James Baldwin volta às livrarias em novas traduções


O primeiro livro a ser lançado é 'O Quarto de Giovanni', já no mercado, seguido por 'Terra Estranha', que sai em setembro

Por Paulo Nogueira
Atualização:

Por estranho que pareça, as obras literárias e os autores, como as civilizações e a largura das bocas das calças, também têm suas intermitências, eclipses, descobertas tardias, esquecimentos e renascimentos. Na literatura, cada uma destas reações diz tanto sobre os livros como sobre as respectivas épocas e suas leituras. É o caso do escritor, dramaturgo e ensaísta americano James Baldwin, negro e gay, que após bombar na década de 1960 e depois resvalar para um relativo limbo, agora volta a causar, num contexto que é ao mesmo tempo semelhante e diferente. Tanto que seu romance mais controverso, O Quarto de Giovanni, acaba de ser publicado no Brasil, e já em setembro sai outro, Terra Estranha.

James Baldwin:radical é autor doromance 'O Quarto de Giovanni' Foto: Companhia das Letras

Como autor de uma obra importante, Baldwin nunca chegou, de fato, a ser chutado para escanteio. No funeral dele, em 1987, Toni Morrison agradeceu-lhe simplesmente a sua ferramenta de trabalho: “Você me deu a linguagem onde morar, um presente tão perfeito que parece invenção minha.” E Morrison não estava se pavoneando: seis anos depois, ela ganhou o Nobel. Em 2016, Obama citou Baldwin na inauguração do Museu Smithsonian, em Washington, dedicado à história e à cultura afro-americanas.

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Mas o que realmente quebrou o gelo da criogenia literária em que hibernavam os textos de Baldwin foi o documentário Eu Não Sou o Seu Negro, de Raoul Peck, baseado no último livro do escritor, Remember This House. Em 1979, Baldwin enviou uma carta ao seu editor, propondo contar uma parte da história dos EUA a partir da vida de três amigos assassinados em cinco anos, entre 1963 e 1968. Eram o ativista Medgar Evans; Malcolm X, paladino do nacionalismo negro; e o pastor pacifista Martin Luther King – todos afro-americanos. Porém, Baldwin morreu deixando só um manuscrito de 30 páginas. Foi este esboço que Raoul Peck transfigurou no documentário narrado por Samuel L. Jackson. O filme foi candidato ao Oscar e exumou de vez o prestígio e a influência de James Baldwin.

 Baldwin nasceu em 1924, no Harlem. Ele conta que era admirador de John Wayne e que aprendeu a amar os livros e o cinema com uma professora branca. Aos sete anos viu Joan Crawford e arriou os quatro pneus. Depois Bette Davis o ensinou a fumar. Diz que “nunca senti ódio pelos brancos nem fui racista, ao contrário de alguns negros. Mas cedo percebi que meus amigos brancos me abandonavam na porta da escola – a amizade não valia para o recreio.”

Dando uma banana para este mundinho claustrofóbico, Baldwin se expatriou na França em 1948, aos 24 anos. “Podia ter ido para Hong-Kong, para Tombuctu. Acabei em Paris, com US$ 40 no bolso e a teoria de que nada pior poderia acontecer comigo lá do que já tinha acontecido”. Bom, o caminho havia sido desbravado. A expressão “um americano em Paris” virou até título de filme, e a “Geração Perdida” – de Hemingway, Fitzgerald e Gertrude Stein –, que pintou e bordou nas margens do Sena nos anos 1920, está no cânone das letras dos EUA. Um estudo francês (Paris Dans La Littérature Américaine, de Jean Meral) registra duzentos romances americanos situados em Paris, escritos entre 1824 e 1980. Não deixava, claro, de ser um exílio, como realçou o poeta John Ahsbery: “O fato de termos vivido em Paris nos torna incapazes de viver em qualquer outro lugar, incluindo Paris.”

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A grande vantagem era a cosmopolita tolerância francesa, da qual também se beneficiavam gays e negros. Quando Baldwin pisou em Paris, já encontrou lá dois escritores afro-americanos, Chester Himes e Richard Wright, este último seu antigo mentor. A homossexualidade estava despenalizada na França desde 1791. O país produziu alguns dos mais reverenciados autores homossexuais, como Proust, Gide, Genet, Cocteau, Marguerite Yourcenar. Todavia, assumir-se publicamente podiam ser outros quinhentos. Proust desafiou para um duelo outro escritor francês, Jean Lorrain (também gay), porque este “insinuara” que ele era homossexual (as armas foram disparadas, mas felizmente não houve vítimas). E já no século 20, quando Michel Foucault morreu de aids em 1984, o jornal Libération, no qual o próprio filósofo escrevia, negou na primeira página a verdadeira causa da morte.

Baldwin viveu grande parte da vida numa casa em Saint-Paul de Vence, no sul da França, “meu único lar no mundo”. Chez Baldwin saracotearam, entre outros, Miles Davis, Nina Simone, George Braque, Yves Montand e Simone Signoret. É nesta casa que começa e termina a história de O Quarto de Giovanni

Baldwin tentou separar suas opiniões sociais e políticas dos textos literários. Achava que uma ficção narrativa precisa acima de tudo contar uma boa história, e para isso os personagens não podem degenerar em bonecos de ventríloquo das doutrinas do autor. Por outro lado, para alguns – como o crítico Harold Bloom – o melhor de Baldwin está em seus ensaios, como Notes of a Native Son, referência seja ao principal romance de Richard Wright (Native Son), seja a autobiografia de Henry James (Notes of a Son and Brother). Quando o volume de ensaios The Fire Next Time saiu em 1963, permaneceu 41 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Baldwin já era um dos mais respeitados porta-vozes do movimento pelos direitos civis nos EUA. Naquele mesmo ano, foi capa de revista Time, se reuniu com o procurador-geral Robert Kennedy e protagonizou a célebre marcha de Washington, de braço dado com seu amigo Marlon Brando. O FBI acumulou um dossiê de quase duas mil páginas sobre ele. 

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 A estreia literária de Baldwin foi com Go Tell It On The Mountain, sobre uma família negra que procura a esperança na religião. Aos 14 anos, o autor já era pastor protestante, mas acabou apostasiando. Em 1998, o livro foi incluído na lista dos cem melhores romances de língua inglesa do século 20, organizada pela Modern Library.

 Terra Estranha foi iniciado em 1948, no Greenwich Village, mas só terminado nos anos 1960, num quarto com vista para o Bósforo. Nele, Baldwin chuta o balde de modo mais veemente, numa trama que se estende por um ano, e abarca do Harlem aos bairros boêmios de Nova York. Desfila um cortejo de violência étnica em becos sórdidos, abuso doméstico em cortiços lúgubres, jazz sessions se evolando de porões enfumaçados. E sexo aos borbotões: transas brancas, negras e inter-raciais, hétero e homo. Naquela época, o nome de Baldwin constava do Security Index, uma lista de pessoas a serem presas no caso de um estado de emergência. No entanto, o funcionário do FBI designado para avaliar Terra Estranha anotou em seu relatório que “o livro tem mérito literário e pode ser útil aos estudantes de psicologia e comportamento social. Não justifica uma investigação.” 

O Quarto de Giovanni é a obra mais famosa de Baldwin – seu conteúdo homoerótico mitou. Convém lembrar que, em 1956, os movimentos de afirmação gay ainda nem tinham virado a esquina. Só que, como se trata de Baldwin, nada é açucarado ou retilíneo: o amor homoerótico de David e Giovanni (ambos brancos) não corresponde a um idílio edênico ou dionisíaco, mas a um vórtice de sofrência extática. O próprio protagonista gay – que está noivo de uma mulher – é homofóbico, no sentido em que se odeia e tenta reprimir seus impulsos. O armário é o seu caixão de Drácula, onde David se enterra vivo – só que este vampiro teme a noite, e não o dia.

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Talvez como nunca, a proficiência literária de Baldwin é arrebatadora. O romance abre com um esplêndido foreshadowing: “Estou parado à janela deste casarão no sul da França ao cair da noite, a noite que vai me levar à manhã mais terrível da minha vida.” Cem páginas depois, esta manhã ainda não nasceu – a narrativa é cronologicamente ziguezagueante: o antes fica para depois.

 A beleza verbal do texto é estonteante – talvez uma catarse do autor, que, não exatamente um gato, era patologicamente sensível à sua aparência física. Ecoando os tempos de pastor de Baldwin, ressoam fulgurantes cadências bíblicas: “Talvez todo mundo tenha seu jardim do Éden, não sei; mas as pessoas mal têm tempo de vê-lo e já aparece a espada em chamas. Talvez a vida só ofereça as opções de lembrar-se do jardim ou esquecê-lo. Uma coisa ou outra: é preciso ter força para lembrar, e é preciso ter outro tipo de força para esquecer. As pessoas que lembram correm o risco de enlouquecer de dor, a dor da morte da sua inocência, a recorrer eternamente; as que esquecem se arriscam a mergulhar em outra espécie de loucura, a loucura de negar a dor e odiar a inocência; e o mundo basicamente se divide entre loucos que lembram e loucos que esquecem.”

O legado de Baldwin é duradouro, mas volátil, sobretudo no campo ideológico. Num contexto recente pós-Baltimore, pós-Charlotte e pós-Staten Island, onde afro-americanos morreram por causa do preconceito, gerando movimentos como o Black Lives Matter, ele é invocado, mas talvez não devidamente compreendido. Por um lado, Barry Jenkins (de Moonlight) está rodando um filme baseado num romance de Baldwin, If Beale Street Could Talk (que será publicado aqui pela editora Companhia das Letras, em novembro). Por outro, Tef Poe, o rapper, clama que “este movimento dos direitos civis não é aquele dos nossos avós”. Por um lado, gorgoleja no Twitter a hashtag #sonofBaldwin”. Por outro, o poeta negro LeRoi Jones rotulou Baldwin com um epíteto de gosto duvidoso e até homofóbico: “Ele é a Joana D’Arc da esquerda festiva”. 

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Baldwin era prismático demais, diferente demais para caber numa única caixinha – era uma minoria de um. Não se considerava um escritor gay, nem um escritor negro – mas escritor e ponto final. A condição humana, com todos seus horrores e esplendores, era seu tema. Nunca se acomodou num gueto nem numa baia, nunca foi refém nem parasita de nenhuma agenda. Não desistiu e resistiu até o fim, pagando o preço que lhe cobraram. Foi um homem corajoso, lúcido e de imenso talento, que jamais jogava para a galera (qualquer que ela fosse), sem certezas absolutas mas de sólidas convicções, penosa e laboriosamente conquistadas. Um negro que não era nosso nem de ninguém – só dele próprio.

Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios)

Por estranho que pareça, as obras literárias e os autores, como as civilizações e a largura das bocas das calças, também têm suas intermitências, eclipses, descobertas tardias, esquecimentos e renascimentos. Na literatura, cada uma destas reações diz tanto sobre os livros como sobre as respectivas épocas e suas leituras. É o caso do escritor, dramaturgo e ensaísta americano James Baldwin, negro e gay, que após bombar na década de 1960 e depois resvalar para um relativo limbo, agora volta a causar, num contexto que é ao mesmo tempo semelhante e diferente. Tanto que seu romance mais controverso, O Quarto de Giovanni, acaba de ser publicado no Brasil, e já em setembro sai outro, Terra Estranha.

James Baldwin:radical é autor doromance 'O Quarto de Giovanni' Foto: Companhia das Letras

Como autor de uma obra importante, Baldwin nunca chegou, de fato, a ser chutado para escanteio. No funeral dele, em 1987, Toni Morrison agradeceu-lhe simplesmente a sua ferramenta de trabalho: “Você me deu a linguagem onde morar, um presente tão perfeito que parece invenção minha.” E Morrison não estava se pavoneando: seis anos depois, ela ganhou o Nobel. Em 2016, Obama citou Baldwin na inauguração do Museu Smithsonian, em Washington, dedicado à história e à cultura afro-americanas.

Mas o que realmente quebrou o gelo da criogenia literária em que hibernavam os textos de Baldwin foi o documentário Eu Não Sou o Seu Negro, de Raoul Peck, baseado no último livro do escritor, Remember This House. Em 1979, Baldwin enviou uma carta ao seu editor, propondo contar uma parte da história dos EUA a partir da vida de três amigos assassinados em cinco anos, entre 1963 e 1968. Eram o ativista Medgar Evans; Malcolm X, paladino do nacionalismo negro; e o pastor pacifista Martin Luther King – todos afro-americanos. Porém, Baldwin morreu deixando só um manuscrito de 30 páginas. Foi este esboço que Raoul Peck transfigurou no documentário narrado por Samuel L. Jackson. O filme foi candidato ao Oscar e exumou de vez o prestígio e a influência de James Baldwin.

 Baldwin nasceu em 1924, no Harlem. Ele conta que era admirador de John Wayne e que aprendeu a amar os livros e o cinema com uma professora branca. Aos sete anos viu Joan Crawford e arriou os quatro pneus. Depois Bette Davis o ensinou a fumar. Diz que “nunca senti ódio pelos brancos nem fui racista, ao contrário de alguns negros. Mas cedo percebi que meus amigos brancos me abandonavam na porta da escola – a amizade não valia para o recreio.”

Dando uma banana para este mundinho claustrofóbico, Baldwin se expatriou na França em 1948, aos 24 anos. “Podia ter ido para Hong-Kong, para Tombuctu. Acabei em Paris, com US$ 40 no bolso e a teoria de que nada pior poderia acontecer comigo lá do que já tinha acontecido”. Bom, o caminho havia sido desbravado. A expressão “um americano em Paris” virou até título de filme, e a “Geração Perdida” – de Hemingway, Fitzgerald e Gertrude Stein –, que pintou e bordou nas margens do Sena nos anos 1920, está no cânone das letras dos EUA. Um estudo francês (Paris Dans La Littérature Américaine, de Jean Meral) registra duzentos romances americanos situados em Paris, escritos entre 1824 e 1980. Não deixava, claro, de ser um exílio, como realçou o poeta John Ahsbery: “O fato de termos vivido em Paris nos torna incapazes de viver em qualquer outro lugar, incluindo Paris.”

A grande vantagem era a cosmopolita tolerância francesa, da qual também se beneficiavam gays e negros. Quando Baldwin pisou em Paris, já encontrou lá dois escritores afro-americanos, Chester Himes e Richard Wright, este último seu antigo mentor. A homossexualidade estava despenalizada na França desde 1791. O país produziu alguns dos mais reverenciados autores homossexuais, como Proust, Gide, Genet, Cocteau, Marguerite Yourcenar. Todavia, assumir-se publicamente podiam ser outros quinhentos. Proust desafiou para um duelo outro escritor francês, Jean Lorrain (também gay), porque este “insinuara” que ele era homossexual (as armas foram disparadas, mas felizmente não houve vítimas). E já no século 20, quando Michel Foucault morreu de aids em 1984, o jornal Libération, no qual o próprio filósofo escrevia, negou na primeira página a verdadeira causa da morte.

Baldwin viveu grande parte da vida numa casa em Saint-Paul de Vence, no sul da França, “meu único lar no mundo”. Chez Baldwin saracotearam, entre outros, Miles Davis, Nina Simone, George Braque, Yves Montand e Simone Signoret. É nesta casa que começa e termina a história de O Quarto de Giovanni

Baldwin tentou separar suas opiniões sociais e políticas dos textos literários. Achava que uma ficção narrativa precisa acima de tudo contar uma boa história, e para isso os personagens não podem degenerar em bonecos de ventríloquo das doutrinas do autor. Por outro lado, para alguns – como o crítico Harold Bloom – o melhor de Baldwin está em seus ensaios, como Notes of a Native Son, referência seja ao principal romance de Richard Wright (Native Son), seja a autobiografia de Henry James (Notes of a Son and Brother). Quando o volume de ensaios The Fire Next Time saiu em 1963, permaneceu 41 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Baldwin já era um dos mais respeitados porta-vozes do movimento pelos direitos civis nos EUA. Naquele mesmo ano, foi capa de revista Time, se reuniu com o procurador-geral Robert Kennedy e protagonizou a célebre marcha de Washington, de braço dado com seu amigo Marlon Brando. O FBI acumulou um dossiê de quase duas mil páginas sobre ele. 

 A estreia literária de Baldwin foi com Go Tell It On The Mountain, sobre uma família negra que procura a esperança na religião. Aos 14 anos, o autor já era pastor protestante, mas acabou apostasiando. Em 1998, o livro foi incluído na lista dos cem melhores romances de língua inglesa do século 20, organizada pela Modern Library.

 Terra Estranha foi iniciado em 1948, no Greenwich Village, mas só terminado nos anos 1960, num quarto com vista para o Bósforo. Nele, Baldwin chuta o balde de modo mais veemente, numa trama que se estende por um ano, e abarca do Harlem aos bairros boêmios de Nova York. Desfila um cortejo de violência étnica em becos sórdidos, abuso doméstico em cortiços lúgubres, jazz sessions se evolando de porões enfumaçados. E sexo aos borbotões: transas brancas, negras e inter-raciais, hétero e homo. Naquela época, o nome de Baldwin constava do Security Index, uma lista de pessoas a serem presas no caso de um estado de emergência. No entanto, o funcionário do FBI designado para avaliar Terra Estranha anotou em seu relatório que “o livro tem mérito literário e pode ser útil aos estudantes de psicologia e comportamento social. Não justifica uma investigação.” 

O Quarto de Giovanni é a obra mais famosa de Baldwin – seu conteúdo homoerótico mitou. Convém lembrar que, em 1956, os movimentos de afirmação gay ainda nem tinham virado a esquina. Só que, como se trata de Baldwin, nada é açucarado ou retilíneo: o amor homoerótico de David e Giovanni (ambos brancos) não corresponde a um idílio edênico ou dionisíaco, mas a um vórtice de sofrência extática. O próprio protagonista gay – que está noivo de uma mulher – é homofóbico, no sentido em que se odeia e tenta reprimir seus impulsos. O armário é o seu caixão de Drácula, onde David se enterra vivo – só que este vampiro teme a noite, e não o dia.

Talvez como nunca, a proficiência literária de Baldwin é arrebatadora. O romance abre com um esplêndido foreshadowing: “Estou parado à janela deste casarão no sul da França ao cair da noite, a noite que vai me levar à manhã mais terrível da minha vida.” Cem páginas depois, esta manhã ainda não nasceu – a narrativa é cronologicamente ziguezagueante: o antes fica para depois.

 A beleza verbal do texto é estonteante – talvez uma catarse do autor, que, não exatamente um gato, era patologicamente sensível à sua aparência física. Ecoando os tempos de pastor de Baldwin, ressoam fulgurantes cadências bíblicas: “Talvez todo mundo tenha seu jardim do Éden, não sei; mas as pessoas mal têm tempo de vê-lo e já aparece a espada em chamas. Talvez a vida só ofereça as opções de lembrar-se do jardim ou esquecê-lo. Uma coisa ou outra: é preciso ter força para lembrar, e é preciso ter outro tipo de força para esquecer. As pessoas que lembram correm o risco de enlouquecer de dor, a dor da morte da sua inocência, a recorrer eternamente; as que esquecem se arriscam a mergulhar em outra espécie de loucura, a loucura de negar a dor e odiar a inocência; e o mundo basicamente se divide entre loucos que lembram e loucos que esquecem.”

O legado de Baldwin é duradouro, mas volátil, sobretudo no campo ideológico. Num contexto recente pós-Baltimore, pós-Charlotte e pós-Staten Island, onde afro-americanos morreram por causa do preconceito, gerando movimentos como o Black Lives Matter, ele é invocado, mas talvez não devidamente compreendido. Por um lado, Barry Jenkins (de Moonlight) está rodando um filme baseado num romance de Baldwin, If Beale Street Could Talk (que será publicado aqui pela editora Companhia das Letras, em novembro). Por outro, Tef Poe, o rapper, clama que “este movimento dos direitos civis não é aquele dos nossos avós”. Por um lado, gorgoleja no Twitter a hashtag #sonofBaldwin”. Por outro, o poeta negro LeRoi Jones rotulou Baldwin com um epíteto de gosto duvidoso e até homofóbico: “Ele é a Joana D’Arc da esquerda festiva”. 

Baldwin era prismático demais, diferente demais para caber numa única caixinha – era uma minoria de um. Não se considerava um escritor gay, nem um escritor negro – mas escritor e ponto final. A condição humana, com todos seus horrores e esplendores, era seu tema. Nunca se acomodou num gueto nem numa baia, nunca foi refém nem parasita de nenhuma agenda. Não desistiu e resistiu até o fim, pagando o preço que lhe cobraram. Foi um homem corajoso, lúcido e de imenso talento, que jamais jogava para a galera (qualquer que ela fosse), sem certezas absolutas mas de sólidas convicções, penosa e laboriosamente conquistadas. Um negro que não era nosso nem de ninguém – só dele próprio.

Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios)

Por estranho que pareça, as obras literárias e os autores, como as civilizações e a largura das bocas das calças, também têm suas intermitências, eclipses, descobertas tardias, esquecimentos e renascimentos. Na literatura, cada uma destas reações diz tanto sobre os livros como sobre as respectivas épocas e suas leituras. É o caso do escritor, dramaturgo e ensaísta americano James Baldwin, negro e gay, que após bombar na década de 1960 e depois resvalar para um relativo limbo, agora volta a causar, num contexto que é ao mesmo tempo semelhante e diferente. Tanto que seu romance mais controverso, O Quarto de Giovanni, acaba de ser publicado no Brasil, e já em setembro sai outro, Terra Estranha.

James Baldwin:radical é autor doromance 'O Quarto de Giovanni' Foto: Companhia das Letras

Como autor de uma obra importante, Baldwin nunca chegou, de fato, a ser chutado para escanteio. No funeral dele, em 1987, Toni Morrison agradeceu-lhe simplesmente a sua ferramenta de trabalho: “Você me deu a linguagem onde morar, um presente tão perfeito que parece invenção minha.” E Morrison não estava se pavoneando: seis anos depois, ela ganhou o Nobel. Em 2016, Obama citou Baldwin na inauguração do Museu Smithsonian, em Washington, dedicado à história e à cultura afro-americanas.

Mas o que realmente quebrou o gelo da criogenia literária em que hibernavam os textos de Baldwin foi o documentário Eu Não Sou o Seu Negro, de Raoul Peck, baseado no último livro do escritor, Remember This House. Em 1979, Baldwin enviou uma carta ao seu editor, propondo contar uma parte da história dos EUA a partir da vida de três amigos assassinados em cinco anos, entre 1963 e 1968. Eram o ativista Medgar Evans; Malcolm X, paladino do nacionalismo negro; e o pastor pacifista Martin Luther King – todos afro-americanos. Porém, Baldwin morreu deixando só um manuscrito de 30 páginas. Foi este esboço que Raoul Peck transfigurou no documentário narrado por Samuel L. Jackson. O filme foi candidato ao Oscar e exumou de vez o prestígio e a influência de James Baldwin.

 Baldwin nasceu em 1924, no Harlem. Ele conta que era admirador de John Wayne e que aprendeu a amar os livros e o cinema com uma professora branca. Aos sete anos viu Joan Crawford e arriou os quatro pneus. Depois Bette Davis o ensinou a fumar. Diz que “nunca senti ódio pelos brancos nem fui racista, ao contrário de alguns negros. Mas cedo percebi que meus amigos brancos me abandonavam na porta da escola – a amizade não valia para o recreio.”

Dando uma banana para este mundinho claustrofóbico, Baldwin se expatriou na França em 1948, aos 24 anos. “Podia ter ido para Hong-Kong, para Tombuctu. Acabei em Paris, com US$ 40 no bolso e a teoria de que nada pior poderia acontecer comigo lá do que já tinha acontecido”. Bom, o caminho havia sido desbravado. A expressão “um americano em Paris” virou até título de filme, e a “Geração Perdida” – de Hemingway, Fitzgerald e Gertrude Stein –, que pintou e bordou nas margens do Sena nos anos 1920, está no cânone das letras dos EUA. Um estudo francês (Paris Dans La Littérature Américaine, de Jean Meral) registra duzentos romances americanos situados em Paris, escritos entre 1824 e 1980. Não deixava, claro, de ser um exílio, como realçou o poeta John Ahsbery: “O fato de termos vivido em Paris nos torna incapazes de viver em qualquer outro lugar, incluindo Paris.”

A grande vantagem era a cosmopolita tolerância francesa, da qual também se beneficiavam gays e negros. Quando Baldwin pisou em Paris, já encontrou lá dois escritores afro-americanos, Chester Himes e Richard Wright, este último seu antigo mentor. A homossexualidade estava despenalizada na França desde 1791. O país produziu alguns dos mais reverenciados autores homossexuais, como Proust, Gide, Genet, Cocteau, Marguerite Yourcenar. Todavia, assumir-se publicamente podiam ser outros quinhentos. Proust desafiou para um duelo outro escritor francês, Jean Lorrain (também gay), porque este “insinuara” que ele era homossexual (as armas foram disparadas, mas felizmente não houve vítimas). E já no século 20, quando Michel Foucault morreu de aids em 1984, o jornal Libération, no qual o próprio filósofo escrevia, negou na primeira página a verdadeira causa da morte.

Baldwin viveu grande parte da vida numa casa em Saint-Paul de Vence, no sul da França, “meu único lar no mundo”. Chez Baldwin saracotearam, entre outros, Miles Davis, Nina Simone, George Braque, Yves Montand e Simone Signoret. É nesta casa que começa e termina a história de O Quarto de Giovanni

Baldwin tentou separar suas opiniões sociais e políticas dos textos literários. Achava que uma ficção narrativa precisa acima de tudo contar uma boa história, e para isso os personagens não podem degenerar em bonecos de ventríloquo das doutrinas do autor. Por outro lado, para alguns – como o crítico Harold Bloom – o melhor de Baldwin está em seus ensaios, como Notes of a Native Son, referência seja ao principal romance de Richard Wright (Native Son), seja a autobiografia de Henry James (Notes of a Son and Brother). Quando o volume de ensaios The Fire Next Time saiu em 1963, permaneceu 41 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Baldwin já era um dos mais respeitados porta-vozes do movimento pelos direitos civis nos EUA. Naquele mesmo ano, foi capa de revista Time, se reuniu com o procurador-geral Robert Kennedy e protagonizou a célebre marcha de Washington, de braço dado com seu amigo Marlon Brando. O FBI acumulou um dossiê de quase duas mil páginas sobre ele. 

 A estreia literária de Baldwin foi com Go Tell It On The Mountain, sobre uma família negra que procura a esperança na religião. Aos 14 anos, o autor já era pastor protestante, mas acabou apostasiando. Em 1998, o livro foi incluído na lista dos cem melhores romances de língua inglesa do século 20, organizada pela Modern Library.

 Terra Estranha foi iniciado em 1948, no Greenwich Village, mas só terminado nos anos 1960, num quarto com vista para o Bósforo. Nele, Baldwin chuta o balde de modo mais veemente, numa trama que se estende por um ano, e abarca do Harlem aos bairros boêmios de Nova York. Desfila um cortejo de violência étnica em becos sórdidos, abuso doméstico em cortiços lúgubres, jazz sessions se evolando de porões enfumaçados. E sexo aos borbotões: transas brancas, negras e inter-raciais, hétero e homo. Naquela época, o nome de Baldwin constava do Security Index, uma lista de pessoas a serem presas no caso de um estado de emergência. No entanto, o funcionário do FBI designado para avaliar Terra Estranha anotou em seu relatório que “o livro tem mérito literário e pode ser útil aos estudantes de psicologia e comportamento social. Não justifica uma investigação.” 

O Quarto de Giovanni é a obra mais famosa de Baldwin – seu conteúdo homoerótico mitou. Convém lembrar que, em 1956, os movimentos de afirmação gay ainda nem tinham virado a esquina. Só que, como se trata de Baldwin, nada é açucarado ou retilíneo: o amor homoerótico de David e Giovanni (ambos brancos) não corresponde a um idílio edênico ou dionisíaco, mas a um vórtice de sofrência extática. O próprio protagonista gay – que está noivo de uma mulher – é homofóbico, no sentido em que se odeia e tenta reprimir seus impulsos. O armário é o seu caixão de Drácula, onde David se enterra vivo – só que este vampiro teme a noite, e não o dia.

Talvez como nunca, a proficiência literária de Baldwin é arrebatadora. O romance abre com um esplêndido foreshadowing: “Estou parado à janela deste casarão no sul da França ao cair da noite, a noite que vai me levar à manhã mais terrível da minha vida.” Cem páginas depois, esta manhã ainda não nasceu – a narrativa é cronologicamente ziguezagueante: o antes fica para depois.

 A beleza verbal do texto é estonteante – talvez uma catarse do autor, que, não exatamente um gato, era patologicamente sensível à sua aparência física. Ecoando os tempos de pastor de Baldwin, ressoam fulgurantes cadências bíblicas: “Talvez todo mundo tenha seu jardim do Éden, não sei; mas as pessoas mal têm tempo de vê-lo e já aparece a espada em chamas. Talvez a vida só ofereça as opções de lembrar-se do jardim ou esquecê-lo. Uma coisa ou outra: é preciso ter força para lembrar, e é preciso ter outro tipo de força para esquecer. As pessoas que lembram correm o risco de enlouquecer de dor, a dor da morte da sua inocência, a recorrer eternamente; as que esquecem se arriscam a mergulhar em outra espécie de loucura, a loucura de negar a dor e odiar a inocência; e o mundo basicamente se divide entre loucos que lembram e loucos que esquecem.”

O legado de Baldwin é duradouro, mas volátil, sobretudo no campo ideológico. Num contexto recente pós-Baltimore, pós-Charlotte e pós-Staten Island, onde afro-americanos morreram por causa do preconceito, gerando movimentos como o Black Lives Matter, ele é invocado, mas talvez não devidamente compreendido. Por um lado, Barry Jenkins (de Moonlight) está rodando um filme baseado num romance de Baldwin, If Beale Street Could Talk (que será publicado aqui pela editora Companhia das Letras, em novembro). Por outro, Tef Poe, o rapper, clama que “este movimento dos direitos civis não é aquele dos nossos avós”. Por um lado, gorgoleja no Twitter a hashtag #sonofBaldwin”. Por outro, o poeta negro LeRoi Jones rotulou Baldwin com um epíteto de gosto duvidoso e até homofóbico: “Ele é a Joana D’Arc da esquerda festiva”. 

Baldwin era prismático demais, diferente demais para caber numa única caixinha – era uma minoria de um. Não se considerava um escritor gay, nem um escritor negro – mas escritor e ponto final. A condição humana, com todos seus horrores e esplendores, era seu tema. Nunca se acomodou num gueto nem numa baia, nunca foi refém nem parasita de nenhuma agenda. Não desistiu e resistiu até o fim, pagando o preço que lhe cobraram. Foi um homem corajoso, lúcido e de imenso talento, que jamais jogava para a galera (qualquer que ela fosse), sem certezas absolutas mas de sólidas convicções, penosa e laboriosamente conquistadas. Um negro que não era nosso nem de ninguém – só dele próprio.

Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios)

Por estranho que pareça, as obras literárias e os autores, como as civilizações e a largura das bocas das calças, também têm suas intermitências, eclipses, descobertas tardias, esquecimentos e renascimentos. Na literatura, cada uma destas reações diz tanto sobre os livros como sobre as respectivas épocas e suas leituras. É o caso do escritor, dramaturgo e ensaísta americano James Baldwin, negro e gay, que após bombar na década de 1960 e depois resvalar para um relativo limbo, agora volta a causar, num contexto que é ao mesmo tempo semelhante e diferente. Tanto que seu romance mais controverso, O Quarto de Giovanni, acaba de ser publicado no Brasil, e já em setembro sai outro, Terra Estranha.

James Baldwin:radical é autor doromance 'O Quarto de Giovanni' Foto: Companhia das Letras

Como autor de uma obra importante, Baldwin nunca chegou, de fato, a ser chutado para escanteio. No funeral dele, em 1987, Toni Morrison agradeceu-lhe simplesmente a sua ferramenta de trabalho: “Você me deu a linguagem onde morar, um presente tão perfeito que parece invenção minha.” E Morrison não estava se pavoneando: seis anos depois, ela ganhou o Nobel. Em 2016, Obama citou Baldwin na inauguração do Museu Smithsonian, em Washington, dedicado à história e à cultura afro-americanas.

Mas o que realmente quebrou o gelo da criogenia literária em que hibernavam os textos de Baldwin foi o documentário Eu Não Sou o Seu Negro, de Raoul Peck, baseado no último livro do escritor, Remember This House. Em 1979, Baldwin enviou uma carta ao seu editor, propondo contar uma parte da história dos EUA a partir da vida de três amigos assassinados em cinco anos, entre 1963 e 1968. Eram o ativista Medgar Evans; Malcolm X, paladino do nacionalismo negro; e o pastor pacifista Martin Luther King – todos afro-americanos. Porém, Baldwin morreu deixando só um manuscrito de 30 páginas. Foi este esboço que Raoul Peck transfigurou no documentário narrado por Samuel L. Jackson. O filme foi candidato ao Oscar e exumou de vez o prestígio e a influência de James Baldwin.

 Baldwin nasceu em 1924, no Harlem. Ele conta que era admirador de John Wayne e que aprendeu a amar os livros e o cinema com uma professora branca. Aos sete anos viu Joan Crawford e arriou os quatro pneus. Depois Bette Davis o ensinou a fumar. Diz que “nunca senti ódio pelos brancos nem fui racista, ao contrário de alguns negros. Mas cedo percebi que meus amigos brancos me abandonavam na porta da escola – a amizade não valia para o recreio.”

Dando uma banana para este mundinho claustrofóbico, Baldwin se expatriou na França em 1948, aos 24 anos. “Podia ter ido para Hong-Kong, para Tombuctu. Acabei em Paris, com US$ 40 no bolso e a teoria de que nada pior poderia acontecer comigo lá do que já tinha acontecido”. Bom, o caminho havia sido desbravado. A expressão “um americano em Paris” virou até título de filme, e a “Geração Perdida” – de Hemingway, Fitzgerald e Gertrude Stein –, que pintou e bordou nas margens do Sena nos anos 1920, está no cânone das letras dos EUA. Um estudo francês (Paris Dans La Littérature Américaine, de Jean Meral) registra duzentos romances americanos situados em Paris, escritos entre 1824 e 1980. Não deixava, claro, de ser um exílio, como realçou o poeta John Ahsbery: “O fato de termos vivido em Paris nos torna incapazes de viver em qualquer outro lugar, incluindo Paris.”

A grande vantagem era a cosmopolita tolerância francesa, da qual também se beneficiavam gays e negros. Quando Baldwin pisou em Paris, já encontrou lá dois escritores afro-americanos, Chester Himes e Richard Wright, este último seu antigo mentor. A homossexualidade estava despenalizada na França desde 1791. O país produziu alguns dos mais reverenciados autores homossexuais, como Proust, Gide, Genet, Cocteau, Marguerite Yourcenar. Todavia, assumir-se publicamente podiam ser outros quinhentos. Proust desafiou para um duelo outro escritor francês, Jean Lorrain (também gay), porque este “insinuara” que ele era homossexual (as armas foram disparadas, mas felizmente não houve vítimas). E já no século 20, quando Michel Foucault morreu de aids em 1984, o jornal Libération, no qual o próprio filósofo escrevia, negou na primeira página a verdadeira causa da morte.

Baldwin viveu grande parte da vida numa casa em Saint-Paul de Vence, no sul da França, “meu único lar no mundo”. Chez Baldwin saracotearam, entre outros, Miles Davis, Nina Simone, George Braque, Yves Montand e Simone Signoret. É nesta casa que começa e termina a história de O Quarto de Giovanni

Baldwin tentou separar suas opiniões sociais e políticas dos textos literários. Achava que uma ficção narrativa precisa acima de tudo contar uma boa história, e para isso os personagens não podem degenerar em bonecos de ventríloquo das doutrinas do autor. Por outro lado, para alguns – como o crítico Harold Bloom – o melhor de Baldwin está em seus ensaios, como Notes of a Native Son, referência seja ao principal romance de Richard Wright (Native Son), seja a autobiografia de Henry James (Notes of a Son and Brother). Quando o volume de ensaios The Fire Next Time saiu em 1963, permaneceu 41 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Baldwin já era um dos mais respeitados porta-vozes do movimento pelos direitos civis nos EUA. Naquele mesmo ano, foi capa de revista Time, se reuniu com o procurador-geral Robert Kennedy e protagonizou a célebre marcha de Washington, de braço dado com seu amigo Marlon Brando. O FBI acumulou um dossiê de quase duas mil páginas sobre ele. 

 A estreia literária de Baldwin foi com Go Tell It On The Mountain, sobre uma família negra que procura a esperança na religião. Aos 14 anos, o autor já era pastor protestante, mas acabou apostasiando. Em 1998, o livro foi incluído na lista dos cem melhores romances de língua inglesa do século 20, organizada pela Modern Library.

 Terra Estranha foi iniciado em 1948, no Greenwich Village, mas só terminado nos anos 1960, num quarto com vista para o Bósforo. Nele, Baldwin chuta o balde de modo mais veemente, numa trama que se estende por um ano, e abarca do Harlem aos bairros boêmios de Nova York. Desfila um cortejo de violência étnica em becos sórdidos, abuso doméstico em cortiços lúgubres, jazz sessions se evolando de porões enfumaçados. E sexo aos borbotões: transas brancas, negras e inter-raciais, hétero e homo. Naquela época, o nome de Baldwin constava do Security Index, uma lista de pessoas a serem presas no caso de um estado de emergência. No entanto, o funcionário do FBI designado para avaliar Terra Estranha anotou em seu relatório que “o livro tem mérito literário e pode ser útil aos estudantes de psicologia e comportamento social. Não justifica uma investigação.” 

O Quarto de Giovanni é a obra mais famosa de Baldwin – seu conteúdo homoerótico mitou. Convém lembrar que, em 1956, os movimentos de afirmação gay ainda nem tinham virado a esquina. Só que, como se trata de Baldwin, nada é açucarado ou retilíneo: o amor homoerótico de David e Giovanni (ambos brancos) não corresponde a um idílio edênico ou dionisíaco, mas a um vórtice de sofrência extática. O próprio protagonista gay – que está noivo de uma mulher – é homofóbico, no sentido em que se odeia e tenta reprimir seus impulsos. O armário é o seu caixão de Drácula, onde David se enterra vivo – só que este vampiro teme a noite, e não o dia.

Talvez como nunca, a proficiência literária de Baldwin é arrebatadora. O romance abre com um esplêndido foreshadowing: “Estou parado à janela deste casarão no sul da França ao cair da noite, a noite que vai me levar à manhã mais terrível da minha vida.” Cem páginas depois, esta manhã ainda não nasceu – a narrativa é cronologicamente ziguezagueante: o antes fica para depois.

 A beleza verbal do texto é estonteante – talvez uma catarse do autor, que, não exatamente um gato, era patologicamente sensível à sua aparência física. Ecoando os tempos de pastor de Baldwin, ressoam fulgurantes cadências bíblicas: “Talvez todo mundo tenha seu jardim do Éden, não sei; mas as pessoas mal têm tempo de vê-lo e já aparece a espada em chamas. Talvez a vida só ofereça as opções de lembrar-se do jardim ou esquecê-lo. Uma coisa ou outra: é preciso ter força para lembrar, e é preciso ter outro tipo de força para esquecer. As pessoas que lembram correm o risco de enlouquecer de dor, a dor da morte da sua inocência, a recorrer eternamente; as que esquecem se arriscam a mergulhar em outra espécie de loucura, a loucura de negar a dor e odiar a inocência; e o mundo basicamente se divide entre loucos que lembram e loucos que esquecem.”

O legado de Baldwin é duradouro, mas volátil, sobretudo no campo ideológico. Num contexto recente pós-Baltimore, pós-Charlotte e pós-Staten Island, onde afro-americanos morreram por causa do preconceito, gerando movimentos como o Black Lives Matter, ele é invocado, mas talvez não devidamente compreendido. Por um lado, Barry Jenkins (de Moonlight) está rodando um filme baseado num romance de Baldwin, If Beale Street Could Talk (que será publicado aqui pela editora Companhia das Letras, em novembro). Por outro, Tef Poe, o rapper, clama que “este movimento dos direitos civis não é aquele dos nossos avós”. Por um lado, gorgoleja no Twitter a hashtag #sonofBaldwin”. Por outro, o poeta negro LeRoi Jones rotulou Baldwin com um epíteto de gosto duvidoso e até homofóbico: “Ele é a Joana D’Arc da esquerda festiva”. 

Baldwin era prismático demais, diferente demais para caber numa única caixinha – era uma minoria de um. Não se considerava um escritor gay, nem um escritor negro – mas escritor e ponto final. A condição humana, com todos seus horrores e esplendores, era seu tema. Nunca se acomodou num gueto nem numa baia, nunca foi refém nem parasita de nenhuma agenda. Não desistiu e resistiu até o fim, pagando o preço que lhe cobraram. Foi um homem corajoso, lúcido e de imenso talento, que jamais jogava para a galera (qualquer que ela fosse), sem certezas absolutas mas de sólidas convicções, penosa e laboriosamente conquistadas. Um negro que não era nosso nem de ninguém – só dele próprio.

Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios)

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