As peças de Beckett nunca se pareceram com a vida real, mas a vida real se parece demais com as peças de Beckett. A literatura do norte-americano E.L. Doctorow tem igualmente pouco a ver com a dramaturgia do irlandês, mas encontrou na vida de dois irmãos já mortos uma situação muito próxima da absurda relação entre os personagens Hamm e Clov da peça Fim de Partida, em que o primeiro é um cego paralítico e o último seu criado, ambos mutuamente dependentes. Doctorow tinha 7 anos quando o New York Times publicou, em 1938, a história de dois irmãos que viviam sozinhos numa mansão de quatro andares na Quinta Avenida, em Nova York, atulhada de pilhas de jornais, máquinas de escrever, pianos, quadros, carrinhos de bebê e até um Ford Bigode instalado no meio da sala, que, transformado pelo mais novo, servia como aquecedor e fonte alternativa de luz, cortada por falta de pagamento, assim como o gás, a água e o telefone.Em seu comovente Homer & Langley, o escritor resolveu contar a história do ponto de vista do irmão cego e paralítico, Homer (1881-1947). O irmão mais velho da inacreditável saga da família Collyer frequentou as melhores escolas, aprendeu música e acabou formado em Direito na Universidade de Colúmbia. Já Langley (1885-1947) estudou para ser engenheiro, embora nunca tenha exercido a profissão. Lutou na 1.ª Guerra e voltou seriamente perturbado com tanto gás mostarda que respirou. O pai, ginecologista famoso casado com uma socialite cantora de ópera, abandonou a casa em 1919, um ano após o fim do conflito. Ninguém jamais soube o motivo de sua atitude. O Harlem não era, então, o famoso bairro negro, berço de famosos clubes de jazz, mas um reduto de ricos caucasianos encravado em Manhattan. Mortos pai e mãe (o primeiro em 1923; ela, seis anos depois), coube a Langley cuidar do irmão cego, que também ficaria preso a uma cadeira (alvo da cobiça de mórbidos colecionadores), paralisado por causa de um maldito reumatismo.Samuel Beckett (1906-1989), ao que se saiba, nunca mencionou os irmãos americanos, mas muitas das situações descritas por Doctorow em seu livro poderiam facilmente figurar em suas peças. Se os pais não foram exatamente os do personagem Hamm, ou seja, não precisavam morar numa lata de lixo, os filhos de Herman Livingston Collyer e Susie Gage Frost muitas vezes dependeram dela para comer. Langley, com frequência, ia buscar nos restos despejados pelas mercearias e açougues o almoço ou o jantar do irmão. Com a progressiva paranoia de Langley, que transformou a mansão num bunker de dois reclusos, criando um labirinto de túneis de jornais, o descontrole financeiro foi tal que ele e o irmão - já sem dinheiro por causa das hipotecas e dos investimentos desastrados dos pais - muitas vezes viveram a pão e água.Doctorow, naturalmente, não pretendeu reconstituir a vida dos dois irmãos como um trabalho jornalístico. Há muita invenção em Homer & Langley, mas a essência da história está lá: a obsessão do irmão mais novo, dado a provar sua excêntrica teoria das substituições. Nela, os homens seriam como os bisões, condenados à monótona repetição de padrões no mundo - uma tese eminentemente beckettiana, se considerada a intercambiável posição dos personagens nas peças do dramaturgo e sua aposta na humanidade como uma invenção sem futuro. Para Langley, tudo, absolutamente tudo, podia ser substituído sem grande prejuízo na face do planeta, dos pais aos jogadores de beisebol. Convencido disso, começou a guardar todos os jornais para que pudesse, um dia, sintetizar a história humana numa edição especial, um jornal único para todos os tempos, borgiano, tomando como referência um padrão: a experiência existencial de ambos. Pena que fosse uma família disfuncional. O pai, um excêntrico, como o filho, costumava ser visto arrastando sua canoa pelas ruas, que usava no East River para ir diariamente ao hospital da ilha Blackwell, em Manhattan.Entre as liberdades tomadas por Doctorow, a mais flagrante é a mudança na dieta a que Langley submete o irmão, convencido de que a cegueira de Homer é reversível. Talvez porque laranjas fossem mais fáceis de serem descartadas pelas mercearias do bairro, ele elabora uma receita em que mistura frutas cítricas com pão preto e pasta de amendoim (os policiais acharam 34 talões de cheques ao topar com os dois mortos, em 1947, o que explicaria eventuais extravagâncias gastronômicas). Doctorow acrescenta à dieta nozes moídas da Mongólia e doses cavalares de vitaminas A e E. No livro, Homer diz que engolia o preparado sem muita convicção, apenas por amor ao irmão. Essa consciência faz do mais velho um narrador lúcido, embora essa sanidade seja apenas aparente. A união fraternal de Homer e Langley, que os leva a dividir até mesmo o objeto da paixão do primeiro, uma aluna de música, é uma resposta ao mundo hostil e em mutação que os confina num bunker. Em contrapartida, essa resistência também reflete a paranoia do núcleo familiar, embora Doctorow resista ao apelo do sociológico.Se Ragtime tentava resumir a história americana dos primeiros anos do século passado por meio da trajetória de três famílias, Homer & Langley resiste ao épico, ainda que o filho mais velho lembre com nostalgia dos elegantes saraus na mansão reduzida a ruínas - metáfora que tanto serve para a decadência familiar como para o declínio do império americano causado pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, ano da morte da matriarca Collyer.Esse drama, na vida real, teve um fim no dia 21 de março de 1947. Um vizinho, sentindo o cheiro da morte vindo da mansão, chamou a polícia. Um esquadrão de sete homens teve de enfrentar pilhas de caixas de revistas e montanhas de lixo para encontrar em meio a esse caótico cenário o corpo de Homer, morto por desnutrição. O cadáver do irmão emergeria horas depois de uma pirâmide de jornais velhos. Langley morreu soterrado num dos túneis que construiu para afastar intrusos. Doctorow não chega lá. Homer, o narrador, perde a consciência antes disso. Não há dor mais insuportável do que o silêncio da morte num mundo outrora sólido e seguro. O colecionismo dos dois irmãos tinha algo da loucura de um Bispo do Rosário: compensar a memória que se esvai.