Juliana Leite mostra como a solidão transforma a vida em 'Humanos Exemplares'


Novo romance da autora trata de desamparo e evoca Machado de Assis

Por Ieda Lebensztayn
Atualização:

“Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos.” O leitor se recordará de tal passagem, que encerra o Memorial de Aires e nos abre o sentido melancólico e vital das memórias do casal de velhos machadianos, órfãos de seus filhos postiços. Se o destino dos jovens é fugir do Brasil e viver seu amor em Portugal, sofremos com o abandono dos velhos, que, sempre amáveis, nos surgem exemplares. Mas é certo que também entrevemos, no seu privilegiar de alegrias particulares, o abandono de pessoas desassistidas como os ex-escravos do país de origem colonial. Essa evocação do último livro de Machado de Assis me vem a propósito do novo romance de Juliana Leite. Nascida em Petrópolis, em 1983, ela recebeu com seu romance de estreia, Entre as mãos (2018), os prêmios Sesc e APCA. E agora nos oferece Humanos exemplares, bela obra que tem como base realista e lírica justamente a solidão acompanhada das memórias de uma senhora idosa, Natalia, cuja filha é uma voz do outro lado do oceano.

Idosa em isolamento social, observa o movimento da rua em Perdizes, zona oeste de São Paulo. Foto: Hévio Romero/Estadão

Viva aos cem anos, a protagonista merece o prazer da manteiga que derrete na boca. Conhecedora do cotidiano da velha, puro mesmo livre de banhos, Juliana tem a arte de partir da concretude dessa manteiga que derrete no café da manhã, instante de prazer em meio à eternidade da solidão diária, e chegar à imagem do derretimento de todos os vínculos afetivos da mulher. Mortos estão o marido Vicente, professor, e a melhor amiga, Sarah, vendedora de biscoitos. Mortos estão todos os queridos. Mas também, junto com essa expressão da subjetividade da senhora idosa, Juliana tece a representação crítica da realidade brasileira, em especial da violência, do terror, das arbitrariedades e injustiças dos tempos da ditadura. Com sutileza, o romance amarra a ternura dos seus protagonistas, casal de professores, ela de redação, ele de geografia, seu entusiasmo pela escola, seu amor pela filha, temporariamente vesga quando pequena, e a visão defeituosa, esta sim, dos policiais e do novo diretor fardado, que caçavam inocentes como os professores cujo crime era sonhar mundos melhores.

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Juliana Leite é vencedora dos prêmios Sesc e APCA e finalista do Oceanos Foto: Valéria Gonçalvez/Estadão

Destaque-se a originalidade da descrição dos projetos de Vicente: era o professor de geografia exemplar, na medida em que tinha habilidade de desenhar constelações, inventar galáxias e desafiar os estudantes a apagarem os mapas conhecidos e a criarem novos mundos do zero. A proposta soma ética, respeito à natureza e poesia: “Havia uma excitação e também um medo entre os alunos que desejavam com ardor apagar todas aquelas verdades, as fronteiras, as divisões, já sentindo de antemão a dificuldade de criar uma coisa grande e boa o suficiente para pôr no lugar, com espaço para humanos e bichos e plantas e árvores, cachoeiras, paisagens, estações do ano, percevejos e montanhas, oceanos, formigueiros, macieiras, além de botecos”. O leitor pode ressentir-se da ausência de títulos dos capítulos de Humanos exemplares. No entanto, essa falta é eloquente do desaparecimento de todos os conhecidos e queridos de Natalia: expressa um mundo de perdas, sobretudo dos nomes próprios, em especial quando a humanidade está ameaçada por uma desgraça. Perigo que mostra a semelhança de todos como vulneráveis, a alusão é à pandemia de coronavírus, não nomeada no romance. Ao mesmo tempo, o silêncio ao iniciar-se cada capítulo, embora nos deixe saudosos de títulos condensadores de histórias, acena sempre com a possibilidade de surpresas, tal qual a renovada expectativa de Natalia de fugir à mesmice e encontrar um novo ser a cada manhã: “Seu maior desejo, vejamos, seria ouvir inesperadamente a campainha, abrir a porta do apartamento e encontrar ali do outro lado um visitante, imagine só, alguém adorável trazendo novidades e rosquinhas de presente”.

Versão antiga e versão colorizada da foto deMachado de Assis Foto: Academia Brasileira de Letras
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Ao compor sua protagonista, não escapa a Juliana Leite que a aposentadoria não bastava para o sustento da professora de redação. Mais do que isso, a delicadeza criadora permite à senhora centenária contar com o dinheiro enviado pela filha e ainda guardar um pouco para pessoas que não tinham a mesma sorte. E até sonhar com a possibilidade de socorrer também todas as desconhecidas, tantas trabalhadoras necessitadas e se arriscando enquanto um vírus circula. Se quase tudo foi tirado a Natalia e só lhe resta “uma coleção de ausências”, ao mesmo tempo ela concentra o essencial: humana exemplar, ela presentifica dramaticamente a etimologia da palavra exemplo, modelo a ser tomado pelos outros. Evocando novamente dona Carmo e Aguiar do romance machadiano, não nos cabe endeusar pessoas como exemplos de perfeição e fechar os olhos para as insuficiências da realidade. Porém, em tempos em que a inteligência e a sensibilidade são raras, vale buscar humanos exemplares. Algum exemplar humano? Junto com o espião criado de maneira lúcida e comovente por Juliana Leite, apostamos na costela da mulher velha, para recomeçar do zero a História e originar outra humanidade.

“Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos.” O leitor se recordará de tal passagem, que encerra o Memorial de Aires e nos abre o sentido melancólico e vital das memórias do casal de velhos machadianos, órfãos de seus filhos postiços. Se o destino dos jovens é fugir do Brasil e viver seu amor em Portugal, sofremos com o abandono dos velhos, que, sempre amáveis, nos surgem exemplares. Mas é certo que também entrevemos, no seu privilegiar de alegrias particulares, o abandono de pessoas desassistidas como os ex-escravos do país de origem colonial. Essa evocação do último livro de Machado de Assis me vem a propósito do novo romance de Juliana Leite. Nascida em Petrópolis, em 1983, ela recebeu com seu romance de estreia, Entre as mãos (2018), os prêmios Sesc e APCA. E agora nos oferece Humanos exemplares, bela obra que tem como base realista e lírica justamente a solidão acompanhada das memórias de uma senhora idosa, Natalia, cuja filha é uma voz do outro lado do oceano.

Idosa em isolamento social, observa o movimento da rua em Perdizes, zona oeste de São Paulo. Foto: Hévio Romero/Estadão

Viva aos cem anos, a protagonista merece o prazer da manteiga que derrete na boca. Conhecedora do cotidiano da velha, puro mesmo livre de banhos, Juliana tem a arte de partir da concretude dessa manteiga que derrete no café da manhã, instante de prazer em meio à eternidade da solidão diária, e chegar à imagem do derretimento de todos os vínculos afetivos da mulher. Mortos estão o marido Vicente, professor, e a melhor amiga, Sarah, vendedora de biscoitos. Mortos estão todos os queridos. Mas também, junto com essa expressão da subjetividade da senhora idosa, Juliana tece a representação crítica da realidade brasileira, em especial da violência, do terror, das arbitrariedades e injustiças dos tempos da ditadura. Com sutileza, o romance amarra a ternura dos seus protagonistas, casal de professores, ela de redação, ele de geografia, seu entusiasmo pela escola, seu amor pela filha, temporariamente vesga quando pequena, e a visão defeituosa, esta sim, dos policiais e do novo diretor fardado, que caçavam inocentes como os professores cujo crime era sonhar mundos melhores.

Juliana Leite é vencedora dos prêmios Sesc e APCA e finalista do Oceanos Foto: Valéria Gonçalvez/Estadão

Destaque-se a originalidade da descrição dos projetos de Vicente: era o professor de geografia exemplar, na medida em que tinha habilidade de desenhar constelações, inventar galáxias e desafiar os estudantes a apagarem os mapas conhecidos e a criarem novos mundos do zero. A proposta soma ética, respeito à natureza e poesia: “Havia uma excitação e também um medo entre os alunos que desejavam com ardor apagar todas aquelas verdades, as fronteiras, as divisões, já sentindo de antemão a dificuldade de criar uma coisa grande e boa o suficiente para pôr no lugar, com espaço para humanos e bichos e plantas e árvores, cachoeiras, paisagens, estações do ano, percevejos e montanhas, oceanos, formigueiros, macieiras, além de botecos”. O leitor pode ressentir-se da ausência de títulos dos capítulos de Humanos exemplares. No entanto, essa falta é eloquente do desaparecimento de todos os conhecidos e queridos de Natalia: expressa um mundo de perdas, sobretudo dos nomes próprios, em especial quando a humanidade está ameaçada por uma desgraça. Perigo que mostra a semelhança de todos como vulneráveis, a alusão é à pandemia de coronavírus, não nomeada no romance. Ao mesmo tempo, o silêncio ao iniciar-se cada capítulo, embora nos deixe saudosos de títulos condensadores de histórias, acena sempre com a possibilidade de surpresas, tal qual a renovada expectativa de Natalia de fugir à mesmice e encontrar um novo ser a cada manhã: “Seu maior desejo, vejamos, seria ouvir inesperadamente a campainha, abrir a porta do apartamento e encontrar ali do outro lado um visitante, imagine só, alguém adorável trazendo novidades e rosquinhas de presente”.

Versão antiga e versão colorizada da foto deMachado de Assis Foto: Academia Brasileira de Letras

Ao compor sua protagonista, não escapa a Juliana Leite que a aposentadoria não bastava para o sustento da professora de redação. Mais do que isso, a delicadeza criadora permite à senhora centenária contar com o dinheiro enviado pela filha e ainda guardar um pouco para pessoas que não tinham a mesma sorte. E até sonhar com a possibilidade de socorrer também todas as desconhecidas, tantas trabalhadoras necessitadas e se arriscando enquanto um vírus circula. Se quase tudo foi tirado a Natalia e só lhe resta “uma coleção de ausências”, ao mesmo tempo ela concentra o essencial: humana exemplar, ela presentifica dramaticamente a etimologia da palavra exemplo, modelo a ser tomado pelos outros. Evocando novamente dona Carmo e Aguiar do romance machadiano, não nos cabe endeusar pessoas como exemplos de perfeição e fechar os olhos para as insuficiências da realidade. Porém, em tempos em que a inteligência e a sensibilidade são raras, vale buscar humanos exemplares. Algum exemplar humano? Junto com o espião criado de maneira lúcida e comovente por Juliana Leite, apostamos na costela da mulher velha, para recomeçar do zero a História e originar outra humanidade.

“Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos.” O leitor se recordará de tal passagem, que encerra o Memorial de Aires e nos abre o sentido melancólico e vital das memórias do casal de velhos machadianos, órfãos de seus filhos postiços. Se o destino dos jovens é fugir do Brasil e viver seu amor em Portugal, sofremos com o abandono dos velhos, que, sempre amáveis, nos surgem exemplares. Mas é certo que também entrevemos, no seu privilegiar de alegrias particulares, o abandono de pessoas desassistidas como os ex-escravos do país de origem colonial. Essa evocação do último livro de Machado de Assis me vem a propósito do novo romance de Juliana Leite. Nascida em Petrópolis, em 1983, ela recebeu com seu romance de estreia, Entre as mãos (2018), os prêmios Sesc e APCA. E agora nos oferece Humanos exemplares, bela obra que tem como base realista e lírica justamente a solidão acompanhada das memórias de uma senhora idosa, Natalia, cuja filha é uma voz do outro lado do oceano.

Idosa em isolamento social, observa o movimento da rua em Perdizes, zona oeste de São Paulo. Foto: Hévio Romero/Estadão

Viva aos cem anos, a protagonista merece o prazer da manteiga que derrete na boca. Conhecedora do cotidiano da velha, puro mesmo livre de banhos, Juliana tem a arte de partir da concretude dessa manteiga que derrete no café da manhã, instante de prazer em meio à eternidade da solidão diária, e chegar à imagem do derretimento de todos os vínculos afetivos da mulher. Mortos estão o marido Vicente, professor, e a melhor amiga, Sarah, vendedora de biscoitos. Mortos estão todos os queridos. Mas também, junto com essa expressão da subjetividade da senhora idosa, Juliana tece a representação crítica da realidade brasileira, em especial da violência, do terror, das arbitrariedades e injustiças dos tempos da ditadura. Com sutileza, o romance amarra a ternura dos seus protagonistas, casal de professores, ela de redação, ele de geografia, seu entusiasmo pela escola, seu amor pela filha, temporariamente vesga quando pequena, e a visão defeituosa, esta sim, dos policiais e do novo diretor fardado, que caçavam inocentes como os professores cujo crime era sonhar mundos melhores.

Juliana Leite é vencedora dos prêmios Sesc e APCA e finalista do Oceanos Foto: Valéria Gonçalvez/Estadão

Destaque-se a originalidade da descrição dos projetos de Vicente: era o professor de geografia exemplar, na medida em que tinha habilidade de desenhar constelações, inventar galáxias e desafiar os estudantes a apagarem os mapas conhecidos e a criarem novos mundos do zero. A proposta soma ética, respeito à natureza e poesia: “Havia uma excitação e também um medo entre os alunos que desejavam com ardor apagar todas aquelas verdades, as fronteiras, as divisões, já sentindo de antemão a dificuldade de criar uma coisa grande e boa o suficiente para pôr no lugar, com espaço para humanos e bichos e plantas e árvores, cachoeiras, paisagens, estações do ano, percevejos e montanhas, oceanos, formigueiros, macieiras, além de botecos”. O leitor pode ressentir-se da ausência de títulos dos capítulos de Humanos exemplares. No entanto, essa falta é eloquente do desaparecimento de todos os conhecidos e queridos de Natalia: expressa um mundo de perdas, sobretudo dos nomes próprios, em especial quando a humanidade está ameaçada por uma desgraça. Perigo que mostra a semelhança de todos como vulneráveis, a alusão é à pandemia de coronavírus, não nomeada no romance. Ao mesmo tempo, o silêncio ao iniciar-se cada capítulo, embora nos deixe saudosos de títulos condensadores de histórias, acena sempre com a possibilidade de surpresas, tal qual a renovada expectativa de Natalia de fugir à mesmice e encontrar um novo ser a cada manhã: “Seu maior desejo, vejamos, seria ouvir inesperadamente a campainha, abrir a porta do apartamento e encontrar ali do outro lado um visitante, imagine só, alguém adorável trazendo novidades e rosquinhas de presente”.

Versão antiga e versão colorizada da foto deMachado de Assis Foto: Academia Brasileira de Letras

Ao compor sua protagonista, não escapa a Juliana Leite que a aposentadoria não bastava para o sustento da professora de redação. Mais do que isso, a delicadeza criadora permite à senhora centenária contar com o dinheiro enviado pela filha e ainda guardar um pouco para pessoas que não tinham a mesma sorte. E até sonhar com a possibilidade de socorrer também todas as desconhecidas, tantas trabalhadoras necessitadas e se arriscando enquanto um vírus circula. Se quase tudo foi tirado a Natalia e só lhe resta “uma coleção de ausências”, ao mesmo tempo ela concentra o essencial: humana exemplar, ela presentifica dramaticamente a etimologia da palavra exemplo, modelo a ser tomado pelos outros. Evocando novamente dona Carmo e Aguiar do romance machadiano, não nos cabe endeusar pessoas como exemplos de perfeição e fechar os olhos para as insuficiências da realidade. Porém, em tempos em que a inteligência e a sensibilidade são raras, vale buscar humanos exemplares. Algum exemplar humano? Junto com o espião criado de maneira lúcida e comovente por Juliana Leite, apostamos na costela da mulher velha, para recomeçar do zero a História e originar outra humanidade.

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