OURO PRETO - Um vulto cruza outro na ladeira. Pelos desertos metafísicos / Arrastam-se as sandálias da pobreza. E, mais adiante, continua o poeta: Das varandas azuis tombam ossadas / Ouro Preto severa e íntima adormece / Num abafado rumor de águas subterrâneas.
A beleza dos versos de Murilo Mendes revela o esfacelamento da memória. Um passado que parecia gritar contra o seu tempo presente. E que também grita contra o nosso, em um fim de domingo iluminado por um sol com pressa de se esconder.
Um pai brinca com o filho em uma mureta à frente da Igreja São Francisco de Assis, um casal desiste de uma compra grande na feirinha já quase deserta, duas mulheres esperam em silêncio pelo ônibus, portas do comércio se fecham, um riso alto, mais melancólico que assustador, o bêbado largado à contemplação de uma paisagem que só ele conhece.
Mas há ali também um grupo de dez, caminhando pelas ruas, de um lado a outro. Todos jovens pianistas, conhecendo a arquitetura, brincando com os sons. Eles falam de tudo. Da paisagem, tiram fotos. Conversam sobre música. Sobre comida. História. Sobre cerveja. Lei Rouanet. E até o mais desinteressante dos assuntos, a crítica musical.
Mayara Confortini. Victor Canto. Bruno de Lorenzo. Luiz Rosa. Francisco Petracco. Bianca Gonçalves. Emilly Cunha. Ingrid Uemura. Isabella de Carvalho. Mataus Naamã. Eles têm de 17 a 26 anos, são de São Paulo, Natal, Niterói, Belo Horizonte, Porto Alegre. Não estão ali por acaso. Participam, desde o dia 14 de abril, do II Festival de Piano na Escola Saramenha Artes e Ofícios, orientados pelo pianista Cristian Budu. E, naquele domingo, a aula, se é o que o nome dá conta da experiência, foi em campo.
Budu dispensa, a essa altura, grandes apresentações. Dez anos atrás, venceu um dos mais importantes concursos, o Clara Haskill, na Suíça. Parece que foi ontem, mas em uma década houve tempo para muita coisa. Para uma carreira cada vez mais intensa, fora e dentro do Brasil; períodos vividos por aqui e na Europa; viagens de ida e volta por todo o país; recitais, master classes, encontros musicais.
Mas Budu não é o retrato que o mundo musical aprendeu a observar, do solista vivendo em isolamento. E isso, por opção. Música, ele diz, é diálogo. Em uma conversa no ano passado, sobre o festival, ele explicava que construir uma carreira não significa ignorar o mundo à sua volta. Ou refletir sobre o papel da arte. E o problema maior é quando a pressão por produzir leva muito cedo ao desencanto.
O festival nasceu com todas essas questões em mente, na Saramenha Artes e Ofícios, de Paulo Rogério Ayres Lage. O espaço foi criado nos anos 1980 para resgatar a fabricação da mais antiga cerâmica vidrada brasileira, a Cerâmica Saramenha - e, com isso, um pouco da própria história da região. Em um amplo terreno a alguns quilômetros de Ouro Preto, espalham-se ateliês. E também um pequeno palco, ao ar livre.
Foi lá que um recital abriu oficialmente a programação do festival. Budu e o violoncelista Antonio Meneses. Os dois têm construído uma trajetória de proximidade. Na semana anterior, haviam gravado um disco dedicado à música francesa, que deve ser lançado ainda este ano pelo selo Azul Music. Dele, veio o repertório do recital de sábado. Fauré, Debussy, Franck, Ravel. Que são dois grandes músicos, já não é necessário dizer. Que alcancem, no diálogo dos instrumentos, a sabedoria da conversa aberta e franca, é o antigo milagre da música de câmara do qual é preciso sempre falar.
Depois do recital e do jantar, noite de sarau. E o domingo amanhece bem cedo, com Mozart, em masterclass da qual participava Ingrid Uemura. As mãos vêm, vão, silêncio, recomeço. Budu e outros alunos ouvem atentos. Ele pede a ela que erre. "Quero te ouvir errando pelo excesso", ele explica. "Se você não se permite isso, você se limita." Não muito depois, outro comentário. "Está ótimo, mas calculado. Eu sei, é difícil sentir a respiração. Mas a pausa também é música." Dá tempo para mais uma. "Se você trabalha o mesmo impulso para todas as vozes... Tem que ser um impulso para cada voz."
Não são apenas indicações musicais, elas reivindicam algo mais do pianista. E na noite de domingo, isso fica ainda mais claro em uma roda de conversa, decidida naquele momento - nada no festival é imposto, tudo é combinado. Muitas conversas cabem na roda. Diversidade, preconceito, financiamento à cultura. Todos falam, todos escutam. Qual o sentido de uma instituição artística? Para que ela serve? Como ela pode ser pensada à luz da realidade do país? E o músico, como lida com essas possibilidades?
Não há respostas simples, mas é um alento ouvir os questionamentos sendo feitos - assim como constatar a falta de disposição com relação a ideias e conceitos fáceis. Há uma complexidade a ser enfrentada. Há mundos a serem refeitos. E cada voz carrega seu impulso para colaborar com o todo. Uma concordância assim, feita de olhares e experiências distintas é um microcosmos a não ser ignorado. Budu acredita que, apesar do festival estar ainda na segunda edição, o músico que o procura já sabe que lá terá a chance de ouvir e ser ouvido. E de ter dúvidas.
Deixando a cidade, volta à mente a Ouro Preto de Murilo Mendes. Mais especificamente, o rumor de suas águas subterrâneas. Nos versos, seriam elas a lembrança de uma força que independe de passado, presente ou futuro, e segue como sinal de vida? É fácil demais estabelecer uma relação entre as águas e a arte. Mas faço mesmo assim: a culpa é dos dez jovens pianistas.