Karl Ove Knausgard encerra sua série de autoficção 'Minha Luta'


Sexto e último volume, 'O Fim' trata da auto-obsessão do escritor norueguês

Por Redação

O título da edição britânica do sexto e último volume de Minha Luta, de Karl Ove Knausgard, parece evidente. Mas o que exatamente chega ao final em O Fim? Um romance? Um diário? Um livro de memórias? Uma autobiografia se passando por um romance, ou um romance aparentando ser uma autobiografia? Ou seria o maior ato de complacência consigo mesmo na literatura moderna? Minha Luta é um fenômeno. Na terra natal do autor, a Noruega, uma em cada dez pessoas possui um exemplar de um dos volumes, mas sua popularidade é global. 

O escritor norueguês Karl Ove Knausgaard Foto: Chester Higgins Jr/The New York Times

“Ele me afetou terrivelmente”, disse a escritora britânica Zadie Smith, comparando sua ânsia pelo próximo livro da série ao desejo de um viciado em crack por outra baforada. 

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A autora canadense radicada no Reino Unido Rachel Cusk – que, assim como Knausgard, é uma profissional da “autoficção”, gênero literário em que os escritores usam sua própria vida como tema – considerou o livro como “talvez a mais importante empreitada literária do nosso tempo”.

E é também uma das mais peculiares: extremamente longa (3.770 páginas na admirável tradução de Don Bartlett e Martin Aitken para o inglês; no Brasil, a tradução publicada pela editora Companhia das letras é feita por Leonardo Pinto Silva no primeiro volume, A Morte do Pai, e por Guilherme da Silva Braga nos demais livros da série), destituída de tramas, totalmente digressiva. 

Minha Luta chega a você como a própria vida. Em um momento Knausgard medita se é possível encontrar um significado em um mundo sem Deus; em outro está escrevendo a respeito de detalhes mundanos sobre como alimentar um filho ou acender um cigarro (a série seria consideravelmente mais curta se Knausgard não fosse um ávido fumante. O leitor não é poupado de absolutamente nada. “Eu não tinha me masturbado, nem uma vez, até chegar aos 19 anos”, ele escreve. E lamenta “a ignomínia e a constante humilhação da ejaculação precoce”.

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O Fim é o mais estranho entre os seis volumes e também o mais autocomplacente de todos: é um livro sobre uma pessoa obcecada consigo mesma opinando extensivamente sobre o que é escrever um livro sobre essa auto-obsessão. 

Ele começa com um desastre iminente. O tio de Knausgard está tão furioso com sua descrição da morte do seu pai no primeiro volume, em decorrência do alcoolismo – “estupro verbal”, acusa seu tio – que ele ameaça processá-lo. 

A mídia norueguesa se deleita com essa disputa familiar. O autor atormentado luta para respeitar seu próximo prazo com a editora, levantando às quatro horas da madrugada enquanto cuida dos três filhos pequenos e de sua mulher maníaco-depressiva. Knausgard repetidamente retorna a uma questão: se o seu projeto literário – transformar a própria vida em arte – vale a pena. É sensato impor esse sofrimento à sua família pelo bem do seu ofício? 

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Ele na verdade não escreve para se tornar uma celebridade; embora se sinta um pouco empolgado ao descobrir que é “grande”, vive distante dos refletores literários o máximo possível. E isto porque, assim como Martin Luther King, ele diz que “não posso fazer outra coisa”. Uma bizarra compulsão interior o impele a desnudar sua alma para o mundo em nome da “verdade”.

Sua segunda obsessão, segundo ele, é com outro autor de um livro chamado Minha Luta – Adolf Hitler. Mais ou menos na metade do livro, O Fim muda abruptamente de tom e foco – da reflexão sobre a vida de um escritor na rica e estável Escandinávia, para um ensaio de 400 páginas a respeito dos primeiros anos do líder nazista. 

Ele realiza uma leitura profunda de Minha Luta de Hitler para investigar como funcionava a mente do ditador, e tenta reconstruir o mundo intelectual da Europa de antes da 2.ª Guerra Mundial – com sua exuberante cultura de um lado e sua obsessão com raça e biologia do outro. 

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Knausgard insiste em tratar Hitler como “um de nós”, um ser humano comum que foi abusado pelo pai e frustrado em sua vida, não um monstro.

Meu único amigo, ‘O Fim’. Por que um trabalho tão quixotesco e complexo quanto Minha Luta alcançou tamanho sucesso de público? O título sem dúvida teve um papel importante nisso. E também a boa pinta do próprio Knausgard; se ele fosse um tipo cheio de espinhas e franzino, talvez o público interessado em suas ideias sobre masturbação e Hitler fosse consideravelmente menor. Mas existem também razões mais substanciais.

E a mais óbvia é a sua honestidade inabalável. Numa era em que toda informação é enviesada ou distorcida, Knausgard se preocupa com as imperfeições da vida humana – o alcoolismo do pai, a dependência de sua mulher, as birras dos filhos. 

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Na era do politicamente correto, ele confessa que se sente castrado por cuidar das crianças. Essa diluição transgressiva das fronteiras entre o público e o privado, do que pode ser dito e o que não, é vivificante e fascinante. Os leitores veem que não estão sozinhos em amar sua família e ao mesmo se sentirem irritados com ela por roubar seu tempo.

E importante também é o fato de que, embora Knausgard escreva com rapidez, seus livros exigem lentidão do leitor. Minha Luta equivale ao “slow food” na época do “drive-thru”. A internet oferece satisfação instantânea, histórias empolgantes e animadas que prendem a atenção por alguns minutos ou segundos. E torna tudo acessível e também descartável. Ele oferece uma internet ao inverso: uma contemplação em câmara lenta de tudo, do trivial ao profundo.

A pergunta mais complicada é se a série realmente merece o sucesso que tem. É uma obra-prima, como muitos fãs sustentam? Ou Knausgard é um fenômeno circense literário? Ostensivamente ele ignora muitas regras da grande literatura. Suas frases são deliberadamente pouco trabalhadas, ele escreve no mesmo tom uniforme sobre como acender um cigarro e acerca da essência da beleza. 

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Uma discussão sobre o assassinato por Anders Breivik de 77 noruegueses em 2011 é breve, o que causa decepção. Em vez de usar o episódio para enfatizar seu argumento de que os alicerces da civilização estão perigosamente frágeis, ele segue adiante.

Mas nos seus momentos melhores ele é maravilhoso. O estudo da sua relação com o pai disfuncional – que é a peça central de A Morte do Pai, o primeiro volume, e que se expande para os outros cinco – é inesquecível. Knausgard capta a tortura das interações de uma criança com um pai difícil e obcecado consigo mesmo: o desejo de aprovação de alguém incapaz de oferecê-la, pelo menos com alguma coerência; os altos e baixos daquele sujeito que o fascina, que o elogia num momento e o despreza em outro; e a crise emocional quando o homem complicado lentamente enlouquece, vai morar com sua mãe (a avó do autor), e a convence a se juntar a ele nas suas bebedeiras, e finalmente morre por causa da bebida, envolto na imundície de garrafas vazias, roupas sujas e excremento humano.

E por mais linear que seja sua escrita, seu estilo é absorvente. “Não era difícil escrever bem”, ele afirma em um trecho do livro, “mas era difícil encontrar uma escrita que fosse viva, que conseguisse abrir o mundo à força e agrupar todos em um único movimento”. Paradoxalmente, por não se preocupar com a escrita elegante convencional, ele consegue produzir uma prosa “viva”, em parte por causa da sua atenção aos detalhes e em parte por causa da qualidade do seu intelecto. 

Seu longo capítulo sobre Hitler, por exemplo, contém uma das melhores discussões já vistas do talento do nazista como um orador: sua enorme capacidade de criar uma comunidade em que o registro inteiro do seu ser interior, seu reservatório de emoções reprimidas e desejo contido conseguiram encontrar uma saída e impregnar suas palavras com tal intensidade e convicção que as pessoas queriam estar lá, no ódio de um lado, na esperança e utopia de outro, o brilhante, no quase divino futuro que seria o seu se o seguissem e obedecessem suas palavras.

Terminamos a leitura de O Fim com emoções ambivalentes: gratidão pelo fato de Knausgard ter quebrado todas as regras para permitir aos leitores entrarem em sua vida, e também alívio porque a história acabou, e a convicção de que ele e seus acólitos devem agora descobrir novos experimentos. 

Em suas Confissões, o filósofo Jean-Jacques Rousseau prometeu narrar sua história com uma honestidade tão brutal que o seu projeto, “sem precedentes”, também não teria, quando concluído, “um imitador”; esperamos que este também seja o caso de Minha Luta – e que O Fim seja realmente o fim. / Tradução de Terezinha Martino

O título da edição britânica do sexto e último volume de Minha Luta, de Karl Ove Knausgard, parece evidente. Mas o que exatamente chega ao final em O Fim? Um romance? Um diário? Um livro de memórias? Uma autobiografia se passando por um romance, ou um romance aparentando ser uma autobiografia? Ou seria o maior ato de complacência consigo mesmo na literatura moderna? Minha Luta é um fenômeno. Na terra natal do autor, a Noruega, uma em cada dez pessoas possui um exemplar de um dos volumes, mas sua popularidade é global. 

O escritor norueguês Karl Ove Knausgaard Foto: Chester Higgins Jr/The New York Times

“Ele me afetou terrivelmente”, disse a escritora britânica Zadie Smith, comparando sua ânsia pelo próximo livro da série ao desejo de um viciado em crack por outra baforada. 

A autora canadense radicada no Reino Unido Rachel Cusk – que, assim como Knausgard, é uma profissional da “autoficção”, gênero literário em que os escritores usam sua própria vida como tema – considerou o livro como “talvez a mais importante empreitada literária do nosso tempo”.

E é também uma das mais peculiares: extremamente longa (3.770 páginas na admirável tradução de Don Bartlett e Martin Aitken para o inglês; no Brasil, a tradução publicada pela editora Companhia das letras é feita por Leonardo Pinto Silva no primeiro volume, A Morte do Pai, e por Guilherme da Silva Braga nos demais livros da série), destituída de tramas, totalmente digressiva. 

Minha Luta chega a você como a própria vida. Em um momento Knausgard medita se é possível encontrar um significado em um mundo sem Deus; em outro está escrevendo a respeito de detalhes mundanos sobre como alimentar um filho ou acender um cigarro (a série seria consideravelmente mais curta se Knausgard não fosse um ávido fumante. O leitor não é poupado de absolutamente nada. “Eu não tinha me masturbado, nem uma vez, até chegar aos 19 anos”, ele escreve. E lamenta “a ignomínia e a constante humilhação da ejaculação precoce”.

O Fim é o mais estranho entre os seis volumes e também o mais autocomplacente de todos: é um livro sobre uma pessoa obcecada consigo mesma opinando extensivamente sobre o que é escrever um livro sobre essa auto-obsessão. 

Ele começa com um desastre iminente. O tio de Knausgard está tão furioso com sua descrição da morte do seu pai no primeiro volume, em decorrência do alcoolismo – “estupro verbal”, acusa seu tio – que ele ameaça processá-lo. 

A mídia norueguesa se deleita com essa disputa familiar. O autor atormentado luta para respeitar seu próximo prazo com a editora, levantando às quatro horas da madrugada enquanto cuida dos três filhos pequenos e de sua mulher maníaco-depressiva. Knausgard repetidamente retorna a uma questão: se o seu projeto literário – transformar a própria vida em arte – vale a pena. É sensato impor esse sofrimento à sua família pelo bem do seu ofício? 

Ele na verdade não escreve para se tornar uma celebridade; embora se sinta um pouco empolgado ao descobrir que é “grande”, vive distante dos refletores literários o máximo possível. E isto porque, assim como Martin Luther King, ele diz que “não posso fazer outra coisa”. Uma bizarra compulsão interior o impele a desnudar sua alma para o mundo em nome da “verdade”.

Sua segunda obsessão, segundo ele, é com outro autor de um livro chamado Minha Luta – Adolf Hitler. Mais ou menos na metade do livro, O Fim muda abruptamente de tom e foco – da reflexão sobre a vida de um escritor na rica e estável Escandinávia, para um ensaio de 400 páginas a respeito dos primeiros anos do líder nazista. 

Ele realiza uma leitura profunda de Minha Luta de Hitler para investigar como funcionava a mente do ditador, e tenta reconstruir o mundo intelectual da Europa de antes da 2.ª Guerra Mundial – com sua exuberante cultura de um lado e sua obsessão com raça e biologia do outro. 

Knausgard insiste em tratar Hitler como “um de nós”, um ser humano comum que foi abusado pelo pai e frustrado em sua vida, não um monstro.

Meu único amigo, ‘O Fim’. Por que um trabalho tão quixotesco e complexo quanto Minha Luta alcançou tamanho sucesso de público? O título sem dúvida teve um papel importante nisso. E também a boa pinta do próprio Knausgard; se ele fosse um tipo cheio de espinhas e franzino, talvez o público interessado em suas ideias sobre masturbação e Hitler fosse consideravelmente menor. Mas existem também razões mais substanciais.

E a mais óbvia é a sua honestidade inabalável. Numa era em que toda informação é enviesada ou distorcida, Knausgard se preocupa com as imperfeições da vida humana – o alcoolismo do pai, a dependência de sua mulher, as birras dos filhos. 

Na era do politicamente correto, ele confessa que se sente castrado por cuidar das crianças. Essa diluição transgressiva das fronteiras entre o público e o privado, do que pode ser dito e o que não, é vivificante e fascinante. Os leitores veem que não estão sozinhos em amar sua família e ao mesmo se sentirem irritados com ela por roubar seu tempo.

E importante também é o fato de que, embora Knausgard escreva com rapidez, seus livros exigem lentidão do leitor. Minha Luta equivale ao “slow food” na época do “drive-thru”. A internet oferece satisfação instantânea, histórias empolgantes e animadas que prendem a atenção por alguns minutos ou segundos. E torna tudo acessível e também descartável. Ele oferece uma internet ao inverso: uma contemplação em câmara lenta de tudo, do trivial ao profundo.

A pergunta mais complicada é se a série realmente merece o sucesso que tem. É uma obra-prima, como muitos fãs sustentam? Ou Knausgard é um fenômeno circense literário? Ostensivamente ele ignora muitas regras da grande literatura. Suas frases são deliberadamente pouco trabalhadas, ele escreve no mesmo tom uniforme sobre como acender um cigarro e acerca da essência da beleza. 

Uma discussão sobre o assassinato por Anders Breivik de 77 noruegueses em 2011 é breve, o que causa decepção. Em vez de usar o episódio para enfatizar seu argumento de que os alicerces da civilização estão perigosamente frágeis, ele segue adiante.

Mas nos seus momentos melhores ele é maravilhoso. O estudo da sua relação com o pai disfuncional – que é a peça central de A Morte do Pai, o primeiro volume, e que se expande para os outros cinco – é inesquecível. Knausgard capta a tortura das interações de uma criança com um pai difícil e obcecado consigo mesmo: o desejo de aprovação de alguém incapaz de oferecê-la, pelo menos com alguma coerência; os altos e baixos daquele sujeito que o fascina, que o elogia num momento e o despreza em outro; e a crise emocional quando o homem complicado lentamente enlouquece, vai morar com sua mãe (a avó do autor), e a convence a se juntar a ele nas suas bebedeiras, e finalmente morre por causa da bebida, envolto na imundície de garrafas vazias, roupas sujas e excremento humano.

E por mais linear que seja sua escrita, seu estilo é absorvente. “Não era difícil escrever bem”, ele afirma em um trecho do livro, “mas era difícil encontrar uma escrita que fosse viva, que conseguisse abrir o mundo à força e agrupar todos em um único movimento”. Paradoxalmente, por não se preocupar com a escrita elegante convencional, ele consegue produzir uma prosa “viva”, em parte por causa da sua atenção aos detalhes e em parte por causa da qualidade do seu intelecto. 

Seu longo capítulo sobre Hitler, por exemplo, contém uma das melhores discussões já vistas do talento do nazista como um orador: sua enorme capacidade de criar uma comunidade em que o registro inteiro do seu ser interior, seu reservatório de emoções reprimidas e desejo contido conseguiram encontrar uma saída e impregnar suas palavras com tal intensidade e convicção que as pessoas queriam estar lá, no ódio de um lado, na esperança e utopia de outro, o brilhante, no quase divino futuro que seria o seu se o seguissem e obedecessem suas palavras.

Terminamos a leitura de O Fim com emoções ambivalentes: gratidão pelo fato de Knausgard ter quebrado todas as regras para permitir aos leitores entrarem em sua vida, e também alívio porque a história acabou, e a convicção de que ele e seus acólitos devem agora descobrir novos experimentos. 

Em suas Confissões, o filósofo Jean-Jacques Rousseau prometeu narrar sua história com uma honestidade tão brutal que o seu projeto, “sem precedentes”, também não teria, quando concluído, “um imitador”; esperamos que este também seja o caso de Minha Luta – e que O Fim seja realmente o fim. / Tradução de Terezinha Martino

O título da edição britânica do sexto e último volume de Minha Luta, de Karl Ove Knausgard, parece evidente. Mas o que exatamente chega ao final em O Fim? Um romance? Um diário? Um livro de memórias? Uma autobiografia se passando por um romance, ou um romance aparentando ser uma autobiografia? Ou seria o maior ato de complacência consigo mesmo na literatura moderna? Minha Luta é um fenômeno. Na terra natal do autor, a Noruega, uma em cada dez pessoas possui um exemplar de um dos volumes, mas sua popularidade é global. 

O escritor norueguês Karl Ove Knausgaard Foto: Chester Higgins Jr/The New York Times

“Ele me afetou terrivelmente”, disse a escritora britânica Zadie Smith, comparando sua ânsia pelo próximo livro da série ao desejo de um viciado em crack por outra baforada. 

A autora canadense radicada no Reino Unido Rachel Cusk – que, assim como Knausgard, é uma profissional da “autoficção”, gênero literário em que os escritores usam sua própria vida como tema – considerou o livro como “talvez a mais importante empreitada literária do nosso tempo”.

E é também uma das mais peculiares: extremamente longa (3.770 páginas na admirável tradução de Don Bartlett e Martin Aitken para o inglês; no Brasil, a tradução publicada pela editora Companhia das letras é feita por Leonardo Pinto Silva no primeiro volume, A Morte do Pai, e por Guilherme da Silva Braga nos demais livros da série), destituída de tramas, totalmente digressiva. 

Minha Luta chega a você como a própria vida. Em um momento Knausgard medita se é possível encontrar um significado em um mundo sem Deus; em outro está escrevendo a respeito de detalhes mundanos sobre como alimentar um filho ou acender um cigarro (a série seria consideravelmente mais curta se Knausgard não fosse um ávido fumante. O leitor não é poupado de absolutamente nada. “Eu não tinha me masturbado, nem uma vez, até chegar aos 19 anos”, ele escreve. E lamenta “a ignomínia e a constante humilhação da ejaculação precoce”.

O Fim é o mais estranho entre os seis volumes e também o mais autocomplacente de todos: é um livro sobre uma pessoa obcecada consigo mesma opinando extensivamente sobre o que é escrever um livro sobre essa auto-obsessão. 

Ele começa com um desastre iminente. O tio de Knausgard está tão furioso com sua descrição da morte do seu pai no primeiro volume, em decorrência do alcoolismo – “estupro verbal”, acusa seu tio – que ele ameaça processá-lo. 

A mídia norueguesa se deleita com essa disputa familiar. O autor atormentado luta para respeitar seu próximo prazo com a editora, levantando às quatro horas da madrugada enquanto cuida dos três filhos pequenos e de sua mulher maníaco-depressiva. Knausgard repetidamente retorna a uma questão: se o seu projeto literário – transformar a própria vida em arte – vale a pena. É sensato impor esse sofrimento à sua família pelo bem do seu ofício? 

Ele na verdade não escreve para se tornar uma celebridade; embora se sinta um pouco empolgado ao descobrir que é “grande”, vive distante dos refletores literários o máximo possível. E isto porque, assim como Martin Luther King, ele diz que “não posso fazer outra coisa”. Uma bizarra compulsão interior o impele a desnudar sua alma para o mundo em nome da “verdade”.

Sua segunda obsessão, segundo ele, é com outro autor de um livro chamado Minha Luta – Adolf Hitler. Mais ou menos na metade do livro, O Fim muda abruptamente de tom e foco – da reflexão sobre a vida de um escritor na rica e estável Escandinávia, para um ensaio de 400 páginas a respeito dos primeiros anos do líder nazista. 

Ele realiza uma leitura profunda de Minha Luta de Hitler para investigar como funcionava a mente do ditador, e tenta reconstruir o mundo intelectual da Europa de antes da 2.ª Guerra Mundial – com sua exuberante cultura de um lado e sua obsessão com raça e biologia do outro. 

Knausgard insiste em tratar Hitler como “um de nós”, um ser humano comum que foi abusado pelo pai e frustrado em sua vida, não um monstro.

Meu único amigo, ‘O Fim’. Por que um trabalho tão quixotesco e complexo quanto Minha Luta alcançou tamanho sucesso de público? O título sem dúvida teve um papel importante nisso. E também a boa pinta do próprio Knausgard; se ele fosse um tipo cheio de espinhas e franzino, talvez o público interessado em suas ideias sobre masturbação e Hitler fosse consideravelmente menor. Mas existem também razões mais substanciais.

E a mais óbvia é a sua honestidade inabalável. Numa era em que toda informação é enviesada ou distorcida, Knausgard se preocupa com as imperfeições da vida humana – o alcoolismo do pai, a dependência de sua mulher, as birras dos filhos. 

Na era do politicamente correto, ele confessa que se sente castrado por cuidar das crianças. Essa diluição transgressiva das fronteiras entre o público e o privado, do que pode ser dito e o que não, é vivificante e fascinante. Os leitores veem que não estão sozinhos em amar sua família e ao mesmo se sentirem irritados com ela por roubar seu tempo.

E importante também é o fato de que, embora Knausgard escreva com rapidez, seus livros exigem lentidão do leitor. Minha Luta equivale ao “slow food” na época do “drive-thru”. A internet oferece satisfação instantânea, histórias empolgantes e animadas que prendem a atenção por alguns minutos ou segundos. E torna tudo acessível e também descartável. Ele oferece uma internet ao inverso: uma contemplação em câmara lenta de tudo, do trivial ao profundo.

A pergunta mais complicada é se a série realmente merece o sucesso que tem. É uma obra-prima, como muitos fãs sustentam? Ou Knausgard é um fenômeno circense literário? Ostensivamente ele ignora muitas regras da grande literatura. Suas frases são deliberadamente pouco trabalhadas, ele escreve no mesmo tom uniforme sobre como acender um cigarro e acerca da essência da beleza. 

Uma discussão sobre o assassinato por Anders Breivik de 77 noruegueses em 2011 é breve, o que causa decepção. Em vez de usar o episódio para enfatizar seu argumento de que os alicerces da civilização estão perigosamente frágeis, ele segue adiante.

Mas nos seus momentos melhores ele é maravilhoso. O estudo da sua relação com o pai disfuncional – que é a peça central de A Morte do Pai, o primeiro volume, e que se expande para os outros cinco – é inesquecível. Knausgard capta a tortura das interações de uma criança com um pai difícil e obcecado consigo mesmo: o desejo de aprovação de alguém incapaz de oferecê-la, pelo menos com alguma coerência; os altos e baixos daquele sujeito que o fascina, que o elogia num momento e o despreza em outro; e a crise emocional quando o homem complicado lentamente enlouquece, vai morar com sua mãe (a avó do autor), e a convence a se juntar a ele nas suas bebedeiras, e finalmente morre por causa da bebida, envolto na imundície de garrafas vazias, roupas sujas e excremento humano.

E por mais linear que seja sua escrita, seu estilo é absorvente. “Não era difícil escrever bem”, ele afirma em um trecho do livro, “mas era difícil encontrar uma escrita que fosse viva, que conseguisse abrir o mundo à força e agrupar todos em um único movimento”. Paradoxalmente, por não se preocupar com a escrita elegante convencional, ele consegue produzir uma prosa “viva”, em parte por causa da sua atenção aos detalhes e em parte por causa da qualidade do seu intelecto. 

Seu longo capítulo sobre Hitler, por exemplo, contém uma das melhores discussões já vistas do talento do nazista como um orador: sua enorme capacidade de criar uma comunidade em que o registro inteiro do seu ser interior, seu reservatório de emoções reprimidas e desejo contido conseguiram encontrar uma saída e impregnar suas palavras com tal intensidade e convicção que as pessoas queriam estar lá, no ódio de um lado, na esperança e utopia de outro, o brilhante, no quase divino futuro que seria o seu se o seguissem e obedecessem suas palavras.

Terminamos a leitura de O Fim com emoções ambivalentes: gratidão pelo fato de Knausgard ter quebrado todas as regras para permitir aos leitores entrarem em sua vida, e também alívio porque a história acabou, e a convicção de que ele e seus acólitos devem agora descobrir novos experimentos. 

Em suas Confissões, o filósofo Jean-Jacques Rousseau prometeu narrar sua história com uma honestidade tão brutal que o seu projeto, “sem precedentes”, também não teria, quando concluído, “um imitador”; esperamos que este também seja o caso de Minha Luta – e que O Fim seja realmente o fim. / Tradução de Terezinha Martino

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