Jorge Ialanji Filholini mostra uma prosa experimental em seu novo livro


Autor de ‘Somente nos Cinemas’, ‘Muqueta’ será publicado pelo novo selo EditoRia

Por Redação
Atualização:

O escritor Jorge Ialanji Filholini estreou em 2016 com os contos de Somos Mais Limpos pela Manhã (Demônio Negro), tendo alcançado a reta final do Prêmio Jabuti daquele ano. Uma série de questões sociais são exploradas pelas suas personagens, algo que se lê em Muqueta, novo livro a ser lançado neste semestre.

A solidão e a ruminação são elementos incorporados em sua prosa. Em primeira pessoa, Filholini apresenta um protagonista que trava um diálogo com o mistério. E, é de se esperar, a linearidade da mente do homem passa por uma série de distorções no esquema habitual de uma narrativa. É por vezes delirante, como quando o autor ambienta uma cena relacionada à morte. Leia um trecho a seguir.

O escritor Jorge Ialanji Filholini, autor de 'Muqueta' Foto: Ciete Silvério
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A vida ensina a esquecer.

Sonhei que comprava meu próprio caixão. Não estava triste, sorria para o vendedor que me acompanhava e me apresentava os modelos, quis me contar sobre os serviços, fiquei curioso sobre todo o procedimento para um corpo ser enterrado e pedi que prosseguisse,

Ele era jovem, vestia calça jeans e o uniforme da funerária em costura de camisa larga, deixava a barra dentro da calça, na altura do último botão, usava um cinto preto com fivelas de ferro em forma de W, a inicial da empresa, e me assegurou que eu não ficasse preocupado depois de minha morte, cuidavam de toda a preparação para o funeral e auxiliariam a família com a documentação necessária. Possuíam uma grande estrutura de traslado rodoviário e aéreo em todo território nacional e internacional, se eu morresse em Palimbão, lá me buscariam, caso optasse por cremação, havia diversas urnas lindas e elegantes. Não queria ser confundido com um vaso, mas gostei das porcelanas sugeridas pelo rapaz.

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O mais motivador era que, se eu morresse dormindo, babado, com remelas, enrugado, a funerária teria uma clínica própria com padrões de cuidado, preparação e respeito ao corpo. Nas andanças pelo mostruário de caixões, fiquei apaixonado por um de acrílico, seria injusto eu não acompanhar meu próprio funeral, me fechar em um lugar escuro sem que eu conseguisse ver o choro dos amigos, os abraços dos familiares, o padre Inácio, espero que seja ele rezando minha última missa, e escutar os depoimentos dos netos, queria ver quem choraria por mim, pela primeira vez seria o centro das atenções. Se meu irmão pudesse voltar da guerra vivo.

Obra de Milton Avery 'Beach Blankets', de 1960  Foto: Wichita Art Museum

A funerária tinha uma estrutura magnífica de acolher os familiares e concentrar o caixão no meio da sala. Ao redor, as cadeiras, poucas, para pegarem todo o ângulo do corpo e, assim, eu conseguiria enxergar o público presente. Ali, estavam Paulinho amparando Clarissa, Arnaldo acendendo as luzes de fundo e Pedro com a calça rasgada, padre Inácio havia acabado de chegar, batina branca e elegante, cabelo penteado para trás e bigode bem cortado. Eu estava satisfeito com meu velório, quando, inesperadamente, fui surpreendido por fumaça dentro do caixão, ficou tudo enturvado, me senti nervoso, assombrado, mesmo na morte um sonâmbulo, trevoso, não via rótula de luz, nada, nem luneta ou fresta natural, o vapor se alastrava dentro do caixote transparente. Todos haviam desaparecido ou faziam silêncio, o caixão esfumaçado impedia de saber da situação do lado de fora, o medo me fez chacoalhar, arranhar a tampa, socar as laterais, estava fatigado, desesperado, mordi a ponta da língua para acordar.

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Onde Cissa deixou minha pílula? Quero ir para a sala, beber como se eu não existisse, aprendi com Paulinho, em sua festa surpresa, que tomar álcool higienizava os músculos, mamãe catou a gente roubando cachaça no armário do barzinho do papai, apanhei tanto, Paulinho fugiu pela porta da garagem, havíamos secado três garrafas. Mamãe me colocou de cabeça para baixo na pia e molhou minha nuca, a ressaca e o castigo foram eternos.

Não sei mais qual é o cheiro de meu cérebro, não entro mais dentro de mim, tenho medo do aroma. Se já me perco aqui fora com todos os sentidos me confundindo, capaz de eu nunca mais voltar de meu interior.

Ainda sei rezar, consigo me ajoelhar, juntar as mãos e olhar para o alto. Peço ao Paizinho do Céu que cubra seu minha cabeça com seu manto sagrado, me faça lembrar de amanhã, peço um tantinho de milagre, não quero ficar sozinho, esquecido, ou até mesmo esquecer, isso dói, e não é uma dor exposta, vem e volta, nunca sara, Senhor, me ajude a desviar dessas ciladas contra o próprio ser humano, a Sua sabedoria clama por uma solução, odiareis o conhecimento? O pensamento? As lembranças dos homens? Eu Te chamo, sobreviverei a Vosso aperto e angústia, tudo de ruim é abominável ao Senhor, eu sei, o mau tem a boca pervertida, alma subalterna, mente pagã, coração enfermo, Senhor, em meio a esses vastos caminhos, Seu juízo dará a andança certa, não é soberba, eu juro, é a piedade de me fazer recordar. Não consigo mais saber o que faço aqui ajoelhado. Eu estava brincando no quarto, sim, no cantinho do beliche em que dormiam nossos.

O escritor Jorge Ialanji Filholini estreou em 2016 com os contos de Somos Mais Limpos pela Manhã (Demônio Negro), tendo alcançado a reta final do Prêmio Jabuti daquele ano. Uma série de questões sociais são exploradas pelas suas personagens, algo que se lê em Muqueta, novo livro a ser lançado neste semestre.

A solidão e a ruminação são elementos incorporados em sua prosa. Em primeira pessoa, Filholini apresenta um protagonista que trava um diálogo com o mistério. E, é de se esperar, a linearidade da mente do homem passa por uma série de distorções no esquema habitual de uma narrativa. É por vezes delirante, como quando o autor ambienta uma cena relacionada à morte. Leia um trecho a seguir.

O escritor Jorge Ialanji Filholini, autor de 'Muqueta' Foto: Ciete Silvério

A vida ensina a esquecer.

Sonhei que comprava meu próprio caixão. Não estava triste, sorria para o vendedor que me acompanhava e me apresentava os modelos, quis me contar sobre os serviços, fiquei curioso sobre todo o procedimento para um corpo ser enterrado e pedi que prosseguisse,

Ele era jovem, vestia calça jeans e o uniforme da funerária em costura de camisa larga, deixava a barra dentro da calça, na altura do último botão, usava um cinto preto com fivelas de ferro em forma de W, a inicial da empresa, e me assegurou que eu não ficasse preocupado depois de minha morte, cuidavam de toda a preparação para o funeral e auxiliariam a família com a documentação necessária. Possuíam uma grande estrutura de traslado rodoviário e aéreo em todo território nacional e internacional, se eu morresse em Palimbão, lá me buscariam, caso optasse por cremação, havia diversas urnas lindas e elegantes. Não queria ser confundido com um vaso, mas gostei das porcelanas sugeridas pelo rapaz.

O mais motivador era que, se eu morresse dormindo, babado, com remelas, enrugado, a funerária teria uma clínica própria com padrões de cuidado, preparação e respeito ao corpo. Nas andanças pelo mostruário de caixões, fiquei apaixonado por um de acrílico, seria injusto eu não acompanhar meu próprio funeral, me fechar em um lugar escuro sem que eu conseguisse ver o choro dos amigos, os abraços dos familiares, o padre Inácio, espero que seja ele rezando minha última missa, e escutar os depoimentos dos netos, queria ver quem choraria por mim, pela primeira vez seria o centro das atenções. Se meu irmão pudesse voltar da guerra vivo.

Obra de Milton Avery 'Beach Blankets', de 1960  Foto: Wichita Art Museum

A funerária tinha uma estrutura magnífica de acolher os familiares e concentrar o caixão no meio da sala. Ao redor, as cadeiras, poucas, para pegarem todo o ângulo do corpo e, assim, eu conseguiria enxergar o público presente. Ali, estavam Paulinho amparando Clarissa, Arnaldo acendendo as luzes de fundo e Pedro com a calça rasgada, padre Inácio havia acabado de chegar, batina branca e elegante, cabelo penteado para trás e bigode bem cortado. Eu estava satisfeito com meu velório, quando, inesperadamente, fui surpreendido por fumaça dentro do caixão, ficou tudo enturvado, me senti nervoso, assombrado, mesmo na morte um sonâmbulo, trevoso, não via rótula de luz, nada, nem luneta ou fresta natural, o vapor se alastrava dentro do caixote transparente. Todos haviam desaparecido ou faziam silêncio, o caixão esfumaçado impedia de saber da situação do lado de fora, o medo me fez chacoalhar, arranhar a tampa, socar as laterais, estava fatigado, desesperado, mordi a ponta da língua para acordar.

Onde Cissa deixou minha pílula? Quero ir para a sala, beber como se eu não existisse, aprendi com Paulinho, em sua festa surpresa, que tomar álcool higienizava os músculos, mamãe catou a gente roubando cachaça no armário do barzinho do papai, apanhei tanto, Paulinho fugiu pela porta da garagem, havíamos secado três garrafas. Mamãe me colocou de cabeça para baixo na pia e molhou minha nuca, a ressaca e o castigo foram eternos.

Não sei mais qual é o cheiro de meu cérebro, não entro mais dentro de mim, tenho medo do aroma. Se já me perco aqui fora com todos os sentidos me confundindo, capaz de eu nunca mais voltar de meu interior.

Ainda sei rezar, consigo me ajoelhar, juntar as mãos e olhar para o alto. Peço ao Paizinho do Céu que cubra seu minha cabeça com seu manto sagrado, me faça lembrar de amanhã, peço um tantinho de milagre, não quero ficar sozinho, esquecido, ou até mesmo esquecer, isso dói, e não é uma dor exposta, vem e volta, nunca sara, Senhor, me ajude a desviar dessas ciladas contra o próprio ser humano, a Sua sabedoria clama por uma solução, odiareis o conhecimento? O pensamento? As lembranças dos homens? Eu Te chamo, sobreviverei a Vosso aperto e angústia, tudo de ruim é abominável ao Senhor, eu sei, o mau tem a boca pervertida, alma subalterna, mente pagã, coração enfermo, Senhor, em meio a esses vastos caminhos, Seu juízo dará a andança certa, não é soberba, eu juro, é a piedade de me fazer recordar. Não consigo mais saber o que faço aqui ajoelhado. Eu estava brincando no quarto, sim, no cantinho do beliche em que dormiam nossos.

O escritor Jorge Ialanji Filholini estreou em 2016 com os contos de Somos Mais Limpos pela Manhã (Demônio Negro), tendo alcançado a reta final do Prêmio Jabuti daquele ano. Uma série de questões sociais são exploradas pelas suas personagens, algo que se lê em Muqueta, novo livro a ser lançado neste semestre.

A solidão e a ruminação são elementos incorporados em sua prosa. Em primeira pessoa, Filholini apresenta um protagonista que trava um diálogo com o mistério. E, é de se esperar, a linearidade da mente do homem passa por uma série de distorções no esquema habitual de uma narrativa. É por vezes delirante, como quando o autor ambienta uma cena relacionada à morte. Leia um trecho a seguir.

O escritor Jorge Ialanji Filholini, autor de 'Muqueta' Foto: Ciete Silvério

A vida ensina a esquecer.

Sonhei que comprava meu próprio caixão. Não estava triste, sorria para o vendedor que me acompanhava e me apresentava os modelos, quis me contar sobre os serviços, fiquei curioso sobre todo o procedimento para um corpo ser enterrado e pedi que prosseguisse,

Ele era jovem, vestia calça jeans e o uniforme da funerária em costura de camisa larga, deixava a barra dentro da calça, na altura do último botão, usava um cinto preto com fivelas de ferro em forma de W, a inicial da empresa, e me assegurou que eu não ficasse preocupado depois de minha morte, cuidavam de toda a preparação para o funeral e auxiliariam a família com a documentação necessária. Possuíam uma grande estrutura de traslado rodoviário e aéreo em todo território nacional e internacional, se eu morresse em Palimbão, lá me buscariam, caso optasse por cremação, havia diversas urnas lindas e elegantes. Não queria ser confundido com um vaso, mas gostei das porcelanas sugeridas pelo rapaz.

O mais motivador era que, se eu morresse dormindo, babado, com remelas, enrugado, a funerária teria uma clínica própria com padrões de cuidado, preparação e respeito ao corpo. Nas andanças pelo mostruário de caixões, fiquei apaixonado por um de acrílico, seria injusto eu não acompanhar meu próprio funeral, me fechar em um lugar escuro sem que eu conseguisse ver o choro dos amigos, os abraços dos familiares, o padre Inácio, espero que seja ele rezando minha última missa, e escutar os depoimentos dos netos, queria ver quem choraria por mim, pela primeira vez seria o centro das atenções. Se meu irmão pudesse voltar da guerra vivo.

Obra de Milton Avery 'Beach Blankets', de 1960  Foto: Wichita Art Museum

A funerária tinha uma estrutura magnífica de acolher os familiares e concentrar o caixão no meio da sala. Ao redor, as cadeiras, poucas, para pegarem todo o ângulo do corpo e, assim, eu conseguiria enxergar o público presente. Ali, estavam Paulinho amparando Clarissa, Arnaldo acendendo as luzes de fundo e Pedro com a calça rasgada, padre Inácio havia acabado de chegar, batina branca e elegante, cabelo penteado para trás e bigode bem cortado. Eu estava satisfeito com meu velório, quando, inesperadamente, fui surpreendido por fumaça dentro do caixão, ficou tudo enturvado, me senti nervoso, assombrado, mesmo na morte um sonâmbulo, trevoso, não via rótula de luz, nada, nem luneta ou fresta natural, o vapor se alastrava dentro do caixote transparente. Todos haviam desaparecido ou faziam silêncio, o caixão esfumaçado impedia de saber da situação do lado de fora, o medo me fez chacoalhar, arranhar a tampa, socar as laterais, estava fatigado, desesperado, mordi a ponta da língua para acordar.

Onde Cissa deixou minha pílula? Quero ir para a sala, beber como se eu não existisse, aprendi com Paulinho, em sua festa surpresa, que tomar álcool higienizava os músculos, mamãe catou a gente roubando cachaça no armário do barzinho do papai, apanhei tanto, Paulinho fugiu pela porta da garagem, havíamos secado três garrafas. Mamãe me colocou de cabeça para baixo na pia e molhou minha nuca, a ressaca e o castigo foram eternos.

Não sei mais qual é o cheiro de meu cérebro, não entro mais dentro de mim, tenho medo do aroma. Se já me perco aqui fora com todos os sentidos me confundindo, capaz de eu nunca mais voltar de meu interior.

Ainda sei rezar, consigo me ajoelhar, juntar as mãos e olhar para o alto. Peço ao Paizinho do Céu que cubra seu minha cabeça com seu manto sagrado, me faça lembrar de amanhã, peço um tantinho de milagre, não quero ficar sozinho, esquecido, ou até mesmo esquecer, isso dói, e não é uma dor exposta, vem e volta, nunca sara, Senhor, me ajude a desviar dessas ciladas contra o próprio ser humano, a Sua sabedoria clama por uma solução, odiareis o conhecimento? O pensamento? As lembranças dos homens? Eu Te chamo, sobreviverei a Vosso aperto e angústia, tudo de ruim é abominável ao Senhor, eu sei, o mau tem a boca pervertida, alma subalterna, mente pagã, coração enfermo, Senhor, em meio a esses vastos caminhos, Seu juízo dará a andança certa, não é soberba, eu juro, é a piedade de me fazer recordar. Não consigo mais saber o que faço aqui ajoelhado. Eu estava brincando no quarto, sim, no cantinho do beliche em que dormiam nossos.

O escritor Jorge Ialanji Filholini estreou em 2016 com os contos de Somos Mais Limpos pela Manhã (Demônio Negro), tendo alcançado a reta final do Prêmio Jabuti daquele ano. Uma série de questões sociais são exploradas pelas suas personagens, algo que se lê em Muqueta, novo livro a ser lançado neste semestre.

A solidão e a ruminação são elementos incorporados em sua prosa. Em primeira pessoa, Filholini apresenta um protagonista que trava um diálogo com o mistério. E, é de se esperar, a linearidade da mente do homem passa por uma série de distorções no esquema habitual de uma narrativa. É por vezes delirante, como quando o autor ambienta uma cena relacionada à morte. Leia um trecho a seguir.

O escritor Jorge Ialanji Filholini, autor de 'Muqueta' Foto: Ciete Silvério

A vida ensina a esquecer.

Sonhei que comprava meu próprio caixão. Não estava triste, sorria para o vendedor que me acompanhava e me apresentava os modelos, quis me contar sobre os serviços, fiquei curioso sobre todo o procedimento para um corpo ser enterrado e pedi que prosseguisse,

Ele era jovem, vestia calça jeans e o uniforme da funerária em costura de camisa larga, deixava a barra dentro da calça, na altura do último botão, usava um cinto preto com fivelas de ferro em forma de W, a inicial da empresa, e me assegurou que eu não ficasse preocupado depois de minha morte, cuidavam de toda a preparação para o funeral e auxiliariam a família com a documentação necessária. Possuíam uma grande estrutura de traslado rodoviário e aéreo em todo território nacional e internacional, se eu morresse em Palimbão, lá me buscariam, caso optasse por cremação, havia diversas urnas lindas e elegantes. Não queria ser confundido com um vaso, mas gostei das porcelanas sugeridas pelo rapaz.

O mais motivador era que, se eu morresse dormindo, babado, com remelas, enrugado, a funerária teria uma clínica própria com padrões de cuidado, preparação e respeito ao corpo. Nas andanças pelo mostruário de caixões, fiquei apaixonado por um de acrílico, seria injusto eu não acompanhar meu próprio funeral, me fechar em um lugar escuro sem que eu conseguisse ver o choro dos amigos, os abraços dos familiares, o padre Inácio, espero que seja ele rezando minha última missa, e escutar os depoimentos dos netos, queria ver quem choraria por mim, pela primeira vez seria o centro das atenções. Se meu irmão pudesse voltar da guerra vivo.

Obra de Milton Avery 'Beach Blankets', de 1960  Foto: Wichita Art Museum

A funerária tinha uma estrutura magnífica de acolher os familiares e concentrar o caixão no meio da sala. Ao redor, as cadeiras, poucas, para pegarem todo o ângulo do corpo e, assim, eu conseguiria enxergar o público presente. Ali, estavam Paulinho amparando Clarissa, Arnaldo acendendo as luzes de fundo e Pedro com a calça rasgada, padre Inácio havia acabado de chegar, batina branca e elegante, cabelo penteado para trás e bigode bem cortado. Eu estava satisfeito com meu velório, quando, inesperadamente, fui surpreendido por fumaça dentro do caixão, ficou tudo enturvado, me senti nervoso, assombrado, mesmo na morte um sonâmbulo, trevoso, não via rótula de luz, nada, nem luneta ou fresta natural, o vapor se alastrava dentro do caixote transparente. Todos haviam desaparecido ou faziam silêncio, o caixão esfumaçado impedia de saber da situação do lado de fora, o medo me fez chacoalhar, arranhar a tampa, socar as laterais, estava fatigado, desesperado, mordi a ponta da língua para acordar.

Onde Cissa deixou minha pílula? Quero ir para a sala, beber como se eu não existisse, aprendi com Paulinho, em sua festa surpresa, que tomar álcool higienizava os músculos, mamãe catou a gente roubando cachaça no armário do barzinho do papai, apanhei tanto, Paulinho fugiu pela porta da garagem, havíamos secado três garrafas. Mamãe me colocou de cabeça para baixo na pia e molhou minha nuca, a ressaca e o castigo foram eternos.

Não sei mais qual é o cheiro de meu cérebro, não entro mais dentro de mim, tenho medo do aroma. Se já me perco aqui fora com todos os sentidos me confundindo, capaz de eu nunca mais voltar de meu interior.

Ainda sei rezar, consigo me ajoelhar, juntar as mãos e olhar para o alto. Peço ao Paizinho do Céu que cubra seu minha cabeça com seu manto sagrado, me faça lembrar de amanhã, peço um tantinho de milagre, não quero ficar sozinho, esquecido, ou até mesmo esquecer, isso dói, e não é uma dor exposta, vem e volta, nunca sara, Senhor, me ajude a desviar dessas ciladas contra o próprio ser humano, a Sua sabedoria clama por uma solução, odiareis o conhecimento? O pensamento? As lembranças dos homens? Eu Te chamo, sobreviverei a Vosso aperto e angústia, tudo de ruim é abominável ao Senhor, eu sei, o mau tem a boca pervertida, alma subalterna, mente pagã, coração enfermo, Senhor, em meio a esses vastos caminhos, Seu juízo dará a andança certa, não é soberba, eu juro, é a piedade de me fazer recordar. Não consigo mais saber o que faço aqui ajoelhado. Eu estava brincando no quarto, sim, no cantinho do beliche em que dormiam nossos.

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