Ian McEwan percorre a história moderna em seu romance mais pessoal


‘Lições’ atravessa guerras, Crise dos Mísseis, Chernobyl e fala da importância da obra de arte

Por Laura Pilan
Atualização:

Em Lições não há espaço para o sonho: apenas para a lembrança. Entre o passado e o presente, há um piano – símbolo dos êxitos custosos e fracassos derradeiros de Roland, personagem do novo romance de Ian McEwan. A sinfonia é composta por acordes que se contradizem em proporção e importância: a crise dos mísseis de Cuba, o desastre de Chernobyl e a queda do muro de Berlim são dispostos ao lado de um caso amoroso e um casamento arruinado. Acontecimentos de relevância histórica são apresentados de maneira inesperada pelas páginas do romance: o monumental não somente é equiparado ao ordinário, como também é retratado como seu catalisador.

McEwan cria um protagonista cuja subjetividade é composta por um material poroso e de permeabilidade incalculável: ele é atravessado e trespassado por inúmeras influências externas, construindo e corrompendo seu caráter. É a iminência de uma Terceira Guerra Mundial que conduz Roland, em plena puberdade e ansiando por experiências inéditas, para a casa de sua professora de piano. Trata-se de um momento decisivo: as consequências dessa escolha determinam o resto de sua trajetória.

O Escritor ingles Ian McEwan, que já participou de uma das edições da FLIP, a Festa Literaria de Paraty Foto: MONICA ZARATTINI / AE
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O prodígio musical se torna um pianista frustrado em salões de hotel e um poeta de versos que não vão além dos cartões de aniversário e de óbito. A iniciação sexual precipitada e o relacionamento impróprio condenam os laços que tenta cultivar com as mulheres em sua vida. Seus grandes dons se desvanecem e, impotente, Roland assiste ao espetáculo: o fiasco da própria existência. Exerce pouca influência na vida do filho que cria sozinho, mal interferindo em suas decisões, e é condenado a testemunhar o sucesso da esposa que o abandonou – uma carreira que só avança quando o deixa para trás.

Por meio da figura de Alissa, McEwan volta a explorar o ofício do escritor. Se em Reparação, obra publicada em 2001, o dilema que atravessa Briony é a posição do romancista enquanto Deus, Lições questiona a qualidade de uma obra de arte e se ela é tornada possível apenas pela crueldade. Mais do que isso, é estabelecido um debate acerca da dialética entre ficção e realidade – conceitos que se alimentam e, concomitantemente, só existem na presença um do outro. Roland eleva essa ideia à máxima potência, propondo a existência de uma história quimérica dos séculos 20 e 21: com exatamente cem capítulos, seria capaz de abranger todos os eventos pregressos e também aqueles ainda inacabados – além de responder dilemas decisivos para o destino humano.

Como autores de suas próprias histórias, os personagens disputam versões da realidade. Onde Roland enxerga a manipulação violenta, a professora de piano afirma uma obsessão irrefreável. O que Lawrence percebe como abandono, significa a única chance de triunfo para Alissa. Neste ponto, adentramos o território das lembranças – e nada é mais subjetivo do que a matéria da qual as memórias são feitas.

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Capa do novo romance de Ian McEwan, 'Lições', publicado pela Companhia das Letras 

Ao escolher lidar com memórias, Ian McEwan se aventura por um terreno ainda mais incerto: a História – não apenas a trajetória de um indivíduo, mas da humanidade. Trata-se, indubitavelmente, de uma corda bamba na qual se apoiar – principalmente com um protagonista como Roland, cuja inconstância produz uma subjetividade errática. A impermanência de suas convicções é resultado dos eventos históricos aos quais é exposto e se submete: a caminhada ao redor dos destroços do muro de Berlim, o pânico causado pelo desastre de Chernobyl, a filiação e a subsequente rejeição ao Partido Trabalhista, a vivência do lockdown e da pandemia de COVID-19, entre diversos outros. Neste romance, há um personagem que atravessa o tempo e comprova a impossibilidade de permanência quando se vive a História.

Um romance como Lições prova que a eternidade só é possível em uma circunstância: a da obra de arte. Este é um exemplo de como a literatura preserva a existência humana e reflete o espírito de uma época – ainda que sob as regras da ficção. Graças à técnica magistral, as páginas abrigam passado e presente, além de oferecer um vislumbre do futuro – através de gerações posteriores que, com sorte, experimentarão a história do século 21 com a qual Roland só pode sonhar. As palavras conservam as reminiscências da vida – assim como a obra de Ian McEwan sobreviverá por meio da nossa leitura.

Em Lições não há espaço para o sonho: apenas para a lembrança. Entre o passado e o presente, há um piano – símbolo dos êxitos custosos e fracassos derradeiros de Roland, personagem do novo romance de Ian McEwan. A sinfonia é composta por acordes que se contradizem em proporção e importância: a crise dos mísseis de Cuba, o desastre de Chernobyl e a queda do muro de Berlim são dispostos ao lado de um caso amoroso e um casamento arruinado. Acontecimentos de relevância histórica são apresentados de maneira inesperada pelas páginas do romance: o monumental não somente é equiparado ao ordinário, como também é retratado como seu catalisador.

McEwan cria um protagonista cuja subjetividade é composta por um material poroso e de permeabilidade incalculável: ele é atravessado e trespassado por inúmeras influências externas, construindo e corrompendo seu caráter. É a iminência de uma Terceira Guerra Mundial que conduz Roland, em plena puberdade e ansiando por experiências inéditas, para a casa de sua professora de piano. Trata-se de um momento decisivo: as consequências dessa escolha determinam o resto de sua trajetória.

O Escritor ingles Ian McEwan, que já participou de uma das edições da FLIP, a Festa Literaria de Paraty Foto: MONICA ZARATTINI / AE

O prodígio musical se torna um pianista frustrado em salões de hotel e um poeta de versos que não vão além dos cartões de aniversário e de óbito. A iniciação sexual precipitada e o relacionamento impróprio condenam os laços que tenta cultivar com as mulheres em sua vida. Seus grandes dons se desvanecem e, impotente, Roland assiste ao espetáculo: o fiasco da própria existência. Exerce pouca influência na vida do filho que cria sozinho, mal interferindo em suas decisões, e é condenado a testemunhar o sucesso da esposa que o abandonou – uma carreira que só avança quando o deixa para trás.

Por meio da figura de Alissa, McEwan volta a explorar o ofício do escritor. Se em Reparação, obra publicada em 2001, o dilema que atravessa Briony é a posição do romancista enquanto Deus, Lições questiona a qualidade de uma obra de arte e se ela é tornada possível apenas pela crueldade. Mais do que isso, é estabelecido um debate acerca da dialética entre ficção e realidade – conceitos que se alimentam e, concomitantemente, só existem na presença um do outro. Roland eleva essa ideia à máxima potência, propondo a existência de uma história quimérica dos séculos 20 e 21: com exatamente cem capítulos, seria capaz de abranger todos os eventos pregressos e também aqueles ainda inacabados – além de responder dilemas decisivos para o destino humano.

Como autores de suas próprias histórias, os personagens disputam versões da realidade. Onde Roland enxerga a manipulação violenta, a professora de piano afirma uma obsessão irrefreável. O que Lawrence percebe como abandono, significa a única chance de triunfo para Alissa. Neste ponto, adentramos o território das lembranças – e nada é mais subjetivo do que a matéria da qual as memórias são feitas.

Capa do novo romance de Ian McEwan, 'Lições', publicado pela Companhia das Letras 

Ao escolher lidar com memórias, Ian McEwan se aventura por um terreno ainda mais incerto: a História – não apenas a trajetória de um indivíduo, mas da humanidade. Trata-se, indubitavelmente, de uma corda bamba na qual se apoiar – principalmente com um protagonista como Roland, cuja inconstância produz uma subjetividade errática. A impermanência de suas convicções é resultado dos eventos históricos aos quais é exposto e se submete: a caminhada ao redor dos destroços do muro de Berlim, o pânico causado pelo desastre de Chernobyl, a filiação e a subsequente rejeição ao Partido Trabalhista, a vivência do lockdown e da pandemia de COVID-19, entre diversos outros. Neste romance, há um personagem que atravessa o tempo e comprova a impossibilidade de permanência quando se vive a História.

Um romance como Lições prova que a eternidade só é possível em uma circunstância: a da obra de arte. Este é um exemplo de como a literatura preserva a existência humana e reflete o espírito de uma época – ainda que sob as regras da ficção. Graças à técnica magistral, as páginas abrigam passado e presente, além de oferecer um vislumbre do futuro – através de gerações posteriores que, com sorte, experimentarão a história do século 21 com a qual Roland só pode sonhar. As palavras conservam as reminiscências da vida – assim como a obra de Ian McEwan sobreviverá por meio da nossa leitura.

Em Lições não há espaço para o sonho: apenas para a lembrança. Entre o passado e o presente, há um piano – símbolo dos êxitos custosos e fracassos derradeiros de Roland, personagem do novo romance de Ian McEwan. A sinfonia é composta por acordes que se contradizem em proporção e importância: a crise dos mísseis de Cuba, o desastre de Chernobyl e a queda do muro de Berlim são dispostos ao lado de um caso amoroso e um casamento arruinado. Acontecimentos de relevância histórica são apresentados de maneira inesperada pelas páginas do romance: o monumental não somente é equiparado ao ordinário, como também é retratado como seu catalisador.

McEwan cria um protagonista cuja subjetividade é composta por um material poroso e de permeabilidade incalculável: ele é atravessado e trespassado por inúmeras influências externas, construindo e corrompendo seu caráter. É a iminência de uma Terceira Guerra Mundial que conduz Roland, em plena puberdade e ansiando por experiências inéditas, para a casa de sua professora de piano. Trata-se de um momento decisivo: as consequências dessa escolha determinam o resto de sua trajetória.

O Escritor ingles Ian McEwan, que já participou de uma das edições da FLIP, a Festa Literaria de Paraty Foto: MONICA ZARATTINI / AE

O prodígio musical se torna um pianista frustrado em salões de hotel e um poeta de versos que não vão além dos cartões de aniversário e de óbito. A iniciação sexual precipitada e o relacionamento impróprio condenam os laços que tenta cultivar com as mulheres em sua vida. Seus grandes dons se desvanecem e, impotente, Roland assiste ao espetáculo: o fiasco da própria existência. Exerce pouca influência na vida do filho que cria sozinho, mal interferindo em suas decisões, e é condenado a testemunhar o sucesso da esposa que o abandonou – uma carreira que só avança quando o deixa para trás.

Por meio da figura de Alissa, McEwan volta a explorar o ofício do escritor. Se em Reparação, obra publicada em 2001, o dilema que atravessa Briony é a posição do romancista enquanto Deus, Lições questiona a qualidade de uma obra de arte e se ela é tornada possível apenas pela crueldade. Mais do que isso, é estabelecido um debate acerca da dialética entre ficção e realidade – conceitos que se alimentam e, concomitantemente, só existem na presença um do outro. Roland eleva essa ideia à máxima potência, propondo a existência de uma história quimérica dos séculos 20 e 21: com exatamente cem capítulos, seria capaz de abranger todos os eventos pregressos e também aqueles ainda inacabados – além de responder dilemas decisivos para o destino humano.

Como autores de suas próprias histórias, os personagens disputam versões da realidade. Onde Roland enxerga a manipulação violenta, a professora de piano afirma uma obsessão irrefreável. O que Lawrence percebe como abandono, significa a única chance de triunfo para Alissa. Neste ponto, adentramos o território das lembranças – e nada é mais subjetivo do que a matéria da qual as memórias são feitas.

Capa do novo romance de Ian McEwan, 'Lições', publicado pela Companhia das Letras 

Ao escolher lidar com memórias, Ian McEwan se aventura por um terreno ainda mais incerto: a História – não apenas a trajetória de um indivíduo, mas da humanidade. Trata-se, indubitavelmente, de uma corda bamba na qual se apoiar – principalmente com um protagonista como Roland, cuja inconstância produz uma subjetividade errática. A impermanência de suas convicções é resultado dos eventos históricos aos quais é exposto e se submete: a caminhada ao redor dos destroços do muro de Berlim, o pânico causado pelo desastre de Chernobyl, a filiação e a subsequente rejeição ao Partido Trabalhista, a vivência do lockdown e da pandemia de COVID-19, entre diversos outros. Neste romance, há um personagem que atravessa o tempo e comprova a impossibilidade de permanência quando se vive a História.

Um romance como Lições prova que a eternidade só é possível em uma circunstância: a da obra de arte. Este é um exemplo de como a literatura preserva a existência humana e reflete o espírito de uma época – ainda que sob as regras da ficção. Graças à técnica magistral, as páginas abrigam passado e presente, além de oferecer um vislumbre do futuro – através de gerações posteriores que, com sorte, experimentarão a história do século 21 com a qual Roland só pode sonhar. As palavras conservam as reminiscências da vida – assim como a obra de Ian McEwan sobreviverá por meio da nossa leitura.

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