Crônicas agudas


Feita para o breve tempo de um jornal, a crônica pode resultar mais durável que muito romance

Por Humberto Werneck

É coisa de maníaco, você pode achar, e com certeza tem razão - mas o fato é que frequentemente, quando saio da interminável releitura de alguma crônica hoje clássica, de Rubem Braga, por exemplo, ou de Paulo Mendes Campos, não resisto à tentação de procurar na hemeroteca digital a primeira publicação daquela joia, hoje perenizada em livro. Que cara tinha ela, quero saber, na revista ou no jornal de tantas décadas atrás, ali imprensada entre anúncios e notícias velhas, numa paisagem de papel barato onde tudo permite imaginar que logo mais estará servindo para forrar gaiola de passarinho? 

Ultimamente tenho feito mais: se o autor é um dos 12 - por enquanto - autores visitáveis nesse baú de preciosidades literárias chamado Portal da Crônica Brasileira, farto em fac-símiles de velhos recortes, vou conferir também se entre a versão na imprensa e a versão em livro o cronista, de caneta em punho, retocou seu texto, no afã daquilo que Otto Lara Resende chamava de “despiorar”. Sou dos que se encantam ao flagrar o esforço de um autor para ajustar um pouco mais a ideia, o clarão, o achado, à sempre árdua expressão verbal. Voyeur do bem, considero um privilégio poder assim pegar carona na criação de um mestre e vê-lo na laboriosa substituição de uma palavra por outra mais exata.

Gosto também de imaginar como pode ter nascido uma crônica que, em princípio fatalizada a se acabar com o jornal do dia, com a revista da semana, foi ainda assim capaz de atravessar o tempo, e de chegar a mim, anos, décadas depois, sem uma ruga, com o frescor de algo que tivesse sido escrito minutos atrás. Oficial miúdo desse ofício de malucos, quase posso ver alguém agoniado, de olho no relógio, assombrado pelo prazo cada vez mais curto para aquele texto ser entregue ao editor. Se a entrega, em tempos de internet, ainda que em clima de agonia autoral, se faz em um segundo, apenas apertando-se um botão, como terá sido na era da máquina, aquele pesado e ruidoso instrumento que os antigos usavam para escrever? 

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Quase posso ver o Rubem Braga, cronista maior de todos, a catar milho no teclado de sua Remington, de sua Underwood, de sua Olivetti, cigarro fumando sozinho no cinzeiro ao lado, um olho ali, outro na sala do apartamento, onde o mensageiro do jornal, impaciente, espera o ponto final da crônica que o pessoal da redação mandou buscar. Se o autor acerta a mão, horas mais tarde o leitor, gratificado, terá a impressão de que tamanha graça foi ditada pelas musas, sem esforço humano, no máximo copiada, sem hesitações, de um desses teleprompters que tornam fluentes os mais descoordenados apresentadores de televisão. 

O feliz destinatário experimentará então, disse Décio de Almeida Prado, “aquela sensação de alguma coisa que se está improvisando magicamente perante os nossos olhos”, graças às artes de um escriba que “se guia somente pelo que lhe vai ditando a fantasia, autorizada a funcionar a pleno vapor”. Nesse gênero, a gente sabe, o assunto é o que menos conta - algumas vezes, pode ser até a falta dele, aparente vácuo inspirador de crônicas adoráveis de Drummond, Vinicius, Fernando Sabino e o nunca assaz citado Rubem Braga, mestre também na administração do nada.

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Mais adiante, o texto que nasceu sem a obrigação de durar, não pertencesse ele a um gênero que em Portugal há quem chame de “literatura em mangas de camisa”, terá sua data de validade prorrogada nas livrarias e bibliotecas, a desmentir Alceu Amoroso Lima, crítico para quem a crônica, num livro, seria como “um pássaro afogado”. Na sua despretensão congênita, ela pode alcançar uma durabilidade de que não foram capazes contos e romances trabalhados e retrabalhados num esforço de anos. Quando isso acontece, quem se vê desmentido é Lêdo Ivo, para quem a crônica, “gênero anfíbio”, pertencente “simultaneamente ao jornalismo e à literatura, assegura notoriedade e garante o esquecimento”. Esquecimento, poeta? É como carimbou alguém: ledo (e ivo) engano!

Com licença! Neste começo de dezembro faz dez anos que o Estadão me ofereceu bem mais que um strapontin - como se chama, no metrô parisiense, aquele banquinho do qual, quando o vagão se enche, a civilidade manda levantar-se, suspendendo o assento. Não tardei a me sentir à vontade neste espaço privilegiado que venho desde então ocupando, sem faltar sequer uma semana, e que desde o início busco administrar como território dessa modalidade de colunismo que é a crônica.

E eis que agora devo levantar-me, não para ceder lugar, com o que me resta de cavalheirismo, a uma dama superveniente, até porque nessa década, insofismavelmente, fiquei dez anos mais velho, integrante agora da tal terceira (e última) idade. Peço licença para ir ali por algum tempo, que espero não se estenda muito, a fim de cuidar de algo que está a exigir integral monogamia - uma biografia de Drummond, que, espero, haverá de sair antes de mim. 

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Não tenho a pretensão de achar que então vou encontrar desocupado o assento que com tanto gosto e orgulho tenho ocupado, mas ficarei muito feliz se isso acontecer. 

É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE  ‘O DESATINO DA RAPAZIADA’

É coisa de maníaco, você pode achar, e com certeza tem razão - mas o fato é que frequentemente, quando saio da interminável releitura de alguma crônica hoje clássica, de Rubem Braga, por exemplo, ou de Paulo Mendes Campos, não resisto à tentação de procurar na hemeroteca digital a primeira publicação daquela joia, hoje perenizada em livro. Que cara tinha ela, quero saber, na revista ou no jornal de tantas décadas atrás, ali imprensada entre anúncios e notícias velhas, numa paisagem de papel barato onde tudo permite imaginar que logo mais estará servindo para forrar gaiola de passarinho? 

Ultimamente tenho feito mais: se o autor é um dos 12 - por enquanto - autores visitáveis nesse baú de preciosidades literárias chamado Portal da Crônica Brasileira, farto em fac-símiles de velhos recortes, vou conferir também se entre a versão na imprensa e a versão em livro o cronista, de caneta em punho, retocou seu texto, no afã daquilo que Otto Lara Resende chamava de “despiorar”. Sou dos que se encantam ao flagrar o esforço de um autor para ajustar um pouco mais a ideia, o clarão, o achado, à sempre árdua expressão verbal. Voyeur do bem, considero um privilégio poder assim pegar carona na criação de um mestre e vê-lo na laboriosa substituição de uma palavra por outra mais exata.

Gosto também de imaginar como pode ter nascido uma crônica que, em princípio fatalizada a se acabar com o jornal do dia, com a revista da semana, foi ainda assim capaz de atravessar o tempo, e de chegar a mim, anos, décadas depois, sem uma ruga, com o frescor de algo que tivesse sido escrito minutos atrás. Oficial miúdo desse ofício de malucos, quase posso ver alguém agoniado, de olho no relógio, assombrado pelo prazo cada vez mais curto para aquele texto ser entregue ao editor. Se a entrega, em tempos de internet, ainda que em clima de agonia autoral, se faz em um segundo, apenas apertando-se um botão, como terá sido na era da máquina, aquele pesado e ruidoso instrumento que os antigos usavam para escrever? 

Quase posso ver o Rubem Braga, cronista maior de todos, a catar milho no teclado de sua Remington, de sua Underwood, de sua Olivetti, cigarro fumando sozinho no cinzeiro ao lado, um olho ali, outro na sala do apartamento, onde o mensageiro do jornal, impaciente, espera o ponto final da crônica que o pessoal da redação mandou buscar. Se o autor acerta a mão, horas mais tarde o leitor, gratificado, terá a impressão de que tamanha graça foi ditada pelas musas, sem esforço humano, no máximo copiada, sem hesitações, de um desses teleprompters que tornam fluentes os mais descoordenados apresentadores de televisão. 

O feliz destinatário experimentará então, disse Décio de Almeida Prado, “aquela sensação de alguma coisa que se está improvisando magicamente perante os nossos olhos”, graças às artes de um escriba que “se guia somente pelo que lhe vai ditando a fantasia, autorizada a funcionar a pleno vapor”. Nesse gênero, a gente sabe, o assunto é o que menos conta - algumas vezes, pode ser até a falta dele, aparente vácuo inspirador de crônicas adoráveis de Drummond, Vinicius, Fernando Sabino e o nunca assaz citado Rubem Braga, mestre também na administração do nada.

Mais adiante, o texto que nasceu sem a obrigação de durar, não pertencesse ele a um gênero que em Portugal há quem chame de “literatura em mangas de camisa”, terá sua data de validade prorrogada nas livrarias e bibliotecas, a desmentir Alceu Amoroso Lima, crítico para quem a crônica, num livro, seria como “um pássaro afogado”. Na sua despretensão congênita, ela pode alcançar uma durabilidade de que não foram capazes contos e romances trabalhados e retrabalhados num esforço de anos. Quando isso acontece, quem se vê desmentido é Lêdo Ivo, para quem a crônica, “gênero anfíbio”, pertencente “simultaneamente ao jornalismo e à literatura, assegura notoriedade e garante o esquecimento”. Esquecimento, poeta? É como carimbou alguém: ledo (e ivo) engano!

Com licença! Neste começo de dezembro faz dez anos que o Estadão me ofereceu bem mais que um strapontin - como se chama, no metrô parisiense, aquele banquinho do qual, quando o vagão se enche, a civilidade manda levantar-se, suspendendo o assento. Não tardei a me sentir à vontade neste espaço privilegiado que venho desde então ocupando, sem faltar sequer uma semana, e que desde o início busco administrar como território dessa modalidade de colunismo que é a crônica.

E eis que agora devo levantar-me, não para ceder lugar, com o que me resta de cavalheirismo, a uma dama superveniente, até porque nessa década, insofismavelmente, fiquei dez anos mais velho, integrante agora da tal terceira (e última) idade. Peço licença para ir ali por algum tempo, que espero não se estenda muito, a fim de cuidar de algo que está a exigir integral monogamia - uma biografia de Drummond, que, espero, haverá de sair antes de mim. 

Não tenho a pretensão de achar que então vou encontrar desocupado o assento que com tanto gosto e orgulho tenho ocupado, mas ficarei muito feliz se isso acontecer. 

É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE  ‘O DESATINO DA RAPAZIADA’

É coisa de maníaco, você pode achar, e com certeza tem razão - mas o fato é que frequentemente, quando saio da interminável releitura de alguma crônica hoje clássica, de Rubem Braga, por exemplo, ou de Paulo Mendes Campos, não resisto à tentação de procurar na hemeroteca digital a primeira publicação daquela joia, hoje perenizada em livro. Que cara tinha ela, quero saber, na revista ou no jornal de tantas décadas atrás, ali imprensada entre anúncios e notícias velhas, numa paisagem de papel barato onde tudo permite imaginar que logo mais estará servindo para forrar gaiola de passarinho? 

Ultimamente tenho feito mais: se o autor é um dos 12 - por enquanto - autores visitáveis nesse baú de preciosidades literárias chamado Portal da Crônica Brasileira, farto em fac-símiles de velhos recortes, vou conferir também se entre a versão na imprensa e a versão em livro o cronista, de caneta em punho, retocou seu texto, no afã daquilo que Otto Lara Resende chamava de “despiorar”. Sou dos que se encantam ao flagrar o esforço de um autor para ajustar um pouco mais a ideia, o clarão, o achado, à sempre árdua expressão verbal. Voyeur do bem, considero um privilégio poder assim pegar carona na criação de um mestre e vê-lo na laboriosa substituição de uma palavra por outra mais exata.

Gosto também de imaginar como pode ter nascido uma crônica que, em princípio fatalizada a se acabar com o jornal do dia, com a revista da semana, foi ainda assim capaz de atravessar o tempo, e de chegar a mim, anos, décadas depois, sem uma ruga, com o frescor de algo que tivesse sido escrito minutos atrás. Oficial miúdo desse ofício de malucos, quase posso ver alguém agoniado, de olho no relógio, assombrado pelo prazo cada vez mais curto para aquele texto ser entregue ao editor. Se a entrega, em tempos de internet, ainda que em clima de agonia autoral, se faz em um segundo, apenas apertando-se um botão, como terá sido na era da máquina, aquele pesado e ruidoso instrumento que os antigos usavam para escrever? 

Quase posso ver o Rubem Braga, cronista maior de todos, a catar milho no teclado de sua Remington, de sua Underwood, de sua Olivetti, cigarro fumando sozinho no cinzeiro ao lado, um olho ali, outro na sala do apartamento, onde o mensageiro do jornal, impaciente, espera o ponto final da crônica que o pessoal da redação mandou buscar. Se o autor acerta a mão, horas mais tarde o leitor, gratificado, terá a impressão de que tamanha graça foi ditada pelas musas, sem esforço humano, no máximo copiada, sem hesitações, de um desses teleprompters que tornam fluentes os mais descoordenados apresentadores de televisão. 

O feliz destinatário experimentará então, disse Décio de Almeida Prado, “aquela sensação de alguma coisa que se está improvisando magicamente perante os nossos olhos”, graças às artes de um escriba que “se guia somente pelo que lhe vai ditando a fantasia, autorizada a funcionar a pleno vapor”. Nesse gênero, a gente sabe, o assunto é o que menos conta - algumas vezes, pode ser até a falta dele, aparente vácuo inspirador de crônicas adoráveis de Drummond, Vinicius, Fernando Sabino e o nunca assaz citado Rubem Braga, mestre também na administração do nada.

Mais adiante, o texto que nasceu sem a obrigação de durar, não pertencesse ele a um gênero que em Portugal há quem chame de “literatura em mangas de camisa”, terá sua data de validade prorrogada nas livrarias e bibliotecas, a desmentir Alceu Amoroso Lima, crítico para quem a crônica, num livro, seria como “um pássaro afogado”. Na sua despretensão congênita, ela pode alcançar uma durabilidade de que não foram capazes contos e romances trabalhados e retrabalhados num esforço de anos. Quando isso acontece, quem se vê desmentido é Lêdo Ivo, para quem a crônica, “gênero anfíbio”, pertencente “simultaneamente ao jornalismo e à literatura, assegura notoriedade e garante o esquecimento”. Esquecimento, poeta? É como carimbou alguém: ledo (e ivo) engano!

Com licença! Neste começo de dezembro faz dez anos que o Estadão me ofereceu bem mais que um strapontin - como se chama, no metrô parisiense, aquele banquinho do qual, quando o vagão se enche, a civilidade manda levantar-se, suspendendo o assento. Não tardei a me sentir à vontade neste espaço privilegiado que venho desde então ocupando, sem faltar sequer uma semana, e que desde o início busco administrar como território dessa modalidade de colunismo que é a crônica.

E eis que agora devo levantar-me, não para ceder lugar, com o que me resta de cavalheirismo, a uma dama superveniente, até porque nessa década, insofismavelmente, fiquei dez anos mais velho, integrante agora da tal terceira (e última) idade. Peço licença para ir ali por algum tempo, que espero não se estenda muito, a fim de cuidar de algo que está a exigir integral monogamia - uma biografia de Drummond, que, espero, haverá de sair antes de mim. 

Não tenho a pretensão de achar que então vou encontrar desocupado o assento que com tanto gosto e orgulho tenho ocupado, mas ficarei muito feliz se isso acontecer. 

É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE  ‘O DESATINO DA RAPAZIADA’

É coisa de maníaco, você pode achar, e com certeza tem razão - mas o fato é que frequentemente, quando saio da interminável releitura de alguma crônica hoje clássica, de Rubem Braga, por exemplo, ou de Paulo Mendes Campos, não resisto à tentação de procurar na hemeroteca digital a primeira publicação daquela joia, hoje perenizada em livro. Que cara tinha ela, quero saber, na revista ou no jornal de tantas décadas atrás, ali imprensada entre anúncios e notícias velhas, numa paisagem de papel barato onde tudo permite imaginar que logo mais estará servindo para forrar gaiola de passarinho? 

Ultimamente tenho feito mais: se o autor é um dos 12 - por enquanto - autores visitáveis nesse baú de preciosidades literárias chamado Portal da Crônica Brasileira, farto em fac-símiles de velhos recortes, vou conferir também se entre a versão na imprensa e a versão em livro o cronista, de caneta em punho, retocou seu texto, no afã daquilo que Otto Lara Resende chamava de “despiorar”. Sou dos que se encantam ao flagrar o esforço de um autor para ajustar um pouco mais a ideia, o clarão, o achado, à sempre árdua expressão verbal. Voyeur do bem, considero um privilégio poder assim pegar carona na criação de um mestre e vê-lo na laboriosa substituição de uma palavra por outra mais exata.

Gosto também de imaginar como pode ter nascido uma crônica que, em princípio fatalizada a se acabar com o jornal do dia, com a revista da semana, foi ainda assim capaz de atravessar o tempo, e de chegar a mim, anos, décadas depois, sem uma ruga, com o frescor de algo que tivesse sido escrito minutos atrás. Oficial miúdo desse ofício de malucos, quase posso ver alguém agoniado, de olho no relógio, assombrado pelo prazo cada vez mais curto para aquele texto ser entregue ao editor. Se a entrega, em tempos de internet, ainda que em clima de agonia autoral, se faz em um segundo, apenas apertando-se um botão, como terá sido na era da máquina, aquele pesado e ruidoso instrumento que os antigos usavam para escrever? 

Quase posso ver o Rubem Braga, cronista maior de todos, a catar milho no teclado de sua Remington, de sua Underwood, de sua Olivetti, cigarro fumando sozinho no cinzeiro ao lado, um olho ali, outro na sala do apartamento, onde o mensageiro do jornal, impaciente, espera o ponto final da crônica que o pessoal da redação mandou buscar. Se o autor acerta a mão, horas mais tarde o leitor, gratificado, terá a impressão de que tamanha graça foi ditada pelas musas, sem esforço humano, no máximo copiada, sem hesitações, de um desses teleprompters que tornam fluentes os mais descoordenados apresentadores de televisão. 

O feliz destinatário experimentará então, disse Décio de Almeida Prado, “aquela sensação de alguma coisa que se está improvisando magicamente perante os nossos olhos”, graças às artes de um escriba que “se guia somente pelo que lhe vai ditando a fantasia, autorizada a funcionar a pleno vapor”. Nesse gênero, a gente sabe, o assunto é o que menos conta - algumas vezes, pode ser até a falta dele, aparente vácuo inspirador de crônicas adoráveis de Drummond, Vinicius, Fernando Sabino e o nunca assaz citado Rubem Braga, mestre também na administração do nada.

Mais adiante, o texto que nasceu sem a obrigação de durar, não pertencesse ele a um gênero que em Portugal há quem chame de “literatura em mangas de camisa”, terá sua data de validade prorrogada nas livrarias e bibliotecas, a desmentir Alceu Amoroso Lima, crítico para quem a crônica, num livro, seria como “um pássaro afogado”. Na sua despretensão congênita, ela pode alcançar uma durabilidade de que não foram capazes contos e romances trabalhados e retrabalhados num esforço de anos. Quando isso acontece, quem se vê desmentido é Lêdo Ivo, para quem a crônica, “gênero anfíbio”, pertencente “simultaneamente ao jornalismo e à literatura, assegura notoriedade e garante o esquecimento”. Esquecimento, poeta? É como carimbou alguém: ledo (e ivo) engano!

Com licença! Neste começo de dezembro faz dez anos que o Estadão me ofereceu bem mais que um strapontin - como se chama, no metrô parisiense, aquele banquinho do qual, quando o vagão se enche, a civilidade manda levantar-se, suspendendo o assento. Não tardei a me sentir à vontade neste espaço privilegiado que venho desde então ocupando, sem faltar sequer uma semana, e que desde o início busco administrar como território dessa modalidade de colunismo que é a crônica.

E eis que agora devo levantar-me, não para ceder lugar, com o que me resta de cavalheirismo, a uma dama superveniente, até porque nessa década, insofismavelmente, fiquei dez anos mais velho, integrante agora da tal terceira (e última) idade. Peço licença para ir ali por algum tempo, que espero não se estenda muito, a fim de cuidar de algo que está a exigir integral monogamia - uma biografia de Drummond, que, espero, haverá de sair antes de mim. 

Não tenho a pretensão de achar que então vou encontrar desocupado o assento que com tanto gosto e orgulho tenho ocupado, mas ficarei muito feliz se isso acontecer. 

É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE  ‘O DESATINO DA RAPAZIADA’

É coisa de maníaco, você pode achar, e com certeza tem razão - mas o fato é que frequentemente, quando saio da interminável releitura de alguma crônica hoje clássica, de Rubem Braga, por exemplo, ou de Paulo Mendes Campos, não resisto à tentação de procurar na hemeroteca digital a primeira publicação daquela joia, hoje perenizada em livro. Que cara tinha ela, quero saber, na revista ou no jornal de tantas décadas atrás, ali imprensada entre anúncios e notícias velhas, numa paisagem de papel barato onde tudo permite imaginar que logo mais estará servindo para forrar gaiola de passarinho? 

Ultimamente tenho feito mais: se o autor é um dos 12 - por enquanto - autores visitáveis nesse baú de preciosidades literárias chamado Portal da Crônica Brasileira, farto em fac-símiles de velhos recortes, vou conferir também se entre a versão na imprensa e a versão em livro o cronista, de caneta em punho, retocou seu texto, no afã daquilo que Otto Lara Resende chamava de “despiorar”. Sou dos que se encantam ao flagrar o esforço de um autor para ajustar um pouco mais a ideia, o clarão, o achado, à sempre árdua expressão verbal. Voyeur do bem, considero um privilégio poder assim pegar carona na criação de um mestre e vê-lo na laboriosa substituição de uma palavra por outra mais exata.

Gosto também de imaginar como pode ter nascido uma crônica que, em princípio fatalizada a se acabar com o jornal do dia, com a revista da semana, foi ainda assim capaz de atravessar o tempo, e de chegar a mim, anos, décadas depois, sem uma ruga, com o frescor de algo que tivesse sido escrito minutos atrás. Oficial miúdo desse ofício de malucos, quase posso ver alguém agoniado, de olho no relógio, assombrado pelo prazo cada vez mais curto para aquele texto ser entregue ao editor. Se a entrega, em tempos de internet, ainda que em clima de agonia autoral, se faz em um segundo, apenas apertando-se um botão, como terá sido na era da máquina, aquele pesado e ruidoso instrumento que os antigos usavam para escrever? 

Quase posso ver o Rubem Braga, cronista maior de todos, a catar milho no teclado de sua Remington, de sua Underwood, de sua Olivetti, cigarro fumando sozinho no cinzeiro ao lado, um olho ali, outro na sala do apartamento, onde o mensageiro do jornal, impaciente, espera o ponto final da crônica que o pessoal da redação mandou buscar. Se o autor acerta a mão, horas mais tarde o leitor, gratificado, terá a impressão de que tamanha graça foi ditada pelas musas, sem esforço humano, no máximo copiada, sem hesitações, de um desses teleprompters que tornam fluentes os mais descoordenados apresentadores de televisão. 

O feliz destinatário experimentará então, disse Décio de Almeida Prado, “aquela sensação de alguma coisa que se está improvisando magicamente perante os nossos olhos”, graças às artes de um escriba que “se guia somente pelo que lhe vai ditando a fantasia, autorizada a funcionar a pleno vapor”. Nesse gênero, a gente sabe, o assunto é o que menos conta - algumas vezes, pode ser até a falta dele, aparente vácuo inspirador de crônicas adoráveis de Drummond, Vinicius, Fernando Sabino e o nunca assaz citado Rubem Braga, mestre também na administração do nada.

Mais adiante, o texto que nasceu sem a obrigação de durar, não pertencesse ele a um gênero que em Portugal há quem chame de “literatura em mangas de camisa”, terá sua data de validade prorrogada nas livrarias e bibliotecas, a desmentir Alceu Amoroso Lima, crítico para quem a crônica, num livro, seria como “um pássaro afogado”. Na sua despretensão congênita, ela pode alcançar uma durabilidade de que não foram capazes contos e romances trabalhados e retrabalhados num esforço de anos. Quando isso acontece, quem se vê desmentido é Lêdo Ivo, para quem a crônica, “gênero anfíbio”, pertencente “simultaneamente ao jornalismo e à literatura, assegura notoriedade e garante o esquecimento”. Esquecimento, poeta? É como carimbou alguém: ledo (e ivo) engano!

Com licença! Neste começo de dezembro faz dez anos que o Estadão me ofereceu bem mais que um strapontin - como se chama, no metrô parisiense, aquele banquinho do qual, quando o vagão se enche, a civilidade manda levantar-se, suspendendo o assento. Não tardei a me sentir à vontade neste espaço privilegiado que venho desde então ocupando, sem faltar sequer uma semana, e que desde o início busco administrar como território dessa modalidade de colunismo que é a crônica.

E eis que agora devo levantar-me, não para ceder lugar, com o que me resta de cavalheirismo, a uma dama superveniente, até porque nessa década, insofismavelmente, fiquei dez anos mais velho, integrante agora da tal terceira (e última) idade. Peço licença para ir ali por algum tempo, que espero não se estenda muito, a fim de cuidar de algo que está a exigir integral monogamia - uma biografia de Drummond, que, espero, haverá de sair antes de mim. 

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