Música clássica... E um pouco de tudo

Opinião|Arthur Moreira Lima controlava o tempo com furor romântico e delicadeza desconcertante


Pianista morreu nesta quarta-feira, 30, aos 83 anos; um dos principais nomes da música brasileira, artista começou sua carreira ainda criança

Por João Luiz Sampaio

Arthur Moreira Lima foi muitos pianistas em um só – e como tal criou um espaço próprio, alguns diriam solitário, na constelação do piano brasileiro desde que, nos anos 1960, sua carreira começou a ganhar forma, aqui e na Europa.

Desafiou os críticos tanto pela qualidade de suas interpretações quanto pelas escolhas que fez – de repertório, sim, por conta da relação com a música popular brasileira, mas também pelas escolhas de carreira que o afastaram do modelo tradicional de concertista para o qual parecia moldado.

Tudo começou aos 8 anos de idade, quando fez seu primeiro concerto com a Orquestra Sinfônica Brasileira no Rio de Janeiro, tocando Mozart, aluno de Lúcia Branco, professora também de Tom Jobim e Nelson Freire (era apenas quatro anos mais velho que o colega, que em 2025 completaria 80).

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Nos anos 1960, ele se mudou para a Europa e, em 1965, conquistou o segundo lugar na histórica sétima edição do Concurso Chopin de Varsóvia. É de se imaginar o júri diante da difícil decisão de escolher entre ele e aquela que acabou ficando com o primeiro prêmio, a argentina Martha Argerich.

Cinco anos mais tarde viria outra distinção importante, o terceiro lugar no Concurso Tchaikovski, em Moscou. Àquela altura, Moreira Lima já havia passado pelas mãos do professor Rudolf Kehrer. E atribuiria a ele, e à presença na União Soviética, a possibilidade de iniciar uma carreira de escopo internacional, com apresentações nas principais capitais europeias.

Em Varsóvia, durante as provas do concurso, um crítico polonês, citado na época pelo Estadão, exaltou a sua sensibilidade e a compreensão que tinha da obra de Chopin em “interpretações inolvidáveis”. A associação com a música do compositor marcou desde o início de sua carreira. Mas o que suas leituras mostravam servia também para definir seu pianismo como um todo, para além da técnica de exceção, que dava ao toque , a cada nota, enorme clareza.

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Arthur Moreira Lima em 2002; o pianista morreu nesta quarta, 30, aos 83 anos Foto: Beto Barata/Estadão

O furor romântico com que Moreira Lima se aproximava do repertório do século 19 não excluía momentos de delicadeza desconcertante ou a construção sempre original das frases musicais. Tudo convivia de maneira orgânica – até mesmo o silêncio, uma nota sustentada que é interrompida pelo instante mais breve antes que a melodia possa seguir. E havia sua escolha de andamentos. Sem pressa, sem demora, Moreira Lima criava – em Chopin, Brahms, Scriabin ou Villa-Lobos – um tempo que existia apenas em sua imaginação de artista.

Sua volta em definitivo ao Brasil, no final dos anos 1970, não o afastou do repertório romântico, mas marcou o início de uma nova relação com a música brasileira. Tinha uma visão particular sobre ela. Como disse em uma rara entrevista, não considerava a herança europeia como parte da cultura brasileira. Era um universo distinto, com relação ao qual não poderíamos reivindicar pertencimento. Ao mesmo tempo, porém, influenciou de tal forma nossos compositores que deu a eles enorme sofisticação de escrita no momento em que criavam obras que remetiam a algo próprio brasileiro.

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Era assim que enxergava, por exemplo, a música de Ernesto Nazareth, a que se dedicou desde os anos 1960, quando começou a tocá-la em recitais nas quais dividia espaço com Chopin. “Não tinha nada a ver, do ponto de vista estético, colocar duas pecinhas de Nazareth no meio de um programa pesado como aquele, mas do ponto de vista de importância fazia todo sentido: Nazareth entre os grandes. Acabou sendo um refrigério, algo que o público recebeu com emoção. Estávamos há dois anos na ditadura militar – desde 1964 – e a esquerda ficou assanhadíssima com esse gesto, que foi como um preito à nossa cultura. Uma demonstração de que subdesenvolvido também tem alma, sabe?”, afirmou em um raro depoimento ao Instituto Moreira Salles em 2022.

Não era uma escolha banal e Moreira Lima sabia disso. Se hoje o diálogo entre o erudito e o popular é um dado aceito da vida musical brasileira, naquele momento ainda torcia narizes. E o fato de que era defendida por um pianista talhado para as maiores salas de concerto do mundo acrescentava à discussão alguma perplexidade. Desde então, no imaginário em torno de Moreira Lima, o que ele fazia passou a conviver com aquilo que decidiu não fazer.

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O pianista nunca explicou seus motivos. Mas é certo que via diferentes referências musicais como parte de um mesmo diálogo. “O choro é, de certa forma, a alma da música brasileira. E esse envolvimento com a obra de Nazareth me introduziu nesse mundo mágico, imperceptível para quem está imerso na música clássica. Mas ele existe, é muito rico e me ajudou, inclusive, na minha interpretação de música clássica”, disse em 2022.

Algo parecido ele via na obra de Astor Piazzolla, a quem dedicou um disco em 1997. “Piazzolla trouxe ao tango, à milonga e a outros gêneros populares, um desenvolvimento cio ponto de vista formal, musical. É um tratamento que tem como característica o aproveitamento dos temas, com contrapontos, fugas, imitação, cânon, todos os elementos formais da música erudita. Piazzolla recolheu seus temas da música de rua, mas os desenvolveu à maneira da sonata e a singularidade de sua música está neste tratamento”, explicou o pianista em entrevista de dezembro de 1997 à Revista Concerto.

Arthur Moreira Lima foi um dos maiores pianistas brasileiros Foto: Beto Barata/Estadão
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No final dos anos 1990, suas gravações começaram a soar um pouco desiguais. As aparições no palco foram rareando, quase desaparecendo por completo. E quando, já nos anos 2000, ele retornou, foi em um contexto diferente. Moreira Lima comprou um caminhão, instalou nele um piano e começou a percorrer o Brasil, fazendo apresentações em praças públicas ou pequenos teatros. O documentário de 2018 de Marcelo Mazuras, que acompanha o projeto, Arthur Moreira Lima – Um Piano para Todos, fala em mais de 300 mil quilômetros rodados.

O caminhão foi do sul ao norte do País, subiu o Rio Amazonas, serpenteou o caminho ao longo do Rio São Francisco. Ao público, qualquer público, importava o belo. Havia no projeto o desejo assumido de democratização do piano, da música clássica, do que ele definia como o gesto do fazer musical. Mas também um pianista longe dos grandes centros e das expectativas que eles colocavam, percorrendo as estradas só com sua música e seu piano.

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De alguma forma, sempre foi assim.

Arthur Moreira Lima foi muitos pianistas em um só – e como tal criou um espaço próprio, alguns diriam solitário, na constelação do piano brasileiro desde que, nos anos 1960, sua carreira começou a ganhar forma, aqui e na Europa.

Desafiou os críticos tanto pela qualidade de suas interpretações quanto pelas escolhas que fez – de repertório, sim, por conta da relação com a música popular brasileira, mas também pelas escolhas de carreira que o afastaram do modelo tradicional de concertista para o qual parecia moldado.

Tudo começou aos 8 anos de idade, quando fez seu primeiro concerto com a Orquestra Sinfônica Brasileira no Rio de Janeiro, tocando Mozart, aluno de Lúcia Branco, professora também de Tom Jobim e Nelson Freire (era apenas quatro anos mais velho que o colega, que em 2025 completaria 80).

Nos anos 1960, ele se mudou para a Europa e, em 1965, conquistou o segundo lugar na histórica sétima edição do Concurso Chopin de Varsóvia. É de se imaginar o júri diante da difícil decisão de escolher entre ele e aquela que acabou ficando com o primeiro prêmio, a argentina Martha Argerich.

Cinco anos mais tarde viria outra distinção importante, o terceiro lugar no Concurso Tchaikovski, em Moscou. Àquela altura, Moreira Lima já havia passado pelas mãos do professor Rudolf Kehrer. E atribuiria a ele, e à presença na União Soviética, a possibilidade de iniciar uma carreira de escopo internacional, com apresentações nas principais capitais europeias.

Em Varsóvia, durante as provas do concurso, um crítico polonês, citado na época pelo Estadão, exaltou a sua sensibilidade e a compreensão que tinha da obra de Chopin em “interpretações inolvidáveis”. A associação com a música do compositor marcou desde o início de sua carreira. Mas o que suas leituras mostravam servia também para definir seu pianismo como um todo, para além da técnica de exceção, que dava ao toque , a cada nota, enorme clareza.

Arthur Moreira Lima em 2002; o pianista morreu nesta quarta, 30, aos 83 anos Foto: Beto Barata/Estadão

O furor romântico com que Moreira Lima se aproximava do repertório do século 19 não excluía momentos de delicadeza desconcertante ou a construção sempre original das frases musicais. Tudo convivia de maneira orgânica – até mesmo o silêncio, uma nota sustentada que é interrompida pelo instante mais breve antes que a melodia possa seguir. E havia sua escolha de andamentos. Sem pressa, sem demora, Moreira Lima criava – em Chopin, Brahms, Scriabin ou Villa-Lobos – um tempo que existia apenas em sua imaginação de artista.

Sua volta em definitivo ao Brasil, no final dos anos 1970, não o afastou do repertório romântico, mas marcou o início de uma nova relação com a música brasileira. Tinha uma visão particular sobre ela. Como disse em uma rara entrevista, não considerava a herança europeia como parte da cultura brasileira. Era um universo distinto, com relação ao qual não poderíamos reivindicar pertencimento. Ao mesmo tempo, porém, influenciou de tal forma nossos compositores que deu a eles enorme sofisticação de escrita no momento em que criavam obras que remetiam a algo próprio brasileiro.

Era assim que enxergava, por exemplo, a música de Ernesto Nazareth, a que se dedicou desde os anos 1960, quando começou a tocá-la em recitais nas quais dividia espaço com Chopin. “Não tinha nada a ver, do ponto de vista estético, colocar duas pecinhas de Nazareth no meio de um programa pesado como aquele, mas do ponto de vista de importância fazia todo sentido: Nazareth entre os grandes. Acabou sendo um refrigério, algo que o público recebeu com emoção. Estávamos há dois anos na ditadura militar – desde 1964 – e a esquerda ficou assanhadíssima com esse gesto, que foi como um preito à nossa cultura. Uma demonstração de que subdesenvolvido também tem alma, sabe?”, afirmou em um raro depoimento ao Instituto Moreira Salles em 2022.

Não era uma escolha banal e Moreira Lima sabia disso. Se hoje o diálogo entre o erudito e o popular é um dado aceito da vida musical brasileira, naquele momento ainda torcia narizes. E o fato de que era defendida por um pianista talhado para as maiores salas de concerto do mundo acrescentava à discussão alguma perplexidade. Desde então, no imaginário em torno de Moreira Lima, o que ele fazia passou a conviver com aquilo que decidiu não fazer.

O pianista nunca explicou seus motivos. Mas é certo que via diferentes referências musicais como parte de um mesmo diálogo. “O choro é, de certa forma, a alma da música brasileira. E esse envolvimento com a obra de Nazareth me introduziu nesse mundo mágico, imperceptível para quem está imerso na música clássica. Mas ele existe, é muito rico e me ajudou, inclusive, na minha interpretação de música clássica”, disse em 2022.

Algo parecido ele via na obra de Astor Piazzolla, a quem dedicou um disco em 1997. “Piazzolla trouxe ao tango, à milonga e a outros gêneros populares, um desenvolvimento cio ponto de vista formal, musical. É um tratamento que tem como característica o aproveitamento dos temas, com contrapontos, fugas, imitação, cânon, todos os elementos formais da música erudita. Piazzolla recolheu seus temas da música de rua, mas os desenvolveu à maneira da sonata e a singularidade de sua música está neste tratamento”, explicou o pianista em entrevista de dezembro de 1997 à Revista Concerto.

Arthur Moreira Lima foi um dos maiores pianistas brasileiros Foto: Beto Barata/Estadão

No final dos anos 1990, suas gravações começaram a soar um pouco desiguais. As aparições no palco foram rareando, quase desaparecendo por completo. E quando, já nos anos 2000, ele retornou, foi em um contexto diferente. Moreira Lima comprou um caminhão, instalou nele um piano e começou a percorrer o Brasil, fazendo apresentações em praças públicas ou pequenos teatros. O documentário de 2018 de Marcelo Mazuras, que acompanha o projeto, Arthur Moreira Lima – Um Piano para Todos, fala em mais de 300 mil quilômetros rodados.

O caminhão foi do sul ao norte do País, subiu o Rio Amazonas, serpenteou o caminho ao longo do Rio São Francisco. Ao público, qualquer público, importava o belo. Havia no projeto o desejo assumido de democratização do piano, da música clássica, do que ele definia como o gesto do fazer musical. Mas também um pianista longe dos grandes centros e das expectativas que eles colocavam, percorrendo as estradas só com sua música e seu piano.

De alguma forma, sempre foi assim.

Arthur Moreira Lima foi muitos pianistas em um só – e como tal criou um espaço próprio, alguns diriam solitário, na constelação do piano brasileiro desde que, nos anos 1960, sua carreira começou a ganhar forma, aqui e na Europa.

Desafiou os críticos tanto pela qualidade de suas interpretações quanto pelas escolhas que fez – de repertório, sim, por conta da relação com a música popular brasileira, mas também pelas escolhas de carreira que o afastaram do modelo tradicional de concertista para o qual parecia moldado.

Tudo começou aos 8 anos de idade, quando fez seu primeiro concerto com a Orquestra Sinfônica Brasileira no Rio de Janeiro, tocando Mozart, aluno de Lúcia Branco, professora também de Tom Jobim e Nelson Freire (era apenas quatro anos mais velho que o colega, que em 2025 completaria 80).

Nos anos 1960, ele se mudou para a Europa e, em 1965, conquistou o segundo lugar na histórica sétima edição do Concurso Chopin de Varsóvia. É de se imaginar o júri diante da difícil decisão de escolher entre ele e aquela que acabou ficando com o primeiro prêmio, a argentina Martha Argerich.

Cinco anos mais tarde viria outra distinção importante, o terceiro lugar no Concurso Tchaikovski, em Moscou. Àquela altura, Moreira Lima já havia passado pelas mãos do professor Rudolf Kehrer. E atribuiria a ele, e à presença na União Soviética, a possibilidade de iniciar uma carreira de escopo internacional, com apresentações nas principais capitais europeias.

Em Varsóvia, durante as provas do concurso, um crítico polonês, citado na época pelo Estadão, exaltou a sua sensibilidade e a compreensão que tinha da obra de Chopin em “interpretações inolvidáveis”. A associação com a música do compositor marcou desde o início de sua carreira. Mas o que suas leituras mostravam servia também para definir seu pianismo como um todo, para além da técnica de exceção, que dava ao toque , a cada nota, enorme clareza.

Arthur Moreira Lima em 2002; o pianista morreu nesta quarta, 30, aos 83 anos Foto: Beto Barata/Estadão

O furor romântico com que Moreira Lima se aproximava do repertório do século 19 não excluía momentos de delicadeza desconcertante ou a construção sempre original das frases musicais. Tudo convivia de maneira orgânica – até mesmo o silêncio, uma nota sustentada que é interrompida pelo instante mais breve antes que a melodia possa seguir. E havia sua escolha de andamentos. Sem pressa, sem demora, Moreira Lima criava – em Chopin, Brahms, Scriabin ou Villa-Lobos – um tempo que existia apenas em sua imaginação de artista.

Sua volta em definitivo ao Brasil, no final dos anos 1970, não o afastou do repertório romântico, mas marcou o início de uma nova relação com a música brasileira. Tinha uma visão particular sobre ela. Como disse em uma rara entrevista, não considerava a herança europeia como parte da cultura brasileira. Era um universo distinto, com relação ao qual não poderíamos reivindicar pertencimento. Ao mesmo tempo, porém, influenciou de tal forma nossos compositores que deu a eles enorme sofisticação de escrita no momento em que criavam obras que remetiam a algo próprio brasileiro.

Era assim que enxergava, por exemplo, a música de Ernesto Nazareth, a que se dedicou desde os anos 1960, quando começou a tocá-la em recitais nas quais dividia espaço com Chopin. “Não tinha nada a ver, do ponto de vista estético, colocar duas pecinhas de Nazareth no meio de um programa pesado como aquele, mas do ponto de vista de importância fazia todo sentido: Nazareth entre os grandes. Acabou sendo um refrigério, algo que o público recebeu com emoção. Estávamos há dois anos na ditadura militar – desde 1964 – e a esquerda ficou assanhadíssima com esse gesto, que foi como um preito à nossa cultura. Uma demonstração de que subdesenvolvido também tem alma, sabe?”, afirmou em um raro depoimento ao Instituto Moreira Salles em 2022.

Não era uma escolha banal e Moreira Lima sabia disso. Se hoje o diálogo entre o erudito e o popular é um dado aceito da vida musical brasileira, naquele momento ainda torcia narizes. E o fato de que era defendida por um pianista talhado para as maiores salas de concerto do mundo acrescentava à discussão alguma perplexidade. Desde então, no imaginário em torno de Moreira Lima, o que ele fazia passou a conviver com aquilo que decidiu não fazer.

O pianista nunca explicou seus motivos. Mas é certo que via diferentes referências musicais como parte de um mesmo diálogo. “O choro é, de certa forma, a alma da música brasileira. E esse envolvimento com a obra de Nazareth me introduziu nesse mundo mágico, imperceptível para quem está imerso na música clássica. Mas ele existe, é muito rico e me ajudou, inclusive, na minha interpretação de música clássica”, disse em 2022.

Algo parecido ele via na obra de Astor Piazzolla, a quem dedicou um disco em 1997. “Piazzolla trouxe ao tango, à milonga e a outros gêneros populares, um desenvolvimento cio ponto de vista formal, musical. É um tratamento que tem como característica o aproveitamento dos temas, com contrapontos, fugas, imitação, cânon, todos os elementos formais da música erudita. Piazzolla recolheu seus temas da música de rua, mas os desenvolveu à maneira da sonata e a singularidade de sua música está neste tratamento”, explicou o pianista em entrevista de dezembro de 1997 à Revista Concerto.

Arthur Moreira Lima foi um dos maiores pianistas brasileiros Foto: Beto Barata/Estadão

No final dos anos 1990, suas gravações começaram a soar um pouco desiguais. As aparições no palco foram rareando, quase desaparecendo por completo. E quando, já nos anos 2000, ele retornou, foi em um contexto diferente. Moreira Lima comprou um caminhão, instalou nele um piano e começou a percorrer o Brasil, fazendo apresentações em praças públicas ou pequenos teatros. O documentário de 2018 de Marcelo Mazuras, que acompanha o projeto, Arthur Moreira Lima – Um Piano para Todos, fala em mais de 300 mil quilômetros rodados.

O caminhão foi do sul ao norte do País, subiu o Rio Amazonas, serpenteou o caminho ao longo do Rio São Francisco. Ao público, qualquer público, importava o belo. Havia no projeto o desejo assumido de democratização do piano, da música clássica, do que ele definia como o gesto do fazer musical. Mas também um pianista longe dos grandes centros e das expectativas que eles colocavam, percorrendo as estradas só com sua música e seu piano.

De alguma forma, sempre foi assim.

Arthur Moreira Lima foi muitos pianistas em um só – e como tal criou um espaço próprio, alguns diriam solitário, na constelação do piano brasileiro desde que, nos anos 1960, sua carreira começou a ganhar forma, aqui e na Europa.

Desafiou os críticos tanto pela qualidade de suas interpretações quanto pelas escolhas que fez – de repertório, sim, por conta da relação com a música popular brasileira, mas também pelas escolhas de carreira que o afastaram do modelo tradicional de concertista para o qual parecia moldado.

Tudo começou aos 8 anos de idade, quando fez seu primeiro concerto com a Orquestra Sinfônica Brasileira no Rio de Janeiro, tocando Mozart, aluno de Lúcia Branco, professora também de Tom Jobim e Nelson Freire (era apenas quatro anos mais velho que o colega, que em 2025 completaria 80).

Nos anos 1960, ele se mudou para a Europa e, em 1965, conquistou o segundo lugar na histórica sétima edição do Concurso Chopin de Varsóvia. É de se imaginar o júri diante da difícil decisão de escolher entre ele e aquela que acabou ficando com o primeiro prêmio, a argentina Martha Argerich.

Cinco anos mais tarde viria outra distinção importante, o terceiro lugar no Concurso Tchaikovski, em Moscou. Àquela altura, Moreira Lima já havia passado pelas mãos do professor Rudolf Kehrer. E atribuiria a ele, e à presença na União Soviética, a possibilidade de iniciar uma carreira de escopo internacional, com apresentações nas principais capitais europeias.

Em Varsóvia, durante as provas do concurso, um crítico polonês, citado na época pelo Estadão, exaltou a sua sensibilidade e a compreensão que tinha da obra de Chopin em “interpretações inolvidáveis”. A associação com a música do compositor marcou desde o início de sua carreira. Mas o que suas leituras mostravam servia também para definir seu pianismo como um todo, para além da técnica de exceção, que dava ao toque , a cada nota, enorme clareza.

Arthur Moreira Lima em 2002; o pianista morreu nesta quarta, 30, aos 83 anos Foto: Beto Barata/Estadão

O furor romântico com que Moreira Lima se aproximava do repertório do século 19 não excluía momentos de delicadeza desconcertante ou a construção sempre original das frases musicais. Tudo convivia de maneira orgânica – até mesmo o silêncio, uma nota sustentada que é interrompida pelo instante mais breve antes que a melodia possa seguir. E havia sua escolha de andamentos. Sem pressa, sem demora, Moreira Lima criava – em Chopin, Brahms, Scriabin ou Villa-Lobos – um tempo que existia apenas em sua imaginação de artista.

Sua volta em definitivo ao Brasil, no final dos anos 1970, não o afastou do repertório romântico, mas marcou o início de uma nova relação com a música brasileira. Tinha uma visão particular sobre ela. Como disse em uma rara entrevista, não considerava a herança europeia como parte da cultura brasileira. Era um universo distinto, com relação ao qual não poderíamos reivindicar pertencimento. Ao mesmo tempo, porém, influenciou de tal forma nossos compositores que deu a eles enorme sofisticação de escrita no momento em que criavam obras que remetiam a algo próprio brasileiro.

Era assim que enxergava, por exemplo, a música de Ernesto Nazareth, a que se dedicou desde os anos 1960, quando começou a tocá-la em recitais nas quais dividia espaço com Chopin. “Não tinha nada a ver, do ponto de vista estético, colocar duas pecinhas de Nazareth no meio de um programa pesado como aquele, mas do ponto de vista de importância fazia todo sentido: Nazareth entre os grandes. Acabou sendo um refrigério, algo que o público recebeu com emoção. Estávamos há dois anos na ditadura militar – desde 1964 – e a esquerda ficou assanhadíssima com esse gesto, que foi como um preito à nossa cultura. Uma demonstração de que subdesenvolvido também tem alma, sabe?”, afirmou em um raro depoimento ao Instituto Moreira Salles em 2022.

Não era uma escolha banal e Moreira Lima sabia disso. Se hoje o diálogo entre o erudito e o popular é um dado aceito da vida musical brasileira, naquele momento ainda torcia narizes. E o fato de que era defendida por um pianista talhado para as maiores salas de concerto do mundo acrescentava à discussão alguma perplexidade. Desde então, no imaginário em torno de Moreira Lima, o que ele fazia passou a conviver com aquilo que decidiu não fazer.

O pianista nunca explicou seus motivos. Mas é certo que via diferentes referências musicais como parte de um mesmo diálogo. “O choro é, de certa forma, a alma da música brasileira. E esse envolvimento com a obra de Nazareth me introduziu nesse mundo mágico, imperceptível para quem está imerso na música clássica. Mas ele existe, é muito rico e me ajudou, inclusive, na minha interpretação de música clássica”, disse em 2022.

Algo parecido ele via na obra de Astor Piazzolla, a quem dedicou um disco em 1997. “Piazzolla trouxe ao tango, à milonga e a outros gêneros populares, um desenvolvimento cio ponto de vista formal, musical. É um tratamento que tem como característica o aproveitamento dos temas, com contrapontos, fugas, imitação, cânon, todos os elementos formais da música erudita. Piazzolla recolheu seus temas da música de rua, mas os desenvolveu à maneira da sonata e a singularidade de sua música está neste tratamento”, explicou o pianista em entrevista de dezembro de 1997 à Revista Concerto.

Arthur Moreira Lima foi um dos maiores pianistas brasileiros Foto: Beto Barata/Estadão

No final dos anos 1990, suas gravações começaram a soar um pouco desiguais. As aparições no palco foram rareando, quase desaparecendo por completo. E quando, já nos anos 2000, ele retornou, foi em um contexto diferente. Moreira Lima comprou um caminhão, instalou nele um piano e começou a percorrer o Brasil, fazendo apresentações em praças públicas ou pequenos teatros. O documentário de 2018 de Marcelo Mazuras, que acompanha o projeto, Arthur Moreira Lima – Um Piano para Todos, fala em mais de 300 mil quilômetros rodados.

O caminhão foi do sul ao norte do País, subiu o Rio Amazonas, serpenteou o caminho ao longo do Rio São Francisco. Ao público, qualquer público, importava o belo. Havia no projeto o desejo assumido de democratização do piano, da música clássica, do que ele definia como o gesto do fazer musical. Mas também um pianista longe dos grandes centros e das expectativas que eles colocavam, percorrendo as estradas só com sua música e seu piano.

De alguma forma, sempre foi assim.

Opinião por João Luiz Sampaio

É editor do Estadão, crítico musical e autor de 'Ópera à Brasileira', 'Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção' e 'Guiomar Novas do Brasil', entre outros livros

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