Identidade tecida pela poesia


Confirmada para a próxima Festa Literária Internacional de Paraty, em julho, Jackie Kay espera que a participação a ajude a ter pelo menos um de seus títulos de poesia editado no Brasil

Por Maria Fernanda Rodrigues

Quando Jackie Kay chegar ao Brasil em julho, ela terá a difícil tarefa de, em uma hora e meia e dividindo o palco da Festa Literária Internacional de Paraty com outros escritores, se apresentar e encantar o público. Os agravantes: autora de mais de uma dezena de livros, ela só tem um romance editado aqui - O Trompete (Record); participará como poeta; escreve às vezes num dialeto antigo; vem da Escócia, um país com pouca tradição literária no Brasil. A seu favor está a simpatia, uma bela história de vida e bons poemas.

Jackie não se intimida e espera despertar o interesse das editoras brasileiras para sua poesia. Ela acaba de ser confirmada para a 10.ª Flip, de 4 a 8 de julho, e falou com exclusividade ao Sabático por telefone, de Manchester, onde vive.

A escritora é desconhecida no Brasil, mas sabe muito sobre a festa de Paraty. Sua ex-companheira Carol Ann Duffy participou de um debate interessante com Paulo Henriques Britto no ano passado, embora siga inédita no País. Mas a melhor propaganda foi feita pela grande amiga Ali Smith, para quem Jackie dedicou seu último livro de poemas Fiere (Picador) e de quem, curiosamente, chega às livrarias esta semana A Primeira Pessoa e Outros Contos.

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“Tenho alguns amigos que deliraram com o festival. Ali Smith me disse que essa tinha sido a melhor experiência de sua vida porque ela pôde ser o que é. Carol Ann Duffy disse que foi brilhante ter participado. Pat Kavanagh, que foi minha agente e acompanhou Julian Barnes em uma das primeiras edições, adorou. Ouvi dizer que é bom porque as pessoas sabem como fazer festa e, principalmente, porque a plateia é muito interessada.” 

Filha de mãe escocesa e pai nigeriano, Jackie Kay nasceu em Edimburgo em 1961 e foi criada por pais adotivos escoceses. Essa busca por uma identidade é questão cara à escritora, que estreou na literatura em 1991 com os poemas de The Adoption Papers e voltou ao assunto no livro de memórias Red Dust Road, publicado em 2010 no Reino Unido. Nunca, no entanto, deixou de tocar no assunto em seus trabalhos de prosa ou poesia.

“Escrever é fazer um blend, uma mistura da experiência de vida do poeta com imaginação. É essa coexistência que me interessa. Assim, escrevo livros sobre minha própria vida, mas também invento vozes imaginárias e situações pelas quais não passei”, conta. Para ela, é preciso manter distância, de tempo ou espaço, entre a emoção e a ação de escrever sobre essa emoção. “E você tem de estar se sentindo muito forte quando for escrever.”

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Em Fiere, por exemplo, há texto sobre o dia em que conheceu seu pai biológico. A essa altura ela já tinha 42 anos e foi até a Nigéria para visitá-lo. O encontro durou o tempo de uma refeição, feita no próprio hotel. “Ele foi criado no cristianismo e não quis contar à família sobre mim. Ele queria me manter em segredo e disse que se as pessoas soubessem da minha existência perderiam a fé em Deus. Foi uma experiência difícil.” O encontro único - eles nunca mais se viram - resultou no poema Egusi Soup. Depois de mais essa rejeição, matou o pai em Burying My African Father, publicado no mesmo livro. “Acabei escrevendo sobre isso porque de uma certa forma você escreve para entender e para tentar resolver questões. Aí sou eu vencendo meu pai na minha imaginação.” Há sete anos ela descobriu quem era seu irmão e eles se viram dois anos atrás. Ainda não conhece os outros.

O encontro com a mãe foi parecido, mas aconteceu bem antes, há 23 anos. A gravidez do filho Matthew fez com que ela quisesse conhecer a mulher que a carregou. “Mas ela também tinha uma religião, era mórmon, e manteve essa filha em segredo. É até interessante ter esse sigilo todo em torno de mim”, brinca. Seus pais e suas mães estão vivos. 

Em escocês arcaico, Fiere quer dizer companheiro, colega, cônjuge, semelhante. “É como Ali e eu nos referimos uma à outra.” A palavra dá título ao livro e está presente em vários poemas. Sobre o uso de um idioma antigo, diz que foi o jeito que encontrou de manter a língua viva e conversar com os poetas mortos. “Gosto de manter o estilo escocês vivo num mundo onde a linguagem está se tornando tão americanizada. É importante manter nossas línguas distintas para preservar nosso estilo distinto de contar história. Além disso, uso a língua porque sou negra e gosto de ser uma pessoa negra escrevendo nesse dialeto. Ninguém espera isso. Então, tento encontrar uma forma de escrever sobre identidade em uma língua antiga.” Isso não quer dizer que não trate de assuntos corriqueiros e de forma coloquial em sua poesia. 

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Uma visita ao asilo em que vivia o amigo Edwin Morgan, poeta que ela lia na adolescência e com quem participou, já mais velha, de leituras, morto em 2010, deu origem a Strawberry Meringue. Fiere In The Middle resgata a mesma crise enfrentada por duas amigas em períodos diferentes. O sonoro Between The Dee And The Don é sobre a origem judaica. 

Quando tem uma ideia de poema, Jackie geralmente a deixa “ferver na imaginação por um tempo antes de se preparar para colocar no papel”. Para ela, a poesia vem de uma palavra ouvida, um quadro visto - há alguns inspirados em pinturas de Degas -, o poema de outro escritor, um prazo.

“É preciso inspiração e também trabalho duro para escrever. É um pouco como alquimia, ou como cozinhar: você pode seguir a receita, mas isso não quer dizer que você fará uma comida maravilhosa porque depende de uma dose de je ne sais quoi”, diz a poeta que virá ao Brasil acompanhada do filho, que acaba de fazer um documentário sobre futebol e está empolgado com a viagem, e que se prepara para o lançamento, em maio, no Reino Unido, de Reality, Reality. A obra vai reunir contos centrados em personagens femininas que se questionam sobre o que é realidade. “Elas estão nas beiradas, geralmente se sentindo fora de lugar, algumas pensando que têm o corpo errado e por aí vai.”

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TRECHO

“Eu estava perdida no meio de minha vida (...) Era verão: um caos de folhas./Eu entrei mais longe, mais fundo, do que jamais entrara. (...) A escuridão desceu e me comprimiu./Eu não queria ser encontrada (...) Tu assumiste o risco e te embrenhaste na floresta. (...) Aí, ano passado, foste tu - perdida em tua meia idade./Teu pai morreu, tua amada partiu no inverno mais frio.”

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FIERE IN THE MIDDLE / Tradução de Celso Paciornik

Quando Jackie Kay chegar ao Brasil em julho, ela terá a difícil tarefa de, em uma hora e meia e dividindo o palco da Festa Literária Internacional de Paraty com outros escritores, se apresentar e encantar o público. Os agravantes: autora de mais de uma dezena de livros, ela só tem um romance editado aqui - O Trompete (Record); participará como poeta; escreve às vezes num dialeto antigo; vem da Escócia, um país com pouca tradição literária no Brasil. A seu favor está a simpatia, uma bela história de vida e bons poemas.

Jackie não se intimida e espera despertar o interesse das editoras brasileiras para sua poesia. Ela acaba de ser confirmada para a 10.ª Flip, de 4 a 8 de julho, e falou com exclusividade ao Sabático por telefone, de Manchester, onde vive.

A escritora é desconhecida no Brasil, mas sabe muito sobre a festa de Paraty. Sua ex-companheira Carol Ann Duffy participou de um debate interessante com Paulo Henriques Britto no ano passado, embora siga inédita no País. Mas a melhor propaganda foi feita pela grande amiga Ali Smith, para quem Jackie dedicou seu último livro de poemas Fiere (Picador) e de quem, curiosamente, chega às livrarias esta semana A Primeira Pessoa e Outros Contos.

“Tenho alguns amigos que deliraram com o festival. Ali Smith me disse que essa tinha sido a melhor experiência de sua vida porque ela pôde ser o que é. Carol Ann Duffy disse que foi brilhante ter participado. Pat Kavanagh, que foi minha agente e acompanhou Julian Barnes em uma das primeiras edições, adorou. Ouvi dizer que é bom porque as pessoas sabem como fazer festa e, principalmente, porque a plateia é muito interessada.” 

Filha de mãe escocesa e pai nigeriano, Jackie Kay nasceu em Edimburgo em 1961 e foi criada por pais adotivos escoceses. Essa busca por uma identidade é questão cara à escritora, que estreou na literatura em 1991 com os poemas de The Adoption Papers e voltou ao assunto no livro de memórias Red Dust Road, publicado em 2010 no Reino Unido. Nunca, no entanto, deixou de tocar no assunto em seus trabalhos de prosa ou poesia.

“Escrever é fazer um blend, uma mistura da experiência de vida do poeta com imaginação. É essa coexistência que me interessa. Assim, escrevo livros sobre minha própria vida, mas também invento vozes imaginárias e situações pelas quais não passei”, conta. Para ela, é preciso manter distância, de tempo ou espaço, entre a emoção e a ação de escrever sobre essa emoção. “E você tem de estar se sentindo muito forte quando for escrever.”

Em Fiere, por exemplo, há texto sobre o dia em que conheceu seu pai biológico. A essa altura ela já tinha 42 anos e foi até a Nigéria para visitá-lo. O encontro durou o tempo de uma refeição, feita no próprio hotel. “Ele foi criado no cristianismo e não quis contar à família sobre mim. Ele queria me manter em segredo e disse que se as pessoas soubessem da minha existência perderiam a fé em Deus. Foi uma experiência difícil.” O encontro único - eles nunca mais se viram - resultou no poema Egusi Soup. Depois de mais essa rejeição, matou o pai em Burying My African Father, publicado no mesmo livro. “Acabei escrevendo sobre isso porque de uma certa forma você escreve para entender e para tentar resolver questões. Aí sou eu vencendo meu pai na minha imaginação.” Há sete anos ela descobriu quem era seu irmão e eles se viram dois anos atrás. Ainda não conhece os outros.

O encontro com a mãe foi parecido, mas aconteceu bem antes, há 23 anos. A gravidez do filho Matthew fez com que ela quisesse conhecer a mulher que a carregou. “Mas ela também tinha uma religião, era mórmon, e manteve essa filha em segredo. É até interessante ter esse sigilo todo em torno de mim”, brinca. Seus pais e suas mães estão vivos. 

Em escocês arcaico, Fiere quer dizer companheiro, colega, cônjuge, semelhante. “É como Ali e eu nos referimos uma à outra.” A palavra dá título ao livro e está presente em vários poemas. Sobre o uso de um idioma antigo, diz que foi o jeito que encontrou de manter a língua viva e conversar com os poetas mortos. “Gosto de manter o estilo escocês vivo num mundo onde a linguagem está se tornando tão americanizada. É importante manter nossas línguas distintas para preservar nosso estilo distinto de contar história. Além disso, uso a língua porque sou negra e gosto de ser uma pessoa negra escrevendo nesse dialeto. Ninguém espera isso. Então, tento encontrar uma forma de escrever sobre identidade em uma língua antiga.” Isso não quer dizer que não trate de assuntos corriqueiros e de forma coloquial em sua poesia. 

Uma visita ao asilo em que vivia o amigo Edwin Morgan, poeta que ela lia na adolescência e com quem participou, já mais velha, de leituras, morto em 2010, deu origem a Strawberry Meringue. Fiere In The Middle resgata a mesma crise enfrentada por duas amigas em períodos diferentes. O sonoro Between The Dee And The Don é sobre a origem judaica. 

Quando tem uma ideia de poema, Jackie geralmente a deixa “ferver na imaginação por um tempo antes de se preparar para colocar no papel”. Para ela, a poesia vem de uma palavra ouvida, um quadro visto - há alguns inspirados em pinturas de Degas -, o poema de outro escritor, um prazo.

“É preciso inspiração e também trabalho duro para escrever. É um pouco como alquimia, ou como cozinhar: você pode seguir a receita, mas isso não quer dizer que você fará uma comida maravilhosa porque depende de uma dose de je ne sais quoi”, diz a poeta que virá ao Brasil acompanhada do filho, que acaba de fazer um documentário sobre futebol e está empolgado com a viagem, e que se prepara para o lançamento, em maio, no Reino Unido, de Reality, Reality. A obra vai reunir contos centrados em personagens femininas que se questionam sobre o que é realidade. “Elas estão nas beiradas, geralmente se sentindo fora de lugar, algumas pensando que têm o corpo errado e por aí vai.”

TRECHO

“Eu estava perdida no meio de minha vida (...) Era verão: um caos de folhas./Eu entrei mais longe, mais fundo, do que jamais entrara. (...) A escuridão desceu e me comprimiu./Eu não queria ser encontrada (...) Tu assumiste o risco e te embrenhaste na floresta. (...) Aí, ano passado, foste tu - perdida em tua meia idade./Teu pai morreu, tua amada partiu no inverno mais frio.”

FIERE IN THE MIDDLE / Tradução de Celso Paciornik

Quando Jackie Kay chegar ao Brasil em julho, ela terá a difícil tarefa de, em uma hora e meia e dividindo o palco da Festa Literária Internacional de Paraty com outros escritores, se apresentar e encantar o público. Os agravantes: autora de mais de uma dezena de livros, ela só tem um romance editado aqui - O Trompete (Record); participará como poeta; escreve às vezes num dialeto antigo; vem da Escócia, um país com pouca tradição literária no Brasil. A seu favor está a simpatia, uma bela história de vida e bons poemas.

Jackie não se intimida e espera despertar o interesse das editoras brasileiras para sua poesia. Ela acaba de ser confirmada para a 10.ª Flip, de 4 a 8 de julho, e falou com exclusividade ao Sabático por telefone, de Manchester, onde vive.

A escritora é desconhecida no Brasil, mas sabe muito sobre a festa de Paraty. Sua ex-companheira Carol Ann Duffy participou de um debate interessante com Paulo Henriques Britto no ano passado, embora siga inédita no País. Mas a melhor propaganda foi feita pela grande amiga Ali Smith, para quem Jackie dedicou seu último livro de poemas Fiere (Picador) e de quem, curiosamente, chega às livrarias esta semana A Primeira Pessoa e Outros Contos.

“Tenho alguns amigos que deliraram com o festival. Ali Smith me disse que essa tinha sido a melhor experiência de sua vida porque ela pôde ser o que é. Carol Ann Duffy disse que foi brilhante ter participado. Pat Kavanagh, que foi minha agente e acompanhou Julian Barnes em uma das primeiras edições, adorou. Ouvi dizer que é bom porque as pessoas sabem como fazer festa e, principalmente, porque a plateia é muito interessada.” 

Filha de mãe escocesa e pai nigeriano, Jackie Kay nasceu em Edimburgo em 1961 e foi criada por pais adotivos escoceses. Essa busca por uma identidade é questão cara à escritora, que estreou na literatura em 1991 com os poemas de The Adoption Papers e voltou ao assunto no livro de memórias Red Dust Road, publicado em 2010 no Reino Unido. Nunca, no entanto, deixou de tocar no assunto em seus trabalhos de prosa ou poesia.

“Escrever é fazer um blend, uma mistura da experiência de vida do poeta com imaginação. É essa coexistência que me interessa. Assim, escrevo livros sobre minha própria vida, mas também invento vozes imaginárias e situações pelas quais não passei”, conta. Para ela, é preciso manter distância, de tempo ou espaço, entre a emoção e a ação de escrever sobre essa emoção. “E você tem de estar se sentindo muito forte quando for escrever.”

Em Fiere, por exemplo, há texto sobre o dia em que conheceu seu pai biológico. A essa altura ela já tinha 42 anos e foi até a Nigéria para visitá-lo. O encontro durou o tempo de uma refeição, feita no próprio hotel. “Ele foi criado no cristianismo e não quis contar à família sobre mim. Ele queria me manter em segredo e disse que se as pessoas soubessem da minha existência perderiam a fé em Deus. Foi uma experiência difícil.” O encontro único - eles nunca mais se viram - resultou no poema Egusi Soup. Depois de mais essa rejeição, matou o pai em Burying My African Father, publicado no mesmo livro. “Acabei escrevendo sobre isso porque de uma certa forma você escreve para entender e para tentar resolver questões. Aí sou eu vencendo meu pai na minha imaginação.” Há sete anos ela descobriu quem era seu irmão e eles se viram dois anos atrás. Ainda não conhece os outros.

O encontro com a mãe foi parecido, mas aconteceu bem antes, há 23 anos. A gravidez do filho Matthew fez com que ela quisesse conhecer a mulher que a carregou. “Mas ela também tinha uma religião, era mórmon, e manteve essa filha em segredo. É até interessante ter esse sigilo todo em torno de mim”, brinca. Seus pais e suas mães estão vivos. 

Em escocês arcaico, Fiere quer dizer companheiro, colega, cônjuge, semelhante. “É como Ali e eu nos referimos uma à outra.” A palavra dá título ao livro e está presente em vários poemas. Sobre o uso de um idioma antigo, diz que foi o jeito que encontrou de manter a língua viva e conversar com os poetas mortos. “Gosto de manter o estilo escocês vivo num mundo onde a linguagem está se tornando tão americanizada. É importante manter nossas línguas distintas para preservar nosso estilo distinto de contar história. Além disso, uso a língua porque sou negra e gosto de ser uma pessoa negra escrevendo nesse dialeto. Ninguém espera isso. Então, tento encontrar uma forma de escrever sobre identidade em uma língua antiga.” Isso não quer dizer que não trate de assuntos corriqueiros e de forma coloquial em sua poesia. 

Uma visita ao asilo em que vivia o amigo Edwin Morgan, poeta que ela lia na adolescência e com quem participou, já mais velha, de leituras, morto em 2010, deu origem a Strawberry Meringue. Fiere In The Middle resgata a mesma crise enfrentada por duas amigas em períodos diferentes. O sonoro Between The Dee And The Don é sobre a origem judaica. 

Quando tem uma ideia de poema, Jackie geralmente a deixa “ferver na imaginação por um tempo antes de se preparar para colocar no papel”. Para ela, a poesia vem de uma palavra ouvida, um quadro visto - há alguns inspirados em pinturas de Degas -, o poema de outro escritor, um prazo.

“É preciso inspiração e também trabalho duro para escrever. É um pouco como alquimia, ou como cozinhar: você pode seguir a receita, mas isso não quer dizer que você fará uma comida maravilhosa porque depende de uma dose de je ne sais quoi”, diz a poeta que virá ao Brasil acompanhada do filho, que acaba de fazer um documentário sobre futebol e está empolgado com a viagem, e que se prepara para o lançamento, em maio, no Reino Unido, de Reality, Reality. A obra vai reunir contos centrados em personagens femininas que se questionam sobre o que é realidade. “Elas estão nas beiradas, geralmente se sentindo fora de lugar, algumas pensando que têm o corpo errado e por aí vai.”

TRECHO

“Eu estava perdida no meio de minha vida (...) Era verão: um caos de folhas./Eu entrei mais longe, mais fundo, do que jamais entrara. (...) A escuridão desceu e me comprimiu./Eu não queria ser encontrada (...) Tu assumiste o risco e te embrenhaste na floresta. (...) Aí, ano passado, foste tu - perdida em tua meia idade./Teu pai morreu, tua amada partiu no inverno mais frio.”

FIERE IN THE MIDDLE / Tradução de Celso Paciornik

Quando Jackie Kay chegar ao Brasil em julho, ela terá a difícil tarefa de, em uma hora e meia e dividindo o palco da Festa Literária Internacional de Paraty com outros escritores, se apresentar e encantar o público. Os agravantes: autora de mais de uma dezena de livros, ela só tem um romance editado aqui - O Trompete (Record); participará como poeta; escreve às vezes num dialeto antigo; vem da Escócia, um país com pouca tradição literária no Brasil. A seu favor está a simpatia, uma bela história de vida e bons poemas.

Jackie não se intimida e espera despertar o interesse das editoras brasileiras para sua poesia. Ela acaba de ser confirmada para a 10.ª Flip, de 4 a 8 de julho, e falou com exclusividade ao Sabático por telefone, de Manchester, onde vive.

A escritora é desconhecida no Brasil, mas sabe muito sobre a festa de Paraty. Sua ex-companheira Carol Ann Duffy participou de um debate interessante com Paulo Henriques Britto no ano passado, embora siga inédita no País. Mas a melhor propaganda foi feita pela grande amiga Ali Smith, para quem Jackie dedicou seu último livro de poemas Fiere (Picador) e de quem, curiosamente, chega às livrarias esta semana A Primeira Pessoa e Outros Contos.

“Tenho alguns amigos que deliraram com o festival. Ali Smith me disse que essa tinha sido a melhor experiência de sua vida porque ela pôde ser o que é. Carol Ann Duffy disse que foi brilhante ter participado. Pat Kavanagh, que foi minha agente e acompanhou Julian Barnes em uma das primeiras edições, adorou. Ouvi dizer que é bom porque as pessoas sabem como fazer festa e, principalmente, porque a plateia é muito interessada.” 

Filha de mãe escocesa e pai nigeriano, Jackie Kay nasceu em Edimburgo em 1961 e foi criada por pais adotivos escoceses. Essa busca por uma identidade é questão cara à escritora, que estreou na literatura em 1991 com os poemas de The Adoption Papers e voltou ao assunto no livro de memórias Red Dust Road, publicado em 2010 no Reino Unido. Nunca, no entanto, deixou de tocar no assunto em seus trabalhos de prosa ou poesia.

“Escrever é fazer um blend, uma mistura da experiência de vida do poeta com imaginação. É essa coexistência que me interessa. Assim, escrevo livros sobre minha própria vida, mas também invento vozes imaginárias e situações pelas quais não passei”, conta. Para ela, é preciso manter distância, de tempo ou espaço, entre a emoção e a ação de escrever sobre essa emoção. “E você tem de estar se sentindo muito forte quando for escrever.”

Em Fiere, por exemplo, há texto sobre o dia em que conheceu seu pai biológico. A essa altura ela já tinha 42 anos e foi até a Nigéria para visitá-lo. O encontro durou o tempo de uma refeição, feita no próprio hotel. “Ele foi criado no cristianismo e não quis contar à família sobre mim. Ele queria me manter em segredo e disse que se as pessoas soubessem da minha existência perderiam a fé em Deus. Foi uma experiência difícil.” O encontro único - eles nunca mais se viram - resultou no poema Egusi Soup. Depois de mais essa rejeição, matou o pai em Burying My African Father, publicado no mesmo livro. “Acabei escrevendo sobre isso porque de uma certa forma você escreve para entender e para tentar resolver questões. Aí sou eu vencendo meu pai na minha imaginação.” Há sete anos ela descobriu quem era seu irmão e eles se viram dois anos atrás. Ainda não conhece os outros.

O encontro com a mãe foi parecido, mas aconteceu bem antes, há 23 anos. A gravidez do filho Matthew fez com que ela quisesse conhecer a mulher que a carregou. “Mas ela também tinha uma religião, era mórmon, e manteve essa filha em segredo. É até interessante ter esse sigilo todo em torno de mim”, brinca. Seus pais e suas mães estão vivos. 

Em escocês arcaico, Fiere quer dizer companheiro, colega, cônjuge, semelhante. “É como Ali e eu nos referimos uma à outra.” A palavra dá título ao livro e está presente em vários poemas. Sobre o uso de um idioma antigo, diz que foi o jeito que encontrou de manter a língua viva e conversar com os poetas mortos. “Gosto de manter o estilo escocês vivo num mundo onde a linguagem está se tornando tão americanizada. É importante manter nossas línguas distintas para preservar nosso estilo distinto de contar história. Além disso, uso a língua porque sou negra e gosto de ser uma pessoa negra escrevendo nesse dialeto. Ninguém espera isso. Então, tento encontrar uma forma de escrever sobre identidade em uma língua antiga.” Isso não quer dizer que não trate de assuntos corriqueiros e de forma coloquial em sua poesia. 

Uma visita ao asilo em que vivia o amigo Edwin Morgan, poeta que ela lia na adolescência e com quem participou, já mais velha, de leituras, morto em 2010, deu origem a Strawberry Meringue. Fiere In The Middle resgata a mesma crise enfrentada por duas amigas em períodos diferentes. O sonoro Between The Dee And The Don é sobre a origem judaica. 

Quando tem uma ideia de poema, Jackie geralmente a deixa “ferver na imaginação por um tempo antes de se preparar para colocar no papel”. Para ela, a poesia vem de uma palavra ouvida, um quadro visto - há alguns inspirados em pinturas de Degas -, o poema de outro escritor, um prazo.

“É preciso inspiração e também trabalho duro para escrever. É um pouco como alquimia, ou como cozinhar: você pode seguir a receita, mas isso não quer dizer que você fará uma comida maravilhosa porque depende de uma dose de je ne sais quoi”, diz a poeta que virá ao Brasil acompanhada do filho, que acaba de fazer um documentário sobre futebol e está empolgado com a viagem, e que se prepara para o lançamento, em maio, no Reino Unido, de Reality, Reality. A obra vai reunir contos centrados em personagens femininas que se questionam sobre o que é realidade. “Elas estão nas beiradas, geralmente se sentindo fora de lugar, algumas pensando que têm o corpo errado e por aí vai.”

TRECHO

“Eu estava perdida no meio de minha vida (...) Era verão: um caos de folhas./Eu entrei mais longe, mais fundo, do que jamais entrara. (...) A escuridão desceu e me comprimiu./Eu não queria ser encontrada (...) Tu assumiste o risco e te embrenhaste na floresta. (...) Aí, ano passado, foste tu - perdida em tua meia idade./Teu pai morreu, tua amada partiu no inverno mais frio.”

FIERE IN THE MIDDLE / Tradução de Celso Paciornik

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