A perversão sexual, o submundo do crime e a crueldade da opressão social são os elementos principais da obra de Jean Genet (1910-1986), escritor francês abominado pela burguesia e venerado pela elite intelectual européia. A tragédia As Criadas, de sua autoria, tornou-se um clássico do repertório teatral contemporâneo. Yoshi Oida, diretor japonês da mítica companhia de Peter Brook, acaba de criar um balé inspirado nessa peça com o bailarino e coreógrafo brasileiro Ismael Ivo e o afro-francês Koffi Kôkô nos papéis das criadas. O espetáculo, que estreou recentemente na Alemanha e provocou grande polêmica, chega este mês ao Brasil para participar, na quinta e na sexta, do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto e para apresentação única em São Paulo, no Sesc Vila Mariana, no dia 24. Na peça de Genet, encenada pela primeira vez em 1947, em Paris, as irmãs Claire e Solange se sentem sufocadas pela condição de criadas e quase enlouquecem por não conseguirem mudar de vida. Toda vez que a madame sai de casa, elas dão asas à imaginação e, sempre alternando os papéis, simulam um ritual macabro de assassinato da patroa. A brincadeira acaba se tornando a purgação emocional de cada uma e um ensaio para a prática de um crime verdadeiro. "Nossa intenção é abordar o universo de Genet e falar da sociedade de hoje, prisioneira da religião, da política, da moral e da economia", explica Yoshi Oida. "E Genet busca justamente a libertação da sociedade." Para o diretor, que soma influências do moderno teatro europeu com o teatro japonês tradicional, Genet procurava fazer um teatro que unisse o homem ao universo: "Tudo em As Criadas é ritual, tudo tem simbologia, é repetição de palavras e gestos numa misteriosa geometria", afirma. Como o escritor francês queria, o balé As Criadas ganhou cunho oriental e teve os personagens femininos protagonizados por homens, como no cabúqui japonês e na antiga tradição teatral elizabetana. O caráter ritualístico e religioso é um dos componentes centrais do espetáculo. Enquanto Ismael Ivo trabalha com elementos da dança-teatro, mesclando candomblé com dança expressionista, o bailarino e sacerdote Koffi Kôkô, de Benin, desenvolve uma linguagem de movimentos inspirada na dança africana. "Comecei a dançar num contexto ritualístico com a dança do orixá, mas isso foi há 27 anos. De lá para cá, já rodei o mundo e conheci outras técnicas", narra Koffi, que diz não encarnar o sacerdote na peça, embora carregue o espírito dele consigo. O bailarino adorou iniciar uma parceria artística com Ismael Ivo: "Além da nossa conexão por meio da genealogia histórica, eu e Ismael temos a mesma espiritualidade. A conexão está nas nossas raízes, nas profundezas do nosso ser e na relação que temos com o mundo." Sufista - O dançarino turco Ziya Azazi completa o trio da peça no papel da madame. Mestre na dança dos dervixes - místicos e ascetas muçulmanos que seguem o sufismo -, o artista pontua o espetáculo com exibições acrobáticas. "Não foi nada fácil fazer esse trabalho, tive de superar todos os meus limites, mas no final valeu a pena. Tivemos problemas de relacionamento humano, culturais e diferenças de pontos de vista", conta Azazi. Outra participação importante é a de João de Bruço. O percussionista paulista, que mora há dez anos em Viena e diz conhecer Ismael Ivo "das antigas", já criou composições e arranjos para balés de Ruth Rachou, Sônia Motta, Mara Borba e Klauss Vianna. Para fazer a trilha de As Criadas, João usou a base pentatônica como ponto comum entre as culturas asiática, africana e brasileira. Além de dois estrados, apenas seus instrumentos compõem o cenário. Ao fundo do palco, uma caixa acústica presa ao teto e ligada por uma mola a uma outra caixa presa ao chão é usada como parede imaginária. Um móbile de metal com canos e correntes penduradas - "para o som ficar mais sujo", explica o músico - tem estilo new age, e o terceiro instrumento é formado por duas bacias com bolas de gude. João também fala trechos do texto de Genet para localizar o espectador na história e também entrega os adereços aos bailarinos: luvas vermelhas, chapéus, pá e vassourinha de limpeza são usados como objetos de fetiche. "Nosso projeto consiste na pesquisa do universo de Jean Genet usando música, dança e texto, como no teatro tradicional japonês, o cabúqui, que usa simultaneamente esses três elementos", compara Yoshi, que nega a intenção de querer criar um novo cabúqui ou um cabúqui contemporâneo. "Nos primórdios do teatro ocidental esses três elementos também eram indissociáveis. Na realidade, pretendemos resgatar a origem do teatro por meio do trabalho de Genet, sem ficar preso ao texto de As Criadas", esclarece. A primeira cena do balé reproduz o início do curta Un Chant d´Amour, filmado por Genet na década de 50. "Nossa peça começa pelo fim, quando a criada Claire é levada para a prisão e a irmã dela já tinha tomado o chá envenenado. Quer dizer, a coreografia se dá na memória de Claire, que imagina a irmã na cela ao lado", explica Ismael Ivo. Opiniões divididas - O balé As Criadas recebeu espaço nobre nos cadernos de cultura dos principais jornais da Alemanha e teve as críticas contrastantes - algumas elogiosas e outras devastadoras. A bailarina e coreógrafa Marcia Haydée, que dirigiu o Ballet de Stuttgart por 20 anos, estava presente à 13.ª e última exibição do balé na Alemanha antes de o grupo embarcar para o Brasil. Ela declarou ter achado a interpretação dos bailarinos "fantástica" e discordou da imprensa alemã que reclamou de pouca dança no espetáculo: "A única coisa que eu achei fora do ponto foi o final, que está muito delicado. O Ismael quer deixar a situação no ar, mas para isso é preciso atentar, por exemplo, para o timing de como se retira a luz", opinou a consagrada bailarina. No dia em que Marcia assistiu ao espetáculo, a platéia da Casa Teatral de Stuttgart estava lotada e o público aplaudiu o espetáculo por quase dez minutos. Se Ismael Ivo é um dos maiores bailarinos da atualidade ou não, isso é uma questão de gosto. Pelo menos num fator todo mundo concorda: ele é, sem dúvida, um dos mais polêmicos.