageava um jovem redator que por ali passou, Carlos Drummond de Andrade, o “Antônio Crispim”, “Barba Azul” ou “Mickey” que, entre aquelas paredes, escrevia crônicas para o Minas Gerais. Eu gostava de lembrar que ali ao lado, em 1930, foram rodados os 500 exemplares de Alguma Poesia, o livro de estreia do poeta, mediante desconto nos vencimentos do autor. E que, num galpão do prédio, na República Velha, um maluquinho usou seu peso de filho do governador para construir nada menos que um avião, só não chegando, aquele Santos Dumont retardatário, ao extremo de tentar fazer voar a geringonça.

Numa esquina no centro da cidade, nossa redação virou ponto de encontro para uma fartura de aspirantes à literatura, entre eles Sérgio Sant’Anna e Luiz Vilela, e também para veteranos como Emílio Moura, Francisco Iglésias, Affonso Avila e Bueno de Rivera. Não havia forasteiro ilustre – Clarice Lispector, Otto Maria Carpeaux, Roman Jakobson, Cyro dos Anjos, Fernando Sabino, Décio Pignatari, João Antônio, Hélio Pellegrino e tantos mais – que, de passagem por Belo Horizonte, não fosse visitar a redação.

Intelectual generoso como poucos tenho visto, Murilo Rubião, às vezes na contramão de seu gosto pessoal, abria espaço para iniciantes que lhe parecessem merecedores de oportunidade. Aos jovens, tinha ele a sabedoria de mesclar autores consagrados, e seu prestígio permitiu que o suplemento publicasse, frequentemente em primeira mão, graúdos como Drummond, Murilo Mendes, Lygia Fagundes Telles, Antonio Candido, Rubem Fonseca, José J. Veiga. Num tempo em que se propagava a febre da literatura hispano-americana, o olho esperto de Laís Corrêa de Araújo nos permitiu divulgar escritores que aqui eram novidade. Entre meus pecados de escriba jovem, ainda me fazem corar as traduções que perpetrei de García Márquez e de Julio Cortázar – de quem Angelo Oswaldo, sucessor de Murilo e amigo do autor, conseguiu pelo menos um inédito. 

Delicado e habilidoso a ponto de nos permitir às vezes a ilusão de que também mandávamos, Murilo Rubião deu corda a iniciativas como a criação de uma série de entrevistas e depoimentos que, começando pelos mineiros, logo se abriu a autores novos de todo canto do Brasil, dando vez e voz a talentos como os gaúchos Caio Fernando Abreu e Moacyr Scliar.

Foi preciso trocar Belo Horizonte por São Paulo, em maio de 1970, e depois viver por alguns anos na Europa, para me dar conta de que o nosso jornal tinha mais prestígio e admiradores fora de Minas Gerais. Seria bom que o atual governo estadual soubesse disso, e permitisse que o Suplemento Literário, até para honrar a tradição, recupere a visibilidade que já teve. Para isso sirva a melancólica passagem de um 3 de setembro que outrora foi festivo, e que hoje, lamentavelmente, dá sentido imprevisto a uns versos de Drummond: “Teu aniversário, no escuro/ não se comemora”.

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