A platéia que lotava o teatro tinha se tornado personagem à parte, armada até os dentes de assobios e faixas. Queria impor no berro a sua escolha. Os artistas, isolados em seus camarins, sentiam-se prontos para enfrentar os leões. Na noite da grande final, vaias e aplausos se misturavam. Uns mais vaiados do que aplaudidos, outros mais aplaudidos do que vaiados. Mas, quando chegou a minha vez, a vaia foi unânime. Veja também: Violada aos 40: ouça músicas do 3º Festival da Record Sergio Ricardo quebra o violão no Festival da Record Não tinha jeito de cantar. Por causa do barulho, era impossível ouvir o acompanhamento. Me senti acuado e resolvi reagir. Disse uns desaforos, que depois a censura cortou do vídeo. Em seguida, quebrei o meu violão e o atirei sobre o público. Naquela hora, pouco me importava se estivesse jogando para o alto tudo o que eu tinha construído na minha carreira. A Elis Regina me abraçou, emocionada e solidária com o meu gesto. Minha música foi desclassificada pela direção da TV Record. Saí do teatro sob escolta. Uma parte da platéia queria me linchar. O violão do Sérgio Ricardo, esse nosso Kurt Cobain, veio a esbofetear um sujeito sentado nas primeiras filas. A performance pode ser verificada no YouTube, desde o momento em que o Sérgio começa a entoar os primeiros versos de Beto Bom de Bola até o instante em que pisa na mesma, arremessando o instrumento. Em frente ao palco, no fosso destinado às orquestras do Teatro Paramount, em São Paulo, ficavam os 15 jurados deste que é considerado o grande Festival de Música Popular Brasileira em todos os tempos. Há controvérsia a respeito de qual carcaça craniana teria sido mais perigosamente sobrevoada pela ferramenta de trabalho de Sérgio Ricardo. "Passou bem em cima de mim", diz o maestro Julio Medaglia. Numa posição intermediária, "alguma coisa passou zunindo" sobre a corcova do jornalista Salomão Schwartzman. Também o poeta Ferreira Gullar deve ter ouvido aquele violão, no alarido rolando por cima do seu telhado. O júri do III Festival de Música Popular Brasileira ocupava posição das mais complicadas - e não apenas porque ficava na linha de frente, sujeito a levar uma cabongada. O problema é que em 1967 a rivalidade de estilos musicais chegou a seu ápice, fazendo surgir as torcidas organizadas. Em anos anteriores, o público que acompanhava os festivais ao vivo, de dentro do teatro, limitava-se a aplaudir canções de que gostava. Agora havia uma clara indisposição com os "inimigos", muitas vezes vaiados impiedosamente até o último acorde. O enfrentamento extrapolava o espaço do Paramount, antigo cine-teatro construído no final dos anos 20, hoje Teatro Abril. Palco que recebera Nat King Cole em 1959, acabou arrendado pela TV Record em 67, justamente para as transmissões do Festival. Nas ruas, até passeatas eram empreendidas para manifestar apoio a este ou aquele compositor. O clima político ajudava a botar lenha na fogueira. Uma parte do público ainda se emocionava com a Jovem Guarda, cuja temática tinha a profundidade da Daniella Cicarelli no Video Music Brasil - sem querer ofender a Jovem Guarda. Uma outra parte só aceitava as letras que dessem na ditadura a sua violada. Para embaralhar ainda mais o jogo, emergia desse caldeirão uma turma de espantosa qualidade. Entre os compositores que interpretaram suas próprias músicas, o Festival de 1967 reuniu Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Edu Lobo. Entre os cantores, Roberto Carlos, Elis Regina, Gal Costa. Até a Hebe Camargo, mas deixa isso pra lá. Com o público fungando na retaguarda, não era raro voar sobre o júri ovos e tomates. Numa das eliminatórias, o jornalista e jurado Sérgio Cabral, pai do atual governador do Rio de Janeiro, viu o produto da feira passar "raspando no meu nariz e estourar perto do Gullar e do Chico Anysio", outro dos que compunham o júri. Para sair do teatro, Cabral desenvolveu a técnica do absurdo. Consistia em segurar a mulher pelo braço e atravessar o auditório repetindo o seguinte bordão: "Mas isso é um absurdo! É um absurdo! Um absurdo!". Dessa forma, não importando a qualidade dos inconformados, o Sérgio Cabral estava sempre do lado deles. Escolher o júri para o Festival de 1967 foi um parto. Nenhuma tendência deveria ser privilegiada. "Tratava-se de resolver uma equação com três variáveis: o conhecimento para a avaliação, a credibilidade junto à empresa e ao meio musical, e a posição política", conta o crítico de música Zuza Homem de Mello em A Era dos Festivais (Editora 34, esgotado). A solução foi parir uma metade de gente de esquerda e outra de direita, misturá-las a figuras da indústria do disco, executivos da Record, maestros, jornalistas. A primeira atividade do grupo foi chafurdar centenas de fitas K-7. Para fugir do assédio, Julio Medaglia, então com 29 anos, levava o balaio e os gatos para a casa do pai dele, no bairro da Lapa, em São Paulo. "Passamos um mês ouvindo música e tomando caipirinha." Embora parte do corpo de jurados, Julio Medaglia podia fazer arranjo para quem ele quisesse - arranjo musical, veja bem. Chegou a colaborar com Gilberto Gil em Domingo no Parque, a música que chegaria em segundo lugar. Mas, "como Rogério Duprat tinha sido expulso da Universidade de Brasília e estava completamente duro, eu dei para ele esse espaço". Por sugestão do Julio Medaglia, Duprat juntaria Gil e Os Mutantes, lançando as bases do Tropicalismo. "A gente sempre foi contra o rock", ele diz, "mas sabíamos distinguir um Jimi Hendrix, uma Janis Joplin". Por isso foi convidado por Caetano Veloso para trabalhar no arranjo de Alegria, Alegria, cuja música seria executada pelos argentinos dos Beat Boys. Seguro de que "o contraste já viria da mistura da banda de rock com a marcha-rancho", acabou se autodispensando da função. Caetano tirou quarto lugar, colocando-se ao lado de Gil como a grande surpresa musical daquele ano - e contribuindo decisivamente para mudar a cara da MPB a partir de 1968, justificando, em 67, o título de "Festival da Virada". Julio Medaglia voltaria a trabalhar com ele em 68, assinando o arranjo de Tropicália. Há poucos meses, o Julio, que está com 69 anos, emprestou para uma exposição a partitura original da música. "Fizeram um seguro milionário", diz. "Tomara que suma." Sérgio Cabral, o pai, fazia parte da "tradicional família musical". Por isso ficou "chocado" quando soube que Gil e Caetano subiriam ao palco acompanhados de bandas de rock. "Mas a estética matou a minha ideologia em 2 minutos". Ainda que desprovido de ideologia, deu seu voto para Ponteio mesmo, a música de Edu Lobo que levou o primeiro lugar. O Chico Anysio não. O Chico Anysio cravou Alegria, Alegria, porque considera Caetano "o melhor letrista do Brasil, mais até do que o Chico Buarque". Se o Chico Anysio disser isso para o Ferreira Gullar, corre o risco de tomar uma violada. Em 1967, Gullar não teve dúvida: deu seu voto para Roda Vida, de Chico Buarque, que terminou o Festival em terceiro lugar. O Ferreira Gullar até conhecia o Caetano, que "tinha vindo tomar conta da Bethânia quando ela chegou no Teatro Opinião para fazer o Carcará". Mas naquele tempo a esquerda ainda votava na esquerda. Salomão Schwartzman, que segundo o próprio sofreu "um expurgo stalinista" ao ser demitido recentemente da Rede Cultura, apostou em Domingo no Parque. "Durante o Festival, todos nós tínhamos a noção de estar diante de algo maravilhoso", lembra Sérgio Cabral. "O que não sabíamos era que aquilo nunca mais se repetiria com tanta qualidade." Sentindo que o sucesso do Festival poderia conduzir a vaca diretamente para o brejo, Julio Medaglia procurou Paulinho Machado de Carvalho, o dono da Record. Pediu que "não matasse a galinha dos ovos de ouro". Sugeriu que preservasse os artistas contratados pela emissora, sob pena de transformá-los em celebridades, e de o povo se cansar de suas músicas. "Mas não adiantou nada", ele diz. "É por isso que nos anos 70 vieram a turma das sapatonas e os seus boleros horríveis. Foi só se esboçar a abertura política, e a música brasileira acabou." Quarenta anos se passaram de um momento glorioso da MPB. Com exceção daqueles que na época se organizaram empresarialmente, os demais se transformaram em dinossauros. As lições que tiro do violão quebrado estão guardadas no meu coração. Numa disputa esportiva, vence o que faz mais gols, ganha o cavalo que primeiro botar o focinho no olho mecânico. É incontestável. Qual música é inferior ou superior à outra: Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, ou Carinhoso, de Pixinguinha? Em qual você vota? Isso não existe. Sérgio Ricardo vive hoje no Rio de Janeiro. Tem 75 anos e prepara o lançamento de um novo CD. Além de ter composto a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, o Sérgio vai deixar como legado uma das mais famosas manchetes da história do jornalismo brasileiro, publicada por um jornal popular: "Violada no auditório".
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