Joca Reiners Terron mescla ficção e autobiografia em novo romance


'Noite Dentro da Noite' parte de fato real da infância do escritor para criar trama complexa relacionada a eventos históricos do século 20

Por André Cáceres
Terron cria trama envolvente e intrigante em 'Noite Dentro da Noite' Foto: Hélvio Romero/Estadão

A despeito do que o subtítulo sugere, Noite Dentro da Noite – Uma Autobiografia, de Joca Reiners Terron, não narra a trajetória do autor cuiabano de 49 anos. Mesmo assim, é uma autobiografia – apenas uma de muitas possíveis. Inspirado em um evento real de sua infância – o escritor bateu a cabeça, o que provocou disritmia cerebral e problemas de memória –, o livro é uma versão alternativa e romanceada da vida de Reiners, protagonizado por um sujeito sem nome e nem falas a quem a narrativa sempre se refere por “você”. 

O narrador principal – ou pelo menos sugerido – é Curt Meyer-Clason, um dos personagens históricos presentes na obra (como a poeta Hilda Hilst e Filinto Muller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas). Preso durante a 2.ª Guerra Mundial, acusado de ser responsável por embarcações civis brasileiras soçobradas pelos nazistas, tornou-se um dos principais tradutores literários de seu país, vertendo obras como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para o idioma alemão.

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Assim como Curt Meyer-Clason, ao fazer a língua de Camões roçar a de Goethe, abdicou de adaptar muitas das peripécias linguísticas de Guimarães Rosa em sua tradução, Reiners absteve-se das experimentações literárias que marcaram seus livros anteriores em prol de uma linguagem mais direta, embora não menos poética, tecendo um enigma complexo que vai sendo desvelado aos poucos. Na cronologia desordenada do livro, os mistérios sobre a origem do protagonista e a história da família Reiners se entrelaçam com eventos do século 20 e locais como o Pantanal, pano de fundo da surpreendente trama; Medianeira (PR), onde ele bateu a cabeça; Nueva Germania, vilarejo antissemita fundado por Bernhard Förster no final do século 19; o Centro de Eutanásia de Bernburg, um dos primeiros campos de extermínio nazistas; e o presídio da Ilha Grande, onde Meyer-Clason cumpriu pena. Tudo é costurado de forma magistral por Reiners.

Lembrando a visão nada pueril da infância presente em contos da escritora francesa Nathalie Sarraute, os anos da aurora da vida do protagonista são relatados com ênfase no aspecto perverso da juventude, reforçando o bullying sofrido. A crueldade infantil permeia a obra, revelada, por exemplo, na descrição de uma brincadeira de esconde-esconde: "Os alunos pareciam cordeiros brincando de esconder no pasto enquanto o pegador escolhia quem esquartejar." Esse trecho, aliás, é replicado em um campo de concentração nazista, aproximando duas realidades distintas.

A opção pouco usual pelo uso de “você” por vezes faz o leitor sentir-se um intrometido ao ler os diálogos sinuosos entre narrador e autor/personagem. “Essa história é sobre você, mas vai contá-la como se fosse outro.” É tênue a linha entre realidade, autoficção e metaficção à medida que referências verdadeiras ou falsas sobre a vida de Reiners são inseridas no texto e dizem respeito à escrita do livro em si.

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Cunhado por Serge Doubrowski em 1977, o termo autoficção pode ser aplicado a Noite Dentro da Noite, bem como a grande parte da literatura contemporânea. O gênero, que dá sinais de saturação, foi explorado por autores como Mario Vargas Llosa (Tia Júlia e o Escrevinhador, 1977), Philip Roth (Operação Shylock, 1994) e João Gilberto Noll (Berkeley em Bellagio, 2002). Há quem diga até que O Jogador (1867) é uma autoficção de Fiodor Dostoievski. Se a ficção sempre costurou mentiras para tecer uma verdade, a chamada “escrita do eu” destila verdades em busca de uma mentira maior. É compreensível que o estilo esteja desgastado, uma vez que, nos últimos anos, a internet democratizou a capacidade de romancear a própria vida e de criar um personagem de si.

A histeria da autoficção, ao borrar as fronteiras da individualidade, resvala em um ponto central de Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966), de Ingmar Bergman: a identidade. No filme, Elisabet, uma atriz saudável, porém incapaz de atuar e falar, é tratada pela enfermeira Alma. As duas figuras vão se fundindo no retiro de uma casa de praia, de modo que Alma parece se revelar a manifestação da autoconsciência da paciente, até que elas tornam-se indistinguíveis. No final, a ainda muda Elisabet ouve a própria história narrada por Alma na segunda pessoa, como o personagem de Reiners. Essa identidade fraturada é a grande questão do livro, repetindo-se em todos os personagens, inclusive Meyer-Clason, que realmente teve duas vidas em uma: espião nazista e literato.

O filósofo alemão Ludwig Wittgenstein (1889-1951) afirma em seu diário Movimentos de Pensamento que uma pessoa pode perder a capacidade de reconhecimento alheio sem se considerar inferior por isso. Ele não fala, no entanto, se a incapacidade de se reconhecer, como ocorre com o protagonista de Noite Dentro da Noite, traria algum prejuízo. A resposta quem oferece é o narrador do romance, que se refere à ideia de si como uma ficção: “Não conhecemos nosso próprio rosto, pois não temos outra maneira de vê-lo a não ser em reproduções, reflexos e fotos.”

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Embora Noite Dentro da Noite se enquadre em um gênero problemático, o livro demonstra originalidade e pujança, renova a autoficção e envolve o leitor do começo ao fim. 

*André Cáceres é jornalista, escritor e autor de 'Cela 108' (Ed. Multifoco, 2015)

Capa do livro 'Noite Dentro da Noite', de Joca Reiners Terron Foto: Companhia das Letras
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Noite Dentro da Noite Autor: Joca Reiners TerronEditora: Companhia das Letras 464 páginas R$ 64,90

Terron cria trama envolvente e intrigante em 'Noite Dentro da Noite' Foto: Hélvio Romero/Estadão

A despeito do que o subtítulo sugere, Noite Dentro da Noite – Uma Autobiografia, de Joca Reiners Terron, não narra a trajetória do autor cuiabano de 49 anos. Mesmo assim, é uma autobiografia – apenas uma de muitas possíveis. Inspirado em um evento real de sua infância – o escritor bateu a cabeça, o que provocou disritmia cerebral e problemas de memória –, o livro é uma versão alternativa e romanceada da vida de Reiners, protagonizado por um sujeito sem nome e nem falas a quem a narrativa sempre se refere por “você”. 

O narrador principal – ou pelo menos sugerido – é Curt Meyer-Clason, um dos personagens históricos presentes na obra (como a poeta Hilda Hilst e Filinto Muller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas). Preso durante a 2.ª Guerra Mundial, acusado de ser responsável por embarcações civis brasileiras soçobradas pelos nazistas, tornou-se um dos principais tradutores literários de seu país, vertendo obras como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para o idioma alemão.

Assim como Curt Meyer-Clason, ao fazer a língua de Camões roçar a de Goethe, abdicou de adaptar muitas das peripécias linguísticas de Guimarães Rosa em sua tradução, Reiners absteve-se das experimentações literárias que marcaram seus livros anteriores em prol de uma linguagem mais direta, embora não menos poética, tecendo um enigma complexo que vai sendo desvelado aos poucos. Na cronologia desordenada do livro, os mistérios sobre a origem do protagonista e a história da família Reiners se entrelaçam com eventos do século 20 e locais como o Pantanal, pano de fundo da surpreendente trama; Medianeira (PR), onde ele bateu a cabeça; Nueva Germania, vilarejo antissemita fundado por Bernhard Förster no final do século 19; o Centro de Eutanásia de Bernburg, um dos primeiros campos de extermínio nazistas; e o presídio da Ilha Grande, onde Meyer-Clason cumpriu pena. Tudo é costurado de forma magistral por Reiners.

Lembrando a visão nada pueril da infância presente em contos da escritora francesa Nathalie Sarraute, os anos da aurora da vida do protagonista são relatados com ênfase no aspecto perverso da juventude, reforçando o bullying sofrido. A crueldade infantil permeia a obra, revelada, por exemplo, na descrição de uma brincadeira de esconde-esconde: "Os alunos pareciam cordeiros brincando de esconder no pasto enquanto o pegador escolhia quem esquartejar." Esse trecho, aliás, é replicado em um campo de concentração nazista, aproximando duas realidades distintas.

A opção pouco usual pelo uso de “você” por vezes faz o leitor sentir-se um intrometido ao ler os diálogos sinuosos entre narrador e autor/personagem. “Essa história é sobre você, mas vai contá-la como se fosse outro.” É tênue a linha entre realidade, autoficção e metaficção à medida que referências verdadeiras ou falsas sobre a vida de Reiners são inseridas no texto e dizem respeito à escrita do livro em si.

Cunhado por Serge Doubrowski em 1977, o termo autoficção pode ser aplicado a Noite Dentro da Noite, bem como a grande parte da literatura contemporânea. O gênero, que dá sinais de saturação, foi explorado por autores como Mario Vargas Llosa (Tia Júlia e o Escrevinhador, 1977), Philip Roth (Operação Shylock, 1994) e João Gilberto Noll (Berkeley em Bellagio, 2002). Há quem diga até que O Jogador (1867) é uma autoficção de Fiodor Dostoievski. Se a ficção sempre costurou mentiras para tecer uma verdade, a chamada “escrita do eu” destila verdades em busca de uma mentira maior. É compreensível que o estilo esteja desgastado, uma vez que, nos últimos anos, a internet democratizou a capacidade de romancear a própria vida e de criar um personagem de si.

A histeria da autoficção, ao borrar as fronteiras da individualidade, resvala em um ponto central de Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966), de Ingmar Bergman: a identidade. No filme, Elisabet, uma atriz saudável, porém incapaz de atuar e falar, é tratada pela enfermeira Alma. As duas figuras vão se fundindo no retiro de uma casa de praia, de modo que Alma parece se revelar a manifestação da autoconsciência da paciente, até que elas tornam-se indistinguíveis. No final, a ainda muda Elisabet ouve a própria história narrada por Alma na segunda pessoa, como o personagem de Reiners. Essa identidade fraturada é a grande questão do livro, repetindo-se em todos os personagens, inclusive Meyer-Clason, que realmente teve duas vidas em uma: espião nazista e literato.

O filósofo alemão Ludwig Wittgenstein (1889-1951) afirma em seu diário Movimentos de Pensamento que uma pessoa pode perder a capacidade de reconhecimento alheio sem se considerar inferior por isso. Ele não fala, no entanto, se a incapacidade de se reconhecer, como ocorre com o protagonista de Noite Dentro da Noite, traria algum prejuízo. A resposta quem oferece é o narrador do romance, que se refere à ideia de si como uma ficção: “Não conhecemos nosso próprio rosto, pois não temos outra maneira de vê-lo a não ser em reproduções, reflexos e fotos.”

Embora Noite Dentro da Noite se enquadre em um gênero problemático, o livro demonstra originalidade e pujança, renova a autoficção e envolve o leitor do começo ao fim. 

*André Cáceres é jornalista, escritor e autor de 'Cela 108' (Ed. Multifoco, 2015)

Capa do livro 'Noite Dentro da Noite', de Joca Reiners Terron Foto: Companhia das Letras

Noite Dentro da Noite Autor: Joca Reiners TerronEditora: Companhia das Letras 464 páginas R$ 64,90

Terron cria trama envolvente e intrigante em 'Noite Dentro da Noite' Foto: Hélvio Romero/Estadão

A despeito do que o subtítulo sugere, Noite Dentro da Noite – Uma Autobiografia, de Joca Reiners Terron, não narra a trajetória do autor cuiabano de 49 anos. Mesmo assim, é uma autobiografia – apenas uma de muitas possíveis. Inspirado em um evento real de sua infância – o escritor bateu a cabeça, o que provocou disritmia cerebral e problemas de memória –, o livro é uma versão alternativa e romanceada da vida de Reiners, protagonizado por um sujeito sem nome e nem falas a quem a narrativa sempre se refere por “você”. 

O narrador principal – ou pelo menos sugerido – é Curt Meyer-Clason, um dos personagens históricos presentes na obra (como a poeta Hilda Hilst e Filinto Muller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas). Preso durante a 2.ª Guerra Mundial, acusado de ser responsável por embarcações civis brasileiras soçobradas pelos nazistas, tornou-se um dos principais tradutores literários de seu país, vertendo obras como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para o idioma alemão.

Assim como Curt Meyer-Clason, ao fazer a língua de Camões roçar a de Goethe, abdicou de adaptar muitas das peripécias linguísticas de Guimarães Rosa em sua tradução, Reiners absteve-se das experimentações literárias que marcaram seus livros anteriores em prol de uma linguagem mais direta, embora não menos poética, tecendo um enigma complexo que vai sendo desvelado aos poucos. Na cronologia desordenada do livro, os mistérios sobre a origem do protagonista e a história da família Reiners se entrelaçam com eventos do século 20 e locais como o Pantanal, pano de fundo da surpreendente trama; Medianeira (PR), onde ele bateu a cabeça; Nueva Germania, vilarejo antissemita fundado por Bernhard Förster no final do século 19; o Centro de Eutanásia de Bernburg, um dos primeiros campos de extermínio nazistas; e o presídio da Ilha Grande, onde Meyer-Clason cumpriu pena. Tudo é costurado de forma magistral por Reiners.

Lembrando a visão nada pueril da infância presente em contos da escritora francesa Nathalie Sarraute, os anos da aurora da vida do protagonista são relatados com ênfase no aspecto perverso da juventude, reforçando o bullying sofrido. A crueldade infantil permeia a obra, revelada, por exemplo, na descrição de uma brincadeira de esconde-esconde: "Os alunos pareciam cordeiros brincando de esconder no pasto enquanto o pegador escolhia quem esquartejar." Esse trecho, aliás, é replicado em um campo de concentração nazista, aproximando duas realidades distintas.

A opção pouco usual pelo uso de “você” por vezes faz o leitor sentir-se um intrometido ao ler os diálogos sinuosos entre narrador e autor/personagem. “Essa história é sobre você, mas vai contá-la como se fosse outro.” É tênue a linha entre realidade, autoficção e metaficção à medida que referências verdadeiras ou falsas sobre a vida de Reiners são inseridas no texto e dizem respeito à escrita do livro em si.

Cunhado por Serge Doubrowski em 1977, o termo autoficção pode ser aplicado a Noite Dentro da Noite, bem como a grande parte da literatura contemporânea. O gênero, que dá sinais de saturação, foi explorado por autores como Mario Vargas Llosa (Tia Júlia e o Escrevinhador, 1977), Philip Roth (Operação Shylock, 1994) e João Gilberto Noll (Berkeley em Bellagio, 2002). Há quem diga até que O Jogador (1867) é uma autoficção de Fiodor Dostoievski. Se a ficção sempre costurou mentiras para tecer uma verdade, a chamada “escrita do eu” destila verdades em busca de uma mentira maior. É compreensível que o estilo esteja desgastado, uma vez que, nos últimos anos, a internet democratizou a capacidade de romancear a própria vida e de criar um personagem de si.

A histeria da autoficção, ao borrar as fronteiras da individualidade, resvala em um ponto central de Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966), de Ingmar Bergman: a identidade. No filme, Elisabet, uma atriz saudável, porém incapaz de atuar e falar, é tratada pela enfermeira Alma. As duas figuras vão se fundindo no retiro de uma casa de praia, de modo que Alma parece se revelar a manifestação da autoconsciência da paciente, até que elas tornam-se indistinguíveis. No final, a ainda muda Elisabet ouve a própria história narrada por Alma na segunda pessoa, como o personagem de Reiners. Essa identidade fraturada é a grande questão do livro, repetindo-se em todos os personagens, inclusive Meyer-Clason, que realmente teve duas vidas em uma: espião nazista e literato.

O filósofo alemão Ludwig Wittgenstein (1889-1951) afirma em seu diário Movimentos de Pensamento que uma pessoa pode perder a capacidade de reconhecimento alheio sem se considerar inferior por isso. Ele não fala, no entanto, se a incapacidade de se reconhecer, como ocorre com o protagonista de Noite Dentro da Noite, traria algum prejuízo. A resposta quem oferece é o narrador do romance, que se refere à ideia de si como uma ficção: “Não conhecemos nosso próprio rosto, pois não temos outra maneira de vê-lo a não ser em reproduções, reflexos e fotos.”

Embora Noite Dentro da Noite se enquadre em um gênero problemático, o livro demonstra originalidade e pujança, renova a autoficção e envolve o leitor do começo ao fim. 

*André Cáceres é jornalista, escritor e autor de 'Cela 108' (Ed. Multifoco, 2015)

Capa do livro 'Noite Dentro da Noite', de Joca Reiners Terron Foto: Companhia das Letras

Noite Dentro da Noite Autor: Joca Reiners TerronEditora: Companhia das Letras 464 páginas R$ 64,90

Terron cria trama envolvente e intrigante em 'Noite Dentro da Noite' Foto: Hélvio Romero/Estadão

A despeito do que o subtítulo sugere, Noite Dentro da Noite – Uma Autobiografia, de Joca Reiners Terron, não narra a trajetória do autor cuiabano de 49 anos. Mesmo assim, é uma autobiografia – apenas uma de muitas possíveis. Inspirado em um evento real de sua infância – o escritor bateu a cabeça, o que provocou disritmia cerebral e problemas de memória –, o livro é uma versão alternativa e romanceada da vida de Reiners, protagonizado por um sujeito sem nome e nem falas a quem a narrativa sempre se refere por “você”. 

O narrador principal – ou pelo menos sugerido – é Curt Meyer-Clason, um dos personagens históricos presentes na obra (como a poeta Hilda Hilst e Filinto Muller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas). Preso durante a 2.ª Guerra Mundial, acusado de ser responsável por embarcações civis brasileiras soçobradas pelos nazistas, tornou-se um dos principais tradutores literários de seu país, vertendo obras como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para o idioma alemão.

Assim como Curt Meyer-Clason, ao fazer a língua de Camões roçar a de Goethe, abdicou de adaptar muitas das peripécias linguísticas de Guimarães Rosa em sua tradução, Reiners absteve-se das experimentações literárias que marcaram seus livros anteriores em prol de uma linguagem mais direta, embora não menos poética, tecendo um enigma complexo que vai sendo desvelado aos poucos. Na cronologia desordenada do livro, os mistérios sobre a origem do protagonista e a história da família Reiners se entrelaçam com eventos do século 20 e locais como o Pantanal, pano de fundo da surpreendente trama; Medianeira (PR), onde ele bateu a cabeça; Nueva Germania, vilarejo antissemita fundado por Bernhard Förster no final do século 19; o Centro de Eutanásia de Bernburg, um dos primeiros campos de extermínio nazistas; e o presídio da Ilha Grande, onde Meyer-Clason cumpriu pena. Tudo é costurado de forma magistral por Reiners.

Lembrando a visão nada pueril da infância presente em contos da escritora francesa Nathalie Sarraute, os anos da aurora da vida do protagonista são relatados com ênfase no aspecto perverso da juventude, reforçando o bullying sofrido. A crueldade infantil permeia a obra, revelada, por exemplo, na descrição de uma brincadeira de esconde-esconde: "Os alunos pareciam cordeiros brincando de esconder no pasto enquanto o pegador escolhia quem esquartejar." Esse trecho, aliás, é replicado em um campo de concentração nazista, aproximando duas realidades distintas.

A opção pouco usual pelo uso de “você” por vezes faz o leitor sentir-se um intrometido ao ler os diálogos sinuosos entre narrador e autor/personagem. “Essa história é sobre você, mas vai contá-la como se fosse outro.” É tênue a linha entre realidade, autoficção e metaficção à medida que referências verdadeiras ou falsas sobre a vida de Reiners são inseridas no texto e dizem respeito à escrita do livro em si.

Cunhado por Serge Doubrowski em 1977, o termo autoficção pode ser aplicado a Noite Dentro da Noite, bem como a grande parte da literatura contemporânea. O gênero, que dá sinais de saturação, foi explorado por autores como Mario Vargas Llosa (Tia Júlia e o Escrevinhador, 1977), Philip Roth (Operação Shylock, 1994) e João Gilberto Noll (Berkeley em Bellagio, 2002). Há quem diga até que O Jogador (1867) é uma autoficção de Fiodor Dostoievski. Se a ficção sempre costurou mentiras para tecer uma verdade, a chamada “escrita do eu” destila verdades em busca de uma mentira maior. É compreensível que o estilo esteja desgastado, uma vez que, nos últimos anos, a internet democratizou a capacidade de romancear a própria vida e de criar um personagem de si.

A histeria da autoficção, ao borrar as fronteiras da individualidade, resvala em um ponto central de Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966), de Ingmar Bergman: a identidade. No filme, Elisabet, uma atriz saudável, porém incapaz de atuar e falar, é tratada pela enfermeira Alma. As duas figuras vão se fundindo no retiro de uma casa de praia, de modo que Alma parece se revelar a manifestação da autoconsciência da paciente, até que elas tornam-se indistinguíveis. No final, a ainda muda Elisabet ouve a própria história narrada por Alma na segunda pessoa, como o personagem de Reiners. Essa identidade fraturada é a grande questão do livro, repetindo-se em todos os personagens, inclusive Meyer-Clason, que realmente teve duas vidas em uma: espião nazista e literato.

O filósofo alemão Ludwig Wittgenstein (1889-1951) afirma em seu diário Movimentos de Pensamento que uma pessoa pode perder a capacidade de reconhecimento alheio sem se considerar inferior por isso. Ele não fala, no entanto, se a incapacidade de se reconhecer, como ocorre com o protagonista de Noite Dentro da Noite, traria algum prejuízo. A resposta quem oferece é o narrador do romance, que se refere à ideia de si como uma ficção: “Não conhecemos nosso próprio rosto, pois não temos outra maneira de vê-lo a não ser em reproduções, reflexos e fotos.”

Embora Noite Dentro da Noite se enquadre em um gênero problemático, o livro demonstra originalidade e pujança, renova a autoficção e envolve o leitor do começo ao fim. 

*André Cáceres é jornalista, escritor e autor de 'Cela 108' (Ed. Multifoco, 2015)

Capa do livro 'Noite Dentro da Noite', de Joca Reiners Terron Foto: Companhia das Letras

Noite Dentro da Noite Autor: Joca Reiners TerronEditora: Companhia das Letras 464 páginas R$ 64,90

Terron cria trama envolvente e intrigante em 'Noite Dentro da Noite' Foto: Hélvio Romero/Estadão

A despeito do que o subtítulo sugere, Noite Dentro da Noite – Uma Autobiografia, de Joca Reiners Terron, não narra a trajetória do autor cuiabano de 49 anos. Mesmo assim, é uma autobiografia – apenas uma de muitas possíveis. Inspirado em um evento real de sua infância – o escritor bateu a cabeça, o que provocou disritmia cerebral e problemas de memória –, o livro é uma versão alternativa e romanceada da vida de Reiners, protagonizado por um sujeito sem nome e nem falas a quem a narrativa sempre se refere por “você”. 

O narrador principal – ou pelo menos sugerido – é Curt Meyer-Clason, um dos personagens históricos presentes na obra (como a poeta Hilda Hilst e Filinto Muller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas). Preso durante a 2.ª Guerra Mundial, acusado de ser responsável por embarcações civis brasileiras soçobradas pelos nazistas, tornou-se um dos principais tradutores literários de seu país, vertendo obras como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para o idioma alemão.

Assim como Curt Meyer-Clason, ao fazer a língua de Camões roçar a de Goethe, abdicou de adaptar muitas das peripécias linguísticas de Guimarães Rosa em sua tradução, Reiners absteve-se das experimentações literárias que marcaram seus livros anteriores em prol de uma linguagem mais direta, embora não menos poética, tecendo um enigma complexo que vai sendo desvelado aos poucos. Na cronologia desordenada do livro, os mistérios sobre a origem do protagonista e a história da família Reiners se entrelaçam com eventos do século 20 e locais como o Pantanal, pano de fundo da surpreendente trama; Medianeira (PR), onde ele bateu a cabeça; Nueva Germania, vilarejo antissemita fundado por Bernhard Förster no final do século 19; o Centro de Eutanásia de Bernburg, um dos primeiros campos de extermínio nazistas; e o presídio da Ilha Grande, onde Meyer-Clason cumpriu pena. Tudo é costurado de forma magistral por Reiners.

Lembrando a visão nada pueril da infância presente em contos da escritora francesa Nathalie Sarraute, os anos da aurora da vida do protagonista são relatados com ênfase no aspecto perverso da juventude, reforçando o bullying sofrido. A crueldade infantil permeia a obra, revelada, por exemplo, na descrição de uma brincadeira de esconde-esconde: "Os alunos pareciam cordeiros brincando de esconder no pasto enquanto o pegador escolhia quem esquartejar." Esse trecho, aliás, é replicado em um campo de concentração nazista, aproximando duas realidades distintas.

A opção pouco usual pelo uso de “você” por vezes faz o leitor sentir-se um intrometido ao ler os diálogos sinuosos entre narrador e autor/personagem. “Essa história é sobre você, mas vai contá-la como se fosse outro.” É tênue a linha entre realidade, autoficção e metaficção à medida que referências verdadeiras ou falsas sobre a vida de Reiners são inseridas no texto e dizem respeito à escrita do livro em si.

Cunhado por Serge Doubrowski em 1977, o termo autoficção pode ser aplicado a Noite Dentro da Noite, bem como a grande parte da literatura contemporânea. O gênero, que dá sinais de saturação, foi explorado por autores como Mario Vargas Llosa (Tia Júlia e o Escrevinhador, 1977), Philip Roth (Operação Shylock, 1994) e João Gilberto Noll (Berkeley em Bellagio, 2002). Há quem diga até que O Jogador (1867) é uma autoficção de Fiodor Dostoievski. Se a ficção sempre costurou mentiras para tecer uma verdade, a chamada “escrita do eu” destila verdades em busca de uma mentira maior. É compreensível que o estilo esteja desgastado, uma vez que, nos últimos anos, a internet democratizou a capacidade de romancear a própria vida e de criar um personagem de si.

A histeria da autoficção, ao borrar as fronteiras da individualidade, resvala em um ponto central de Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966), de Ingmar Bergman: a identidade. No filme, Elisabet, uma atriz saudável, porém incapaz de atuar e falar, é tratada pela enfermeira Alma. As duas figuras vão se fundindo no retiro de uma casa de praia, de modo que Alma parece se revelar a manifestação da autoconsciência da paciente, até que elas tornam-se indistinguíveis. No final, a ainda muda Elisabet ouve a própria história narrada por Alma na segunda pessoa, como o personagem de Reiners. Essa identidade fraturada é a grande questão do livro, repetindo-se em todos os personagens, inclusive Meyer-Clason, que realmente teve duas vidas em uma: espião nazista e literato.

O filósofo alemão Ludwig Wittgenstein (1889-1951) afirma em seu diário Movimentos de Pensamento que uma pessoa pode perder a capacidade de reconhecimento alheio sem se considerar inferior por isso. Ele não fala, no entanto, se a incapacidade de se reconhecer, como ocorre com o protagonista de Noite Dentro da Noite, traria algum prejuízo. A resposta quem oferece é o narrador do romance, que se refere à ideia de si como uma ficção: “Não conhecemos nosso próprio rosto, pois não temos outra maneira de vê-lo a não ser em reproduções, reflexos e fotos.”

Embora Noite Dentro da Noite se enquadre em um gênero problemático, o livro demonstra originalidade e pujança, renova a autoficção e envolve o leitor do começo ao fim. 

*André Cáceres é jornalista, escritor e autor de 'Cela 108' (Ed. Multifoco, 2015)

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