Jan Brokken conta o esplendor cultural de São Petersburgo em novo livro


Vladimir Nabokov, Anna Akhmatova e Liev Gumilev têm suas histórias contadas em um cenário fervilhante

Por Paulo Nogueira
Atualização:

Especialmente a partir do Modernismo, quase tudo da arte contemporânea germinou em berços urbanos carismáticos: Viena, Tóquio, Nova York, Londres, São Paulo. Já havia monografias magistrais descrevendo esses nichos e as respectivas ninhadas, como a de Edmund White sobre Paris, a de John Banville sobre Praga ou a de Ruy Castro sobre o Rio de Janeiro. Agora Jan Brokken mostra São Petersburgo como um sonho feliz de cidade: se não na política (o contexto é o totalitarismo soviético e o populismo de Putin), pelo menos enquanto cornucópia de obras-primas. Para mim, um dos lançamentos do ano.

Às margens do Báltico, São Petersburgo (SP) foi fundada em 1703 por Pedro, o Grande, como signo da modernização russa (o imperador proibiu o uso de barba). Continuou como capital até 1918, sucedida por Moscou. Em 1924 foi rebatizada como Leningrado, mas com o colapso da URSS em 1991 recuperou o nome original. Lar do Hermitage, um dos maiores museus do mundo, SP é e sempre foi a alma cultural da Rússia. Jan Brokken é um autor holandês de premiados romances, biografias e livros de viagens. “O Esplendor de São Petersburgo” conjuga apetitosamente esses gêneros.

Estação Finlândia, um dos marcos de São Petersburgo, na gelada Rússia  Foto: Ana Carolina Sacoman/Estadão
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Brokken visitou a cidade em dois momentos: em 1975, sob o comunismo, e quarenta anos depois, sob Putin. A obra é uma genealogia subjetiva mas enciclopédica de figurinhas carimbadas da literatura, música, pintura e cinema, o excelso panteão de SP: Puchkin, Mandelstam, Gogol, Dostoiévski, Stravinski, Turgueniev, Tchaikovsky, Malevitch, Nabokov e Tarkóvski, entre outros. De quebra, traz fotos emocionantes sobre esse dream team. SP e Moscou esgrimem um eterno Fla-Flu, com a primeira ganhando de goleada no âmbito artístico. Mas não levando. Como resmungam os peterburguenses: onde começou a Revolução de 1917? Em SP. Qual virou capital em 1918? Moscou. SP carrega o ônus, Moscou o bônus. Em termos, pois qual metrópole pode se gabar de uma rua onde eram vizinhos três escritores do pedigree de Gogol, Turgueniev e Dostoievski? SP vence Moscou até no kitsch. Se a Praça Vermelha exibe a múmia de Lenin, o pênis do monge Rasputin se pavoneia num frasco deformol no Museu do Erotismo de SP, “ao lado de uma clínica para problemas na próstata”.

Mas quem rouba este livro como uma Robin Hood lírica – depenando os filisteus para dar aos leitores - é a poeta Anna Akhmatova, barbada para o pódio das mulheres mais fascinantes que jamais existiram (tietada por VIP como Boris Pasternak – que a pediu em casamento três vezes -, Isaiah Berlin, Modigliani, Joseph Brodsky, etc).

Visitantes olham uma das musas do pintor Amadeo Modigliani, de 1916, no Museu de Arte de Zurique  Foto: Arnd Wiegmann/REUTERS
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Sob o comunismo, a maioria dos habitantes de Leningrado sabia na ponta da língua os versos de Réquiem, cuja edição completa seria publicada apenas no fim da URSS. Na vida de Akhmatova, desgraça pouca era bobagem. Nikolai Gumilev, o primeiro marido, foi fuzilado pela polícia política logo depois da revolução de 1917. O segundo morreu num campo de concentração, onde o filho dela vegetou por catorze anos e sucumbiu o maior amigo de Akhmatova , o grande Ossip Mandelstam. O melhor pupilo dela, o futuro Nobel Joseph Brodsky, definhou cinco anos na cadeia e foi deportado. Ela própria não passou sequer um dia no xilindró (nem Stalin tinha esse topete). Mas foi impedida de publicar e viveu em cortiços, porém com uma empáfia de duquesa e despedaçando corações como quem sopra dentes-de-leão.

Uma outra efígie do livro é espectral: Vladimir Nabokov, que passou a infância e juventude em SP, mas se mandou para Cambridge em 1920 e nunca mais voltou. Hoje há um museu em SP dedicado ao autor de Lolita, cujo muro em 2013 apareceu pichado com a palavra “pedófilo”. A melhor amiga da irmã de Nabokov em SP era uma pirralha chamada Alisa Rosenbaum, mais tarde escritora com o pseudônimo de Ayn Rand. Brokken conta um causo encantador sobre Alexander Soljenitsyn, o Nobel de literatura que expôs as atrocidades do Gulag. O editor de Soljenitsyn e Nabokov marcou um encontro entre ambos, a pedido do primeiro, no restaurante do Hotel Palace, em Montreux, onde este último morava com a mulher, Vera. Soljenitsyn, um ex-zek (o termo para os prisioneiros do Gulag), amarelou na hora H e deu o cano nos anfitriões, que o esperaram à mesa com cara de tacho.

O escritor russo Vladimir Nabokov, autor do polêmico 'Lolita' Foto: Yousuf Karsh
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O livro termina com Liev Gumilev, filho de Nikolai e Anna Akhmatova. A relação era tensa: Liev odiava o poema “Réquiem", no qual a poeta descreve suas peregrinações diárias à penitenciária onde ele estava encarcerado: “Fui preso primeiro por causa do meu pai, e depois por causa da minha mãe”. Liev tão-pouco suportava que todo mundo se apaixonasse por Anna – ele só se casou aos 55 anos. Achava que a mãe poderia ter feito mais por ele, embora ela tenha chegado a ponto de escrever poemas em louvor de Stalin, para obter o perdão do filho.

Gumilev tornou-se um historiador proeminente, postulando que a cultura russa não é europeia, mas eurasiana, e reabilitando o legado mongol (a Universidade do Cazaquistão foi batizada com o nome dele). Por ironia do destino, essa ideia acabou apropriada por Putin, cujo avô fora cozinheiro de Lenin. Gumilev

morreu em 1992, com um aura de guru, e não viu a anexação da Crimeia em 2014 por Putin, o primeiro passo para uma “união euroasiática”. Putin bajulou o filho de Akhmatova em vários discursos. Gumilev reconciliou-se com a mãe apenas no funeral dela, em 1966. Antes de o caixão ser fechado, beijou-a demoradamente na testa, observado por um comovido Joseph Brodsky. Brokken inclui essa foto no livro.

Especialmente a partir do Modernismo, quase tudo da arte contemporânea germinou em berços urbanos carismáticos: Viena, Tóquio, Nova York, Londres, São Paulo. Já havia monografias magistrais descrevendo esses nichos e as respectivas ninhadas, como a de Edmund White sobre Paris, a de John Banville sobre Praga ou a de Ruy Castro sobre o Rio de Janeiro. Agora Jan Brokken mostra São Petersburgo como um sonho feliz de cidade: se não na política (o contexto é o totalitarismo soviético e o populismo de Putin), pelo menos enquanto cornucópia de obras-primas. Para mim, um dos lançamentos do ano.

Às margens do Báltico, São Petersburgo (SP) foi fundada em 1703 por Pedro, o Grande, como signo da modernização russa (o imperador proibiu o uso de barba). Continuou como capital até 1918, sucedida por Moscou. Em 1924 foi rebatizada como Leningrado, mas com o colapso da URSS em 1991 recuperou o nome original. Lar do Hermitage, um dos maiores museus do mundo, SP é e sempre foi a alma cultural da Rússia. Jan Brokken é um autor holandês de premiados romances, biografias e livros de viagens. “O Esplendor de São Petersburgo” conjuga apetitosamente esses gêneros.

Estação Finlândia, um dos marcos de São Petersburgo, na gelada Rússia  Foto: Ana Carolina Sacoman/Estadão

Brokken visitou a cidade em dois momentos: em 1975, sob o comunismo, e quarenta anos depois, sob Putin. A obra é uma genealogia subjetiva mas enciclopédica de figurinhas carimbadas da literatura, música, pintura e cinema, o excelso panteão de SP: Puchkin, Mandelstam, Gogol, Dostoiévski, Stravinski, Turgueniev, Tchaikovsky, Malevitch, Nabokov e Tarkóvski, entre outros. De quebra, traz fotos emocionantes sobre esse dream team. SP e Moscou esgrimem um eterno Fla-Flu, com a primeira ganhando de goleada no âmbito artístico. Mas não levando. Como resmungam os peterburguenses: onde começou a Revolução de 1917? Em SP. Qual virou capital em 1918? Moscou. SP carrega o ônus, Moscou o bônus. Em termos, pois qual metrópole pode se gabar de uma rua onde eram vizinhos três escritores do pedigree de Gogol, Turgueniev e Dostoievski? SP vence Moscou até no kitsch. Se a Praça Vermelha exibe a múmia de Lenin, o pênis do monge Rasputin se pavoneia num frasco deformol no Museu do Erotismo de SP, “ao lado de uma clínica para problemas na próstata”.

Mas quem rouba este livro como uma Robin Hood lírica – depenando os filisteus para dar aos leitores - é a poeta Anna Akhmatova, barbada para o pódio das mulheres mais fascinantes que jamais existiram (tietada por VIP como Boris Pasternak – que a pediu em casamento três vezes -, Isaiah Berlin, Modigliani, Joseph Brodsky, etc).

Visitantes olham uma das musas do pintor Amadeo Modigliani, de 1916, no Museu de Arte de Zurique  Foto: Arnd Wiegmann/REUTERS

Sob o comunismo, a maioria dos habitantes de Leningrado sabia na ponta da língua os versos de Réquiem, cuja edição completa seria publicada apenas no fim da URSS. Na vida de Akhmatova, desgraça pouca era bobagem. Nikolai Gumilev, o primeiro marido, foi fuzilado pela polícia política logo depois da revolução de 1917. O segundo morreu num campo de concentração, onde o filho dela vegetou por catorze anos e sucumbiu o maior amigo de Akhmatova , o grande Ossip Mandelstam. O melhor pupilo dela, o futuro Nobel Joseph Brodsky, definhou cinco anos na cadeia e foi deportado. Ela própria não passou sequer um dia no xilindró (nem Stalin tinha esse topete). Mas foi impedida de publicar e viveu em cortiços, porém com uma empáfia de duquesa e despedaçando corações como quem sopra dentes-de-leão.

Uma outra efígie do livro é espectral: Vladimir Nabokov, que passou a infância e juventude em SP, mas se mandou para Cambridge em 1920 e nunca mais voltou. Hoje há um museu em SP dedicado ao autor de Lolita, cujo muro em 2013 apareceu pichado com a palavra “pedófilo”. A melhor amiga da irmã de Nabokov em SP era uma pirralha chamada Alisa Rosenbaum, mais tarde escritora com o pseudônimo de Ayn Rand. Brokken conta um causo encantador sobre Alexander Soljenitsyn, o Nobel de literatura que expôs as atrocidades do Gulag. O editor de Soljenitsyn e Nabokov marcou um encontro entre ambos, a pedido do primeiro, no restaurante do Hotel Palace, em Montreux, onde este último morava com a mulher, Vera. Soljenitsyn, um ex-zek (o termo para os prisioneiros do Gulag), amarelou na hora H e deu o cano nos anfitriões, que o esperaram à mesa com cara de tacho.

O escritor russo Vladimir Nabokov, autor do polêmico 'Lolita' Foto: Yousuf Karsh

O livro termina com Liev Gumilev, filho de Nikolai e Anna Akhmatova. A relação era tensa: Liev odiava o poema “Réquiem", no qual a poeta descreve suas peregrinações diárias à penitenciária onde ele estava encarcerado: “Fui preso primeiro por causa do meu pai, e depois por causa da minha mãe”. Liev tão-pouco suportava que todo mundo se apaixonasse por Anna – ele só se casou aos 55 anos. Achava que a mãe poderia ter feito mais por ele, embora ela tenha chegado a ponto de escrever poemas em louvor de Stalin, para obter o perdão do filho.

Gumilev tornou-se um historiador proeminente, postulando que a cultura russa não é europeia, mas eurasiana, e reabilitando o legado mongol (a Universidade do Cazaquistão foi batizada com o nome dele). Por ironia do destino, essa ideia acabou apropriada por Putin, cujo avô fora cozinheiro de Lenin. Gumilev

morreu em 1992, com um aura de guru, e não viu a anexação da Crimeia em 2014 por Putin, o primeiro passo para uma “união euroasiática”. Putin bajulou o filho de Akhmatova em vários discursos. Gumilev reconciliou-se com a mãe apenas no funeral dela, em 1966. Antes de o caixão ser fechado, beijou-a demoradamente na testa, observado por um comovido Joseph Brodsky. Brokken inclui essa foto no livro.

Especialmente a partir do Modernismo, quase tudo da arte contemporânea germinou em berços urbanos carismáticos: Viena, Tóquio, Nova York, Londres, São Paulo. Já havia monografias magistrais descrevendo esses nichos e as respectivas ninhadas, como a de Edmund White sobre Paris, a de John Banville sobre Praga ou a de Ruy Castro sobre o Rio de Janeiro. Agora Jan Brokken mostra São Petersburgo como um sonho feliz de cidade: se não na política (o contexto é o totalitarismo soviético e o populismo de Putin), pelo menos enquanto cornucópia de obras-primas. Para mim, um dos lançamentos do ano.

Às margens do Báltico, São Petersburgo (SP) foi fundada em 1703 por Pedro, o Grande, como signo da modernização russa (o imperador proibiu o uso de barba). Continuou como capital até 1918, sucedida por Moscou. Em 1924 foi rebatizada como Leningrado, mas com o colapso da URSS em 1991 recuperou o nome original. Lar do Hermitage, um dos maiores museus do mundo, SP é e sempre foi a alma cultural da Rússia. Jan Brokken é um autor holandês de premiados romances, biografias e livros de viagens. “O Esplendor de São Petersburgo” conjuga apetitosamente esses gêneros.

Estação Finlândia, um dos marcos de São Petersburgo, na gelada Rússia  Foto: Ana Carolina Sacoman/Estadão

Brokken visitou a cidade em dois momentos: em 1975, sob o comunismo, e quarenta anos depois, sob Putin. A obra é uma genealogia subjetiva mas enciclopédica de figurinhas carimbadas da literatura, música, pintura e cinema, o excelso panteão de SP: Puchkin, Mandelstam, Gogol, Dostoiévski, Stravinski, Turgueniev, Tchaikovsky, Malevitch, Nabokov e Tarkóvski, entre outros. De quebra, traz fotos emocionantes sobre esse dream team. SP e Moscou esgrimem um eterno Fla-Flu, com a primeira ganhando de goleada no âmbito artístico. Mas não levando. Como resmungam os peterburguenses: onde começou a Revolução de 1917? Em SP. Qual virou capital em 1918? Moscou. SP carrega o ônus, Moscou o bônus. Em termos, pois qual metrópole pode se gabar de uma rua onde eram vizinhos três escritores do pedigree de Gogol, Turgueniev e Dostoievski? SP vence Moscou até no kitsch. Se a Praça Vermelha exibe a múmia de Lenin, o pênis do monge Rasputin se pavoneia num frasco deformol no Museu do Erotismo de SP, “ao lado de uma clínica para problemas na próstata”.

Mas quem rouba este livro como uma Robin Hood lírica – depenando os filisteus para dar aos leitores - é a poeta Anna Akhmatova, barbada para o pódio das mulheres mais fascinantes que jamais existiram (tietada por VIP como Boris Pasternak – que a pediu em casamento três vezes -, Isaiah Berlin, Modigliani, Joseph Brodsky, etc).

Visitantes olham uma das musas do pintor Amadeo Modigliani, de 1916, no Museu de Arte de Zurique  Foto: Arnd Wiegmann/REUTERS

Sob o comunismo, a maioria dos habitantes de Leningrado sabia na ponta da língua os versos de Réquiem, cuja edição completa seria publicada apenas no fim da URSS. Na vida de Akhmatova, desgraça pouca era bobagem. Nikolai Gumilev, o primeiro marido, foi fuzilado pela polícia política logo depois da revolução de 1917. O segundo morreu num campo de concentração, onde o filho dela vegetou por catorze anos e sucumbiu o maior amigo de Akhmatova , o grande Ossip Mandelstam. O melhor pupilo dela, o futuro Nobel Joseph Brodsky, definhou cinco anos na cadeia e foi deportado. Ela própria não passou sequer um dia no xilindró (nem Stalin tinha esse topete). Mas foi impedida de publicar e viveu em cortiços, porém com uma empáfia de duquesa e despedaçando corações como quem sopra dentes-de-leão.

Uma outra efígie do livro é espectral: Vladimir Nabokov, que passou a infância e juventude em SP, mas se mandou para Cambridge em 1920 e nunca mais voltou. Hoje há um museu em SP dedicado ao autor de Lolita, cujo muro em 2013 apareceu pichado com a palavra “pedófilo”. A melhor amiga da irmã de Nabokov em SP era uma pirralha chamada Alisa Rosenbaum, mais tarde escritora com o pseudônimo de Ayn Rand. Brokken conta um causo encantador sobre Alexander Soljenitsyn, o Nobel de literatura que expôs as atrocidades do Gulag. O editor de Soljenitsyn e Nabokov marcou um encontro entre ambos, a pedido do primeiro, no restaurante do Hotel Palace, em Montreux, onde este último morava com a mulher, Vera. Soljenitsyn, um ex-zek (o termo para os prisioneiros do Gulag), amarelou na hora H e deu o cano nos anfitriões, que o esperaram à mesa com cara de tacho.

O escritor russo Vladimir Nabokov, autor do polêmico 'Lolita' Foto: Yousuf Karsh

O livro termina com Liev Gumilev, filho de Nikolai e Anna Akhmatova. A relação era tensa: Liev odiava o poema “Réquiem", no qual a poeta descreve suas peregrinações diárias à penitenciária onde ele estava encarcerado: “Fui preso primeiro por causa do meu pai, e depois por causa da minha mãe”. Liev tão-pouco suportava que todo mundo se apaixonasse por Anna – ele só se casou aos 55 anos. Achava que a mãe poderia ter feito mais por ele, embora ela tenha chegado a ponto de escrever poemas em louvor de Stalin, para obter o perdão do filho.

Gumilev tornou-se um historiador proeminente, postulando que a cultura russa não é europeia, mas eurasiana, e reabilitando o legado mongol (a Universidade do Cazaquistão foi batizada com o nome dele). Por ironia do destino, essa ideia acabou apropriada por Putin, cujo avô fora cozinheiro de Lenin. Gumilev

morreu em 1992, com um aura de guru, e não viu a anexação da Crimeia em 2014 por Putin, o primeiro passo para uma “união euroasiática”. Putin bajulou o filho de Akhmatova em vários discursos. Gumilev reconciliou-se com a mãe apenas no funeral dela, em 1966. Antes de o caixão ser fechado, beijou-a demoradamente na testa, observado por um comovido Joseph Brodsky. Brokken inclui essa foto no livro.

Especialmente a partir do Modernismo, quase tudo da arte contemporânea germinou em berços urbanos carismáticos: Viena, Tóquio, Nova York, Londres, São Paulo. Já havia monografias magistrais descrevendo esses nichos e as respectivas ninhadas, como a de Edmund White sobre Paris, a de John Banville sobre Praga ou a de Ruy Castro sobre o Rio de Janeiro. Agora Jan Brokken mostra São Petersburgo como um sonho feliz de cidade: se não na política (o contexto é o totalitarismo soviético e o populismo de Putin), pelo menos enquanto cornucópia de obras-primas. Para mim, um dos lançamentos do ano.

Às margens do Báltico, São Petersburgo (SP) foi fundada em 1703 por Pedro, o Grande, como signo da modernização russa (o imperador proibiu o uso de barba). Continuou como capital até 1918, sucedida por Moscou. Em 1924 foi rebatizada como Leningrado, mas com o colapso da URSS em 1991 recuperou o nome original. Lar do Hermitage, um dos maiores museus do mundo, SP é e sempre foi a alma cultural da Rússia. Jan Brokken é um autor holandês de premiados romances, biografias e livros de viagens. “O Esplendor de São Petersburgo” conjuga apetitosamente esses gêneros.

Estação Finlândia, um dos marcos de São Petersburgo, na gelada Rússia  Foto: Ana Carolina Sacoman/Estadão

Brokken visitou a cidade em dois momentos: em 1975, sob o comunismo, e quarenta anos depois, sob Putin. A obra é uma genealogia subjetiva mas enciclopédica de figurinhas carimbadas da literatura, música, pintura e cinema, o excelso panteão de SP: Puchkin, Mandelstam, Gogol, Dostoiévski, Stravinski, Turgueniev, Tchaikovsky, Malevitch, Nabokov e Tarkóvski, entre outros. De quebra, traz fotos emocionantes sobre esse dream team. SP e Moscou esgrimem um eterno Fla-Flu, com a primeira ganhando de goleada no âmbito artístico. Mas não levando. Como resmungam os peterburguenses: onde começou a Revolução de 1917? Em SP. Qual virou capital em 1918? Moscou. SP carrega o ônus, Moscou o bônus. Em termos, pois qual metrópole pode se gabar de uma rua onde eram vizinhos três escritores do pedigree de Gogol, Turgueniev e Dostoievski? SP vence Moscou até no kitsch. Se a Praça Vermelha exibe a múmia de Lenin, o pênis do monge Rasputin se pavoneia num frasco deformol no Museu do Erotismo de SP, “ao lado de uma clínica para problemas na próstata”.

Mas quem rouba este livro como uma Robin Hood lírica – depenando os filisteus para dar aos leitores - é a poeta Anna Akhmatova, barbada para o pódio das mulheres mais fascinantes que jamais existiram (tietada por VIP como Boris Pasternak – que a pediu em casamento três vezes -, Isaiah Berlin, Modigliani, Joseph Brodsky, etc).

Visitantes olham uma das musas do pintor Amadeo Modigliani, de 1916, no Museu de Arte de Zurique  Foto: Arnd Wiegmann/REUTERS

Sob o comunismo, a maioria dos habitantes de Leningrado sabia na ponta da língua os versos de Réquiem, cuja edição completa seria publicada apenas no fim da URSS. Na vida de Akhmatova, desgraça pouca era bobagem. Nikolai Gumilev, o primeiro marido, foi fuzilado pela polícia política logo depois da revolução de 1917. O segundo morreu num campo de concentração, onde o filho dela vegetou por catorze anos e sucumbiu o maior amigo de Akhmatova , o grande Ossip Mandelstam. O melhor pupilo dela, o futuro Nobel Joseph Brodsky, definhou cinco anos na cadeia e foi deportado. Ela própria não passou sequer um dia no xilindró (nem Stalin tinha esse topete). Mas foi impedida de publicar e viveu em cortiços, porém com uma empáfia de duquesa e despedaçando corações como quem sopra dentes-de-leão.

Uma outra efígie do livro é espectral: Vladimir Nabokov, que passou a infância e juventude em SP, mas se mandou para Cambridge em 1920 e nunca mais voltou. Hoje há um museu em SP dedicado ao autor de Lolita, cujo muro em 2013 apareceu pichado com a palavra “pedófilo”. A melhor amiga da irmã de Nabokov em SP era uma pirralha chamada Alisa Rosenbaum, mais tarde escritora com o pseudônimo de Ayn Rand. Brokken conta um causo encantador sobre Alexander Soljenitsyn, o Nobel de literatura que expôs as atrocidades do Gulag. O editor de Soljenitsyn e Nabokov marcou um encontro entre ambos, a pedido do primeiro, no restaurante do Hotel Palace, em Montreux, onde este último morava com a mulher, Vera. Soljenitsyn, um ex-zek (o termo para os prisioneiros do Gulag), amarelou na hora H e deu o cano nos anfitriões, que o esperaram à mesa com cara de tacho.

O escritor russo Vladimir Nabokov, autor do polêmico 'Lolita' Foto: Yousuf Karsh

O livro termina com Liev Gumilev, filho de Nikolai e Anna Akhmatova. A relação era tensa: Liev odiava o poema “Réquiem", no qual a poeta descreve suas peregrinações diárias à penitenciária onde ele estava encarcerado: “Fui preso primeiro por causa do meu pai, e depois por causa da minha mãe”. Liev tão-pouco suportava que todo mundo se apaixonasse por Anna – ele só se casou aos 55 anos. Achava que a mãe poderia ter feito mais por ele, embora ela tenha chegado a ponto de escrever poemas em louvor de Stalin, para obter o perdão do filho.

Gumilev tornou-se um historiador proeminente, postulando que a cultura russa não é europeia, mas eurasiana, e reabilitando o legado mongol (a Universidade do Cazaquistão foi batizada com o nome dele). Por ironia do destino, essa ideia acabou apropriada por Putin, cujo avô fora cozinheiro de Lenin. Gumilev

morreu em 1992, com um aura de guru, e não viu a anexação da Crimeia em 2014 por Putin, o primeiro passo para uma “união euroasiática”. Putin bajulou o filho de Akhmatova em vários discursos. Gumilev reconciliou-se com a mãe apenas no funeral dela, em 1966. Antes de o caixão ser fechado, beijou-a demoradamente na testa, observado por um comovido Joseph Brodsky. Brokken inclui essa foto no livro.

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