Certo dia, John le Carré, o romancista mestre da espionagem, estava passeando pelo Hampstead Heath, em Londres, com seu filho, o escritor Nick Cornwell.
Le Carré, cujo nome verdadeiro é David John Moore Cornwell, sofria de câncer, mas de um tipo que você “morre com e não de”, segundo as memórias de seu filho. Nick Cornwell (que escreve sob o pseudônimo de Nick Harkaway) não se lembra exatamente do ano, embora tenha sido em algum momento do “verão metafórico” da vida de seu pai. Mas ele se recorda com clareza cristalina da promessa que fez: ele terminaria qualquer obra incompleta que le Carré deixasse para trás depois de morrer.
Essa promessa veio à mente de Harkaway em dezembro, quando Le Carré morreu, aos 89 anos, após uma queda dentro de casa em Cornwall, no sudoeste da Inglaterra. Ele sabia que de fato existia uma obra inédita de seu pai, chamada Silverview. O filho procurou e concluiu que a obra estava mais “retida” que “incompleta”, disse ele no posfácio a Silverview.
Uma obra descoberta postumamente é uma das maiores intrigas do mundo da arte, pois levanta muitas questões, especulações, suspeitas e esperanças. Será esta a verdadeira expressão da alma do criador? E se for terrível?
Felizmente, o que le Carré nos deixou é um livro totalmente agradável, mais acessível e menos complexo do que suas obras centrais. Não é o tipo de romance, como O espião que sabia demais ou A vingança de Smiley, que exige que você pare no meio da frase, volte cinquenta páginas e retome a leitura a partir daí. Mas Silverview ainda consegue se construir em cima de grandes temas.
Ao longo das décadas, Le Carré se tornou – lidando habilmente com traição, falsidade, inanidade burocrática e nossa disposição de aceitar explicações em preto e branco num mundo cinza – um dos autores mais vendidos do mundo. Talvez, seu filho se pergunta, le Carré tenha evitado publicar Silverview em vida porque era um “corte muito profundo”, retratava o aparelho de inteligência britânico como uma instituição insegura quanto à sua própria capacidade de se justificar e de compensar seus custos.
É uma bela coincidência que Silverview chegue no mesmo mês que o mais recente filme de James Bond, Sem tempo para morrer. Nos filmes de Bond, o público tem uma representação caricata da espionagem, com triunfos que saltam aos olhos. Os livros de le Carré, em contraste, são muito ricos – para além dos enredos intrincados e perfeitamente elaborados e da escrita veloz – porque seus espiões, quando enredados ou pelo menos nas margens de grandes momentos das questões mundiais, estão atendendo um chamado mais ambíguo, com resultados que às vezes não são claros nem para eles mesmos. Muitas vezes, são vítimas da política burocrática – a um passo em falso de serem descartados. Eles tendem a ser personagens traídos, solitários, desajustados – nada bondianos. São desconfiados uns dos outros quase tanto quanto dos inimigos da Coroa.
Em Silverview, le Carré desvenda a vida de Edward Avon, um astuto ex-agente de inteligência emocionalmente marcado por experiências angustiantes durante o conflito na Bósnia. Na primeira vez em que vemos Avon, ele está debaixo de chuva, vestindo sobretudo e chapéu Homburg de aba larga, numa cidade litorânea de East Anglia, onde está se passando por um acadêmico aposentado. Avon vive com sua esposa, uma reverenciada analista de Oriente Médio para os serviços de inteligência britânicos que está morrendo de câncer, na velha mansão Silverview, batizada em homenagem à casa do filósofo Friedrich Nietzsche, Silberblick.
Avon faz amizade com Julian Lawndsley, um homem de 33 anos que largou sua lucrativa carreira no mercado financeiro na cidade grande para abrir uma pequena livraria. Avon é um tipo estranho, mas irresistível, e não leva tempo para entrar no mundo do ingênuo Lawndsley, se dizendo colega de escola do falecido pai do livreiro, um padre anglicano difamado.
Em determinado ponto, Avon manipula o jovem Lawndsley para entregar uma mensagem secreta a uma mulher com quem Avon afirma estar tendo um caso. “O que um homem bem vestido veste num encontro às cegas com a amante do amigo de seu pai no Everyman Cinema, em Belsize Park?”, ele se pergunta.
Avon está sendo seguido por Stewart Proctor, chefe da segurança interna do serviço de inteligência britânico fictício do livro. Proctor é um homem para quem “a própria ideia de uma paixão” seria desconcertante, o que deixa Avon, sempre propenso a apego emocional a pessoas e causas, ainda mais esquivo.
As pessoas e lugares que Proctor encontra em suas investigações sobre a Avon são relíquias, presas em pântanos burocráticos com pouca ou nenhuma relevância concreta. Ele corre para examinar uma rachadura num silo nuclear chamado “Hawk Sanctuary”, que imagina que em breve será uma armadilha para turistas.
“É uma trinca de nada, de acordo com a matriz”, o homem diz a Proctor. “Ontem à noite, foi um lapso. O que é pior? Uma trinca de nada ou lapso?”
No fim, Proctor chega à casa de dois espiões aposentados – Joan e Philip – que já foram o “casal de ouro” do serviço.
As observações mesquinhas e francamente ofensivas de Proctor sobre eles parecem uma metáfora para sua visão cada vez mais preconceituosa do declínio do serviço. Ele faz comentários depreciativos sobre a aparência de Joan e, com certo esnobismo, nota suas “calças de cintura elástica e... camiseta com estampa da Velha Viena”.
Quando Proctor se prepara para sair, Philip o puxa de lado. “A verdade, meu velho – aqui entre nós, não conte aos estagiários, senão você vai perder a aposentadoria – é que nós não fizemos muito para alterar o curso da história humana, não é mesmo?”, diz Philip. “De um velho espião para outro, acho que seria mais útil treinar um time de garotos”.
Numa época em que as falhas e os erros dos serviços de inteligência em todo o mundo podem chocar e alarmar, ler os comentários de Philip parece um toque de clarim que corta fundo e machuca. John le Carré não deixou ao mundo apenas um romance envolvente: ele também nos deixou um alerta. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU