O outro nome do fulano


Drummond era como (quase) todos nós: adorava apelidos, material para muitas crônicas

Por Humberto Werneck

É um consolo pensar que Carlos Drummond de Andrade, sem prejuízo de sua altíssima poesia, também tinha lá suas manias. O ritual, por exemplo, de pinicar com tesoura o menor papelucho a ser posto fora, em vez de simplesmente rasgá-lo, ou convertê-lo em bola a ser encaçapada no cesto de lixo. Nada disso. No final do dia de trabalho, o poeta abria sobre a mesa uma folha de jornal e, no capricho, convertia a papelada em pedacinhos – para só então produzir uma bola e atirá-la na lixeira, não sem antes consolidá-la com barbante bem atado. Não sei se era isso o que ele tinha em mente, mas o procedimento impossibilitava eventuais investidas de bisbilhoteiros à cata do último rascunho, ainda quente, de mais uma pérola de nosso poeta maior.

Talvez não se possa chamar de mania, exatamente, outro costume seu, também este numa franja do ofício literário: colecionar pseudônimos de escritores – não tivesse ele próprio, e não só nos começos da carreira, mobilizado cinco dúzias de pseudônimos, que o professor Fernando Py, recentemente falecido, garimparia e poria em livro. Pela vida a fora, Drummond foi coletando informações para uma obra que permanece inédita, o Dicionário de Pseudônimos Brasileiros, cujos alentados originais datilografados jazem na Biblioteca Nacional.

E não foi só. Alguma coisa, por certo, fascinava Carlos Drummond de Andrade no terreno da onomástica, e o levou a recolher também apelidos, tendo, dos anos 1950 aos 70, escrito pelo menos duas dezenas de crônicas sobre o assunto – primeiro, no Correio da Manhã, em seguida no Jornal do Brasil, publicações nas quais, três vezes por semana, ao longo de três décadas, ele pingou milhares de textos, dos quais a maioria (ainda) não chegou a livro.

continua após a publicidade

É o caso de suas crônicas sobre apelidos, tema que, ao contrário do que se passou com os pseudônimos, não o tentou o bastante para dedicar-lhe obra física. Mais de uma vez, jogou a seus leitores, como tentação ao léu, o desafio de organizar uma coletânea de apelidos – algo que, salvo engano, só veio a se concretizar em 2012, quando o professor Claudio Cezar Henriques, da UFRJ, não sei se atraído pelo anzol drummondiano, publicou seu Dicionário de Apelidos dos Escritores da Literatura Brasileira.  Era mais ambicioso do que este o projeto que o poeta não se animou a consolidar em livro. As amostras que renderam crônicas não se limitaram ao universo das letras, interessando-se também por personagens da política, das artes, do esporte, da vida em geral. Numa delas, em setembro de 1960, Drummond ofereceu sua ideia “a algum pesquisador paciente e dotado de senso de humor, menos para compendiar manifestações irreverentes do espírito brasileiro do que como documentário para a história social do Brasil em seus aspectos menores”.

Recheadas de “apelidos, alcunhas, apodos, cognomes, epítetos, nomes de guerra ou o que quer que seja”, suas listas, como seria de esperar, trouxeram fartura de escritores. Certa ocasião, para corrigir equívoco cometido por Alceu Amoroso Lima, que lhe atribuíra a autoria do rótulo “O Bruxo do Cosme Velho”, colado em Machado de Assis, Drummond fez justiça ao verdadeiro autor do achado, o gaúcho Moysés Vellinho. 

“Carlito”, como era chamado pelos pais e irmãos, não chegou a registrar o “Gordinho Sinistro” com que o humorista Apparicio Torelly, o Barão de Itararé (quem garante é Rubem Braga) etiquetou o poeta Augusto Frederico Schmidt. Nem, como o professor Claudio Cezar, o “Chulé de Apolo” que Oswald de Andrade pespegou no jovem poeta Lêdo Ivo, por ter este lhe aplicado um “Calcanhar de Aquiles do Modernismo”. Mas não deixou de fora o “Apolo de sebo” que José de Alencar cravou em Joaquim Nabuco, com quem polemizava. O “Vovô índio” que Jayme Ovalle criou para José Lins do Rego. Ou, ainda, o “Dr. Progresso” que Sérgio Buarque de Holanda viu grudar-se nele quando, nos anos 1920, dirigiu o jornal O Progresso, em Cachoeiro de Itapemirim. Drummond lembrou ainda que Rui Barbosa, a “Águia de Haia”, foi também “Casmurro” e, nas páginas de um jornaleco do Rio, “Anão Jiboia”. Faltou explicar por que “jiboia”.

continua após a publicidade

Com Drummond, aprendi que a expressão “do tempo do Onça” evoca o capitão português Luís Vahia, governador da província do Rio de Janeiro no século 18, cujos maus modos autorizaram equiparação com o felino em questão. No mundo da música popular, o poeta pinçou o “Metralha” de Nelson Gonçalves, o “Caretano” que o tropicalista Rogério Duarte fez rimar com certo baiano, o “Zunga” que o menino Roberto Carlos carregava em Cachoeiro, o “Devagar” que distinguia Martinho da Vila no curso de contabilidade, o “Cachorrão” de Jair Rodrigues. Dentro das quatro linhas, Drummond desencavou o “Cara de Ovo” de alguém que já era “Tostão”, ele mesmo, seu parente Eduardo Gonçalves de Andrade. Mas nada tão bizarro quanto o “Chico” que o pintor Candido Portinari escolheu para o grande amor de sua vida, a Maria com quem se casou.

E aqueles apelidos que, por sua graça, irreverência ou perversidade, dispensam portador famoso, e que o poeta não contemplou em suas listas? Podemos cuidar desse baú sem fundo, se você colaborar.

É um consolo pensar que Carlos Drummond de Andrade, sem prejuízo de sua altíssima poesia, também tinha lá suas manias. O ritual, por exemplo, de pinicar com tesoura o menor papelucho a ser posto fora, em vez de simplesmente rasgá-lo, ou convertê-lo em bola a ser encaçapada no cesto de lixo. Nada disso. No final do dia de trabalho, o poeta abria sobre a mesa uma folha de jornal e, no capricho, convertia a papelada em pedacinhos – para só então produzir uma bola e atirá-la na lixeira, não sem antes consolidá-la com barbante bem atado. Não sei se era isso o que ele tinha em mente, mas o procedimento impossibilitava eventuais investidas de bisbilhoteiros à cata do último rascunho, ainda quente, de mais uma pérola de nosso poeta maior.

Talvez não se possa chamar de mania, exatamente, outro costume seu, também este numa franja do ofício literário: colecionar pseudônimos de escritores – não tivesse ele próprio, e não só nos começos da carreira, mobilizado cinco dúzias de pseudônimos, que o professor Fernando Py, recentemente falecido, garimparia e poria em livro. Pela vida a fora, Drummond foi coletando informações para uma obra que permanece inédita, o Dicionário de Pseudônimos Brasileiros, cujos alentados originais datilografados jazem na Biblioteca Nacional.

E não foi só. Alguma coisa, por certo, fascinava Carlos Drummond de Andrade no terreno da onomástica, e o levou a recolher também apelidos, tendo, dos anos 1950 aos 70, escrito pelo menos duas dezenas de crônicas sobre o assunto – primeiro, no Correio da Manhã, em seguida no Jornal do Brasil, publicações nas quais, três vezes por semana, ao longo de três décadas, ele pingou milhares de textos, dos quais a maioria (ainda) não chegou a livro.

É o caso de suas crônicas sobre apelidos, tema que, ao contrário do que se passou com os pseudônimos, não o tentou o bastante para dedicar-lhe obra física. Mais de uma vez, jogou a seus leitores, como tentação ao léu, o desafio de organizar uma coletânea de apelidos – algo que, salvo engano, só veio a se concretizar em 2012, quando o professor Claudio Cezar Henriques, da UFRJ, não sei se atraído pelo anzol drummondiano, publicou seu Dicionário de Apelidos dos Escritores da Literatura Brasileira.  Era mais ambicioso do que este o projeto que o poeta não se animou a consolidar em livro. As amostras que renderam crônicas não se limitaram ao universo das letras, interessando-se também por personagens da política, das artes, do esporte, da vida em geral. Numa delas, em setembro de 1960, Drummond ofereceu sua ideia “a algum pesquisador paciente e dotado de senso de humor, menos para compendiar manifestações irreverentes do espírito brasileiro do que como documentário para a história social do Brasil em seus aspectos menores”.

Recheadas de “apelidos, alcunhas, apodos, cognomes, epítetos, nomes de guerra ou o que quer que seja”, suas listas, como seria de esperar, trouxeram fartura de escritores. Certa ocasião, para corrigir equívoco cometido por Alceu Amoroso Lima, que lhe atribuíra a autoria do rótulo “O Bruxo do Cosme Velho”, colado em Machado de Assis, Drummond fez justiça ao verdadeiro autor do achado, o gaúcho Moysés Vellinho. 

“Carlito”, como era chamado pelos pais e irmãos, não chegou a registrar o “Gordinho Sinistro” com que o humorista Apparicio Torelly, o Barão de Itararé (quem garante é Rubem Braga) etiquetou o poeta Augusto Frederico Schmidt. Nem, como o professor Claudio Cezar, o “Chulé de Apolo” que Oswald de Andrade pespegou no jovem poeta Lêdo Ivo, por ter este lhe aplicado um “Calcanhar de Aquiles do Modernismo”. Mas não deixou de fora o “Apolo de sebo” que José de Alencar cravou em Joaquim Nabuco, com quem polemizava. O “Vovô índio” que Jayme Ovalle criou para José Lins do Rego. Ou, ainda, o “Dr. Progresso” que Sérgio Buarque de Holanda viu grudar-se nele quando, nos anos 1920, dirigiu o jornal O Progresso, em Cachoeiro de Itapemirim. Drummond lembrou ainda que Rui Barbosa, a “Águia de Haia”, foi também “Casmurro” e, nas páginas de um jornaleco do Rio, “Anão Jiboia”. Faltou explicar por que “jiboia”.

Com Drummond, aprendi que a expressão “do tempo do Onça” evoca o capitão português Luís Vahia, governador da província do Rio de Janeiro no século 18, cujos maus modos autorizaram equiparação com o felino em questão. No mundo da música popular, o poeta pinçou o “Metralha” de Nelson Gonçalves, o “Caretano” que o tropicalista Rogério Duarte fez rimar com certo baiano, o “Zunga” que o menino Roberto Carlos carregava em Cachoeiro, o “Devagar” que distinguia Martinho da Vila no curso de contabilidade, o “Cachorrão” de Jair Rodrigues. Dentro das quatro linhas, Drummond desencavou o “Cara de Ovo” de alguém que já era “Tostão”, ele mesmo, seu parente Eduardo Gonçalves de Andrade. Mas nada tão bizarro quanto o “Chico” que o pintor Candido Portinari escolheu para o grande amor de sua vida, a Maria com quem se casou.

E aqueles apelidos que, por sua graça, irreverência ou perversidade, dispensam portador famoso, e que o poeta não contemplou em suas listas? Podemos cuidar desse baú sem fundo, se você colaborar.

É um consolo pensar que Carlos Drummond de Andrade, sem prejuízo de sua altíssima poesia, também tinha lá suas manias. O ritual, por exemplo, de pinicar com tesoura o menor papelucho a ser posto fora, em vez de simplesmente rasgá-lo, ou convertê-lo em bola a ser encaçapada no cesto de lixo. Nada disso. No final do dia de trabalho, o poeta abria sobre a mesa uma folha de jornal e, no capricho, convertia a papelada em pedacinhos – para só então produzir uma bola e atirá-la na lixeira, não sem antes consolidá-la com barbante bem atado. Não sei se era isso o que ele tinha em mente, mas o procedimento impossibilitava eventuais investidas de bisbilhoteiros à cata do último rascunho, ainda quente, de mais uma pérola de nosso poeta maior.

Talvez não se possa chamar de mania, exatamente, outro costume seu, também este numa franja do ofício literário: colecionar pseudônimos de escritores – não tivesse ele próprio, e não só nos começos da carreira, mobilizado cinco dúzias de pseudônimos, que o professor Fernando Py, recentemente falecido, garimparia e poria em livro. Pela vida a fora, Drummond foi coletando informações para uma obra que permanece inédita, o Dicionário de Pseudônimos Brasileiros, cujos alentados originais datilografados jazem na Biblioteca Nacional.

E não foi só. Alguma coisa, por certo, fascinava Carlos Drummond de Andrade no terreno da onomástica, e o levou a recolher também apelidos, tendo, dos anos 1950 aos 70, escrito pelo menos duas dezenas de crônicas sobre o assunto – primeiro, no Correio da Manhã, em seguida no Jornal do Brasil, publicações nas quais, três vezes por semana, ao longo de três décadas, ele pingou milhares de textos, dos quais a maioria (ainda) não chegou a livro.

É o caso de suas crônicas sobre apelidos, tema que, ao contrário do que se passou com os pseudônimos, não o tentou o bastante para dedicar-lhe obra física. Mais de uma vez, jogou a seus leitores, como tentação ao léu, o desafio de organizar uma coletânea de apelidos – algo que, salvo engano, só veio a se concretizar em 2012, quando o professor Claudio Cezar Henriques, da UFRJ, não sei se atraído pelo anzol drummondiano, publicou seu Dicionário de Apelidos dos Escritores da Literatura Brasileira.  Era mais ambicioso do que este o projeto que o poeta não se animou a consolidar em livro. As amostras que renderam crônicas não se limitaram ao universo das letras, interessando-se também por personagens da política, das artes, do esporte, da vida em geral. Numa delas, em setembro de 1960, Drummond ofereceu sua ideia “a algum pesquisador paciente e dotado de senso de humor, menos para compendiar manifestações irreverentes do espírito brasileiro do que como documentário para a história social do Brasil em seus aspectos menores”.

Recheadas de “apelidos, alcunhas, apodos, cognomes, epítetos, nomes de guerra ou o que quer que seja”, suas listas, como seria de esperar, trouxeram fartura de escritores. Certa ocasião, para corrigir equívoco cometido por Alceu Amoroso Lima, que lhe atribuíra a autoria do rótulo “O Bruxo do Cosme Velho”, colado em Machado de Assis, Drummond fez justiça ao verdadeiro autor do achado, o gaúcho Moysés Vellinho. 

“Carlito”, como era chamado pelos pais e irmãos, não chegou a registrar o “Gordinho Sinistro” com que o humorista Apparicio Torelly, o Barão de Itararé (quem garante é Rubem Braga) etiquetou o poeta Augusto Frederico Schmidt. Nem, como o professor Claudio Cezar, o “Chulé de Apolo” que Oswald de Andrade pespegou no jovem poeta Lêdo Ivo, por ter este lhe aplicado um “Calcanhar de Aquiles do Modernismo”. Mas não deixou de fora o “Apolo de sebo” que José de Alencar cravou em Joaquim Nabuco, com quem polemizava. O “Vovô índio” que Jayme Ovalle criou para José Lins do Rego. Ou, ainda, o “Dr. Progresso” que Sérgio Buarque de Holanda viu grudar-se nele quando, nos anos 1920, dirigiu o jornal O Progresso, em Cachoeiro de Itapemirim. Drummond lembrou ainda que Rui Barbosa, a “Águia de Haia”, foi também “Casmurro” e, nas páginas de um jornaleco do Rio, “Anão Jiboia”. Faltou explicar por que “jiboia”.

Com Drummond, aprendi que a expressão “do tempo do Onça” evoca o capitão português Luís Vahia, governador da província do Rio de Janeiro no século 18, cujos maus modos autorizaram equiparação com o felino em questão. No mundo da música popular, o poeta pinçou o “Metralha” de Nelson Gonçalves, o “Caretano” que o tropicalista Rogério Duarte fez rimar com certo baiano, o “Zunga” que o menino Roberto Carlos carregava em Cachoeiro, o “Devagar” que distinguia Martinho da Vila no curso de contabilidade, o “Cachorrão” de Jair Rodrigues. Dentro das quatro linhas, Drummond desencavou o “Cara de Ovo” de alguém que já era “Tostão”, ele mesmo, seu parente Eduardo Gonçalves de Andrade. Mas nada tão bizarro quanto o “Chico” que o pintor Candido Portinari escolheu para o grande amor de sua vida, a Maria com quem se casou.

E aqueles apelidos que, por sua graça, irreverência ou perversidade, dispensam portador famoso, e que o poeta não contemplou em suas listas? Podemos cuidar desse baú sem fundo, se você colaborar.

É um consolo pensar que Carlos Drummond de Andrade, sem prejuízo de sua altíssima poesia, também tinha lá suas manias. O ritual, por exemplo, de pinicar com tesoura o menor papelucho a ser posto fora, em vez de simplesmente rasgá-lo, ou convertê-lo em bola a ser encaçapada no cesto de lixo. Nada disso. No final do dia de trabalho, o poeta abria sobre a mesa uma folha de jornal e, no capricho, convertia a papelada em pedacinhos – para só então produzir uma bola e atirá-la na lixeira, não sem antes consolidá-la com barbante bem atado. Não sei se era isso o que ele tinha em mente, mas o procedimento impossibilitava eventuais investidas de bisbilhoteiros à cata do último rascunho, ainda quente, de mais uma pérola de nosso poeta maior.

Talvez não se possa chamar de mania, exatamente, outro costume seu, também este numa franja do ofício literário: colecionar pseudônimos de escritores – não tivesse ele próprio, e não só nos começos da carreira, mobilizado cinco dúzias de pseudônimos, que o professor Fernando Py, recentemente falecido, garimparia e poria em livro. Pela vida a fora, Drummond foi coletando informações para uma obra que permanece inédita, o Dicionário de Pseudônimos Brasileiros, cujos alentados originais datilografados jazem na Biblioteca Nacional.

E não foi só. Alguma coisa, por certo, fascinava Carlos Drummond de Andrade no terreno da onomástica, e o levou a recolher também apelidos, tendo, dos anos 1950 aos 70, escrito pelo menos duas dezenas de crônicas sobre o assunto – primeiro, no Correio da Manhã, em seguida no Jornal do Brasil, publicações nas quais, três vezes por semana, ao longo de três décadas, ele pingou milhares de textos, dos quais a maioria (ainda) não chegou a livro.

É o caso de suas crônicas sobre apelidos, tema que, ao contrário do que se passou com os pseudônimos, não o tentou o bastante para dedicar-lhe obra física. Mais de uma vez, jogou a seus leitores, como tentação ao léu, o desafio de organizar uma coletânea de apelidos – algo que, salvo engano, só veio a se concretizar em 2012, quando o professor Claudio Cezar Henriques, da UFRJ, não sei se atraído pelo anzol drummondiano, publicou seu Dicionário de Apelidos dos Escritores da Literatura Brasileira.  Era mais ambicioso do que este o projeto que o poeta não se animou a consolidar em livro. As amostras que renderam crônicas não se limitaram ao universo das letras, interessando-se também por personagens da política, das artes, do esporte, da vida em geral. Numa delas, em setembro de 1960, Drummond ofereceu sua ideia “a algum pesquisador paciente e dotado de senso de humor, menos para compendiar manifestações irreverentes do espírito brasileiro do que como documentário para a história social do Brasil em seus aspectos menores”.

Recheadas de “apelidos, alcunhas, apodos, cognomes, epítetos, nomes de guerra ou o que quer que seja”, suas listas, como seria de esperar, trouxeram fartura de escritores. Certa ocasião, para corrigir equívoco cometido por Alceu Amoroso Lima, que lhe atribuíra a autoria do rótulo “O Bruxo do Cosme Velho”, colado em Machado de Assis, Drummond fez justiça ao verdadeiro autor do achado, o gaúcho Moysés Vellinho. 

“Carlito”, como era chamado pelos pais e irmãos, não chegou a registrar o “Gordinho Sinistro” com que o humorista Apparicio Torelly, o Barão de Itararé (quem garante é Rubem Braga) etiquetou o poeta Augusto Frederico Schmidt. Nem, como o professor Claudio Cezar, o “Chulé de Apolo” que Oswald de Andrade pespegou no jovem poeta Lêdo Ivo, por ter este lhe aplicado um “Calcanhar de Aquiles do Modernismo”. Mas não deixou de fora o “Apolo de sebo” que José de Alencar cravou em Joaquim Nabuco, com quem polemizava. O “Vovô índio” que Jayme Ovalle criou para José Lins do Rego. Ou, ainda, o “Dr. Progresso” que Sérgio Buarque de Holanda viu grudar-se nele quando, nos anos 1920, dirigiu o jornal O Progresso, em Cachoeiro de Itapemirim. Drummond lembrou ainda que Rui Barbosa, a “Águia de Haia”, foi também “Casmurro” e, nas páginas de um jornaleco do Rio, “Anão Jiboia”. Faltou explicar por que “jiboia”.

Com Drummond, aprendi que a expressão “do tempo do Onça” evoca o capitão português Luís Vahia, governador da província do Rio de Janeiro no século 18, cujos maus modos autorizaram equiparação com o felino em questão. No mundo da música popular, o poeta pinçou o “Metralha” de Nelson Gonçalves, o “Caretano” que o tropicalista Rogério Duarte fez rimar com certo baiano, o “Zunga” que o menino Roberto Carlos carregava em Cachoeiro, o “Devagar” que distinguia Martinho da Vila no curso de contabilidade, o “Cachorrão” de Jair Rodrigues. Dentro das quatro linhas, Drummond desencavou o “Cara de Ovo” de alguém que já era “Tostão”, ele mesmo, seu parente Eduardo Gonçalves de Andrade. Mas nada tão bizarro quanto o “Chico” que o pintor Candido Portinari escolheu para o grande amor de sua vida, a Maria com quem se casou.

E aqueles apelidos que, por sua graça, irreverência ou perversidade, dispensam portador famoso, e que o poeta não contemplou em suas listas? Podemos cuidar desse baú sem fundo, se você colaborar.

É um consolo pensar que Carlos Drummond de Andrade, sem prejuízo de sua altíssima poesia, também tinha lá suas manias. O ritual, por exemplo, de pinicar com tesoura o menor papelucho a ser posto fora, em vez de simplesmente rasgá-lo, ou convertê-lo em bola a ser encaçapada no cesto de lixo. Nada disso. No final do dia de trabalho, o poeta abria sobre a mesa uma folha de jornal e, no capricho, convertia a papelada em pedacinhos – para só então produzir uma bola e atirá-la na lixeira, não sem antes consolidá-la com barbante bem atado. Não sei se era isso o que ele tinha em mente, mas o procedimento impossibilitava eventuais investidas de bisbilhoteiros à cata do último rascunho, ainda quente, de mais uma pérola de nosso poeta maior.

Talvez não se possa chamar de mania, exatamente, outro costume seu, também este numa franja do ofício literário: colecionar pseudônimos de escritores – não tivesse ele próprio, e não só nos começos da carreira, mobilizado cinco dúzias de pseudônimos, que o professor Fernando Py, recentemente falecido, garimparia e poria em livro. Pela vida a fora, Drummond foi coletando informações para uma obra que permanece inédita, o Dicionário de Pseudônimos Brasileiros, cujos alentados originais datilografados jazem na Biblioteca Nacional.

E não foi só. Alguma coisa, por certo, fascinava Carlos Drummond de Andrade no terreno da onomástica, e o levou a recolher também apelidos, tendo, dos anos 1950 aos 70, escrito pelo menos duas dezenas de crônicas sobre o assunto – primeiro, no Correio da Manhã, em seguida no Jornal do Brasil, publicações nas quais, três vezes por semana, ao longo de três décadas, ele pingou milhares de textos, dos quais a maioria (ainda) não chegou a livro.

É o caso de suas crônicas sobre apelidos, tema que, ao contrário do que se passou com os pseudônimos, não o tentou o bastante para dedicar-lhe obra física. Mais de uma vez, jogou a seus leitores, como tentação ao léu, o desafio de organizar uma coletânea de apelidos – algo que, salvo engano, só veio a se concretizar em 2012, quando o professor Claudio Cezar Henriques, da UFRJ, não sei se atraído pelo anzol drummondiano, publicou seu Dicionário de Apelidos dos Escritores da Literatura Brasileira.  Era mais ambicioso do que este o projeto que o poeta não se animou a consolidar em livro. As amostras que renderam crônicas não se limitaram ao universo das letras, interessando-se também por personagens da política, das artes, do esporte, da vida em geral. Numa delas, em setembro de 1960, Drummond ofereceu sua ideia “a algum pesquisador paciente e dotado de senso de humor, menos para compendiar manifestações irreverentes do espírito brasileiro do que como documentário para a história social do Brasil em seus aspectos menores”.

Recheadas de “apelidos, alcunhas, apodos, cognomes, epítetos, nomes de guerra ou o que quer que seja”, suas listas, como seria de esperar, trouxeram fartura de escritores. Certa ocasião, para corrigir equívoco cometido por Alceu Amoroso Lima, que lhe atribuíra a autoria do rótulo “O Bruxo do Cosme Velho”, colado em Machado de Assis, Drummond fez justiça ao verdadeiro autor do achado, o gaúcho Moysés Vellinho. 

“Carlito”, como era chamado pelos pais e irmãos, não chegou a registrar o “Gordinho Sinistro” com que o humorista Apparicio Torelly, o Barão de Itararé (quem garante é Rubem Braga) etiquetou o poeta Augusto Frederico Schmidt. Nem, como o professor Claudio Cezar, o “Chulé de Apolo” que Oswald de Andrade pespegou no jovem poeta Lêdo Ivo, por ter este lhe aplicado um “Calcanhar de Aquiles do Modernismo”. Mas não deixou de fora o “Apolo de sebo” que José de Alencar cravou em Joaquim Nabuco, com quem polemizava. O “Vovô índio” que Jayme Ovalle criou para José Lins do Rego. Ou, ainda, o “Dr. Progresso” que Sérgio Buarque de Holanda viu grudar-se nele quando, nos anos 1920, dirigiu o jornal O Progresso, em Cachoeiro de Itapemirim. Drummond lembrou ainda que Rui Barbosa, a “Águia de Haia”, foi também “Casmurro” e, nas páginas de um jornaleco do Rio, “Anão Jiboia”. Faltou explicar por que “jiboia”.

Com Drummond, aprendi que a expressão “do tempo do Onça” evoca o capitão português Luís Vahia, governador da província do Rio de Janeiro no século 18, cujos maus modos autorizaram equiparação com o felino em questão. No mundo da música popular, o poeta pinçou o “Metralha” de Nelson Gonçalves, o “Caretano” que o tropicalista Rogério Duarte fez rimar com certo baiano, o “Zunga” que o menino Roberto Carlos carregava em Cachoeiro, o “Devagar” que distinguia Martinho da Vila no curso de contabilidade, o “Cachorrão” de Jair Rodrigues. Dentro das quatro linhas, Drummond desencavou o “Cara de Ovo” de alguém que já era “Tostão”, ele mesmo, seu parente Eduardo Gonçalves de Andrade. Mas nada tão bizarro quanto o “Chico” que o pintor Candido Portinari escolheu para o grande amor de sua vida, a Maria com quem se casou.

E aqueles apelidos que, por sua graça, irreverência ou perversidade, dispensam portador famoso, e que o poeta não contemplou em suas listas? Podemos cuidar desse baú sem fundo, se você colaborar.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.