Keith Gessen conta a história da Rússia por meio de duas gerações em ‘Um País Terrível’


Hoje é baseado nos Estados Unidos, jornalista pretendia escrever ensaios sobre sua terra natal e acabou escrevendo um romance com a avó como protagonista

Por Giovana Proença
Atualização:

Keith Gessen não esconde as raízes autobiográficas de sua ficção. Assim como o escritor, Andrei – o protagonista de Um País Terrível – volta para a sua terra de origem, a Rússia. O ano é 2008: o que ele encontra é um país diferente daquele que deixou, com a emigração para os Estados Unidos durante a infância. Esse estranhamento marca o ponto de partida do livro. Gessen nunca pensou em escrever uma ficção sobre a Rússia, mas foi no romance que encontrou a forma para captar as contradições do seu país de origem.

A profunda humanidade de Andrei, com a crueza de uma persona de Dostoievski ou Tolstoi, rendeu elogios ao escritor. Segundo Gessen, o protagonista se encontra em uma dupla jornada pela Rússia. Em primeiro lugar, ele precisa aprender a cuidar da avó, que testemunhou desde o regime stalinista até o fim da União Soviética. É ela quem dá título ao livro, ao definir o país como “terrível”. Em paralelo a isso, há uma aprendizagem intelectual sobre a complexa estrutura econômica russa, o que leva Andrei a refletir sobre a própria condição enquanto trabalhador nos Estados Unidos.

Jornalista, escritor e professor de jornalismo da Universidade de Columbia, nos EUA, Keith Gessen é autor do romance 'UM País Terrível'  Foto: Universidade de Columbia
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O romance, publicado originalmente em 2018 – antes, portanto, do início do conflito com a Ucrânia neste ano – chega aos leitores brasileiros pela editora Todavia em um turbulento momento da história russa. Na narrativa, Gessen toca a questão dos mecanimos de repressão do governo, perpetuados desde a União Soviética, ao mesmo tempo em que pondera sobre o caráter ambíguo do período para o desenvolvimento da Rússia. Sobre Um País Terrível, o autor conversou – por chamada de vídeo – com o Aliás:

Da onde surgiu a ideia para escrever ‘Um País Terrível’?

Assim como o personagem principal, eu nasci na Rússia e fui para lá em 2008 para cuidar da minha avó. Como jornalista, sempre achei que poderia captar as contradições da sociedade russa. Eu estava focado no grupo governante e, particularmente, em Putin. No jornalismo, era muito difícil captar essas contradições. Isso foi parte da minha frustração como um jornalista vivendo na Rússia. Passei um ano em Moscou, voltei, e nunca pensei que escreveria sobre a Rússia na forma de um romance. Mas eu sabia que tinha tido uma experiência muito intensa. Vivi com uma pessoa que tinha sobrevivido ao comunismo, estava muito feliz quando ele colapsou, mas que se viu totalmente falida na situação pós-soviética. Viver com ela por um ano e ver a sua vida de perto me pareceu uma experiência muito poderosa. Eu queria escrever sobre isso. Então, trabalhei em algo como um livro de memórias, intercalado com longos ensaios sobre a história e a literatura russa. Um pouco como Moby Dick ou Guerra e Paz. Quando terminei este rascunho, descobri que os ensaios eram muito chatos e que a parte das memórias era bem interessante. Se eu o tornasse ainda mais interessante, ele poderia ser o tipo de argumento que eu estava tentando mostrar sobre a Rússia soviética, a Rússia pós-soviética e o dano que ela causou. A vida da avó era esse argumento. Por fim, passei alguns anos cortando os ensaios e tornando a parte da avó mais central.

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No livro, o protagonista Andrei é também o narrador. Como foi explorar a subjetividade desta personagem masculina?

O narrador é uma versão ficcional de mim mesmo. Ele está nessa jornada emocional com relação a sua avó, no sentido de se reconectar com ela e aprender como ele pode cuidar dela. Quando Andrei vai para a Rússia, pela primeira vez, ele não sabe do que ela precisa. Ele imagina que eles farão passeios culturais fabulosos, porque ela é uma pessoa que ama a cultura. Pensa também que a avó vai contar a ele todos os fatos interessantes sobre a história soviética, que podem ser usados para publicar um artigo acadêmico. Mas, rapidamente, ele descobre que ela não se lembra de nada sobre a história soviética e que está muito frágil para ir aos fantásticos passeios culturais. Ele experimenta muita frustração, e até raiva da avó. Andrei está nesse processo de descobrir do que ela precisa. Ao fim, a avó precisa apenas que ele esteja lá, escute o que ela diz e se envolva com ela. Ele só precisa estar presente.

Um país com distorções e entraves ideológicos, essa é a Rússia apresentada no romance Foto: Yuri Kochetko/EFE
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De que modo foi pensada a construção intelectual deste personagem?

Andrei também está em algum tipo de jornada intelectual para entender a Rússia. Isso reflete minha própria jornada intelectual. Essa é a diferença entre um livro de memórias e um romance. No meu caso, essa jornada ocorreu ao longo de vinte anos. No caso dele, são seis meses. Ele tem uma educação intelectual muito rápida sobre a economia russa e o dano que isso causou à vida de sua avó. No começo, Andrei está muito aborrecido com a realidade da vida no país. No meio do livro, ele se envolve com um grupo de ativistas políticos e se apaixona por uma delas. No fim, ele coloca todo mundo em apuros na Rússia, mas acaba recompensado por isso nos Estados Unidos. A carreira de um jornalista ocidental não é totalmente diferente. Você vai para a Rússia ou qualquer outro lugar, as histórias que você ouve são, muitas vezes, trágicas e terríveis. Você vende essas histórias para um público ocidental e isso não te custa muita coisa.

O fator econômico interfere diretamente nas relações presentes no livro. Por que pensou nessa estrutura, em que o dinheiro e o status alcançam a centralidade dentro da narrativa?

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Todos nós vivemos dentro disso. É mais fácil escrever sobre um país diferente do meu. Voltar para a Rússia nos anos 1990 e ver o capitalismo em sua forma mais violenta me permitiu ver o capitalismo americano muito mais claro também. Isso mudou desde então, do período do romance até os últimos seis meses. É possível debater se este livro ainda descreve a Rússia como ela é. Por um tempo, você tem o rublo muito forte. Então, para o personagem, um expatriado americano que não estava ganhando muito dinheiro, os dólares não duravam muito. Ele era uma espécie de trabalhador precário nos Estados Unidos e descobriu que isso também não melhoraria na Rússia. Então, temos um personagem que se preocupa quanto ao dinheiro tanto quanto a maioria das pessoas, está consciente disso o tempo todo e mostra como o dinheiro e o status realmente deformam nossas relações. Vemos isso bem diante de nós, o que às vezes é difícil de encarar. Ficamos confusos com o quanto o dinheiro importa, pensamos até que são outras coisas que estão por trás dos nossos comportamentos. Mas, por baixo de tudo, está a vibração do capital.

Putin é alvo de manifestações mundo afora, como este grafiti em Zurique Foto: Arnd Wiegmann/Reuters

Andrei passa a conviver com a avó, que presenciou os mais significativos momentos da Rússia no século 19. De que modo você enxerga as diferentes visões que os dois personagens têm sobre este país dito como terrível?

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A avó é uma espécie de guia para o que a Rússia significa. É ela quem dá título ao livro. Ela diz: eu amo que você esteja aqui, mas não fique, este é um país terrível. Isso é o que minha avó costumava dizer para mim, mas é algo que eu jamais diria, pois aquele era o país terrível dela. Um país terrível que ela decidiu não deixar, nem depois da imigração de sua filha ou da morte do marido. Ela dedicou sua vida a esse país terrível. Essa é uma coisa difícil sobre a Rússia. É desafiador, nós nos perguntamos: por que os russos não estão se levantando e se rebelando contra o regime de Putin? A questão é ingênua. O regime tem um aparato repressivo significativo. Centenas de milhares de pessoas desgostavam da União Soviética, mas poucos deles saíram e protestaram, porque seriam, obviamente, enviados a uma colônia penal por vinte anos ou mais. Esse tipo de aparato repressivo está retornando rapidamente, o que é chocante, pois isso sumiu durante muito tempo. No livro, a avó é uma pessoa que odiava a União Soviética, mas que ainda assim não fez muito para apressar o seu fim, e tentou construir uma vida nesse regime. Isso é algo que é meio difícil de entender quando você está vivendo nos Estados Unidos, embora os Estados Unidos sejam um país em que a injustiça está em cada esquina e, mesmo assim, não estamos nos levantando contra o governo. Mais do que a diferença geracional, há a posição do sujeito. Ela é uma é cidadã russa e ele, claro, um cidadão norte-americano.l

Keith Gessen não esconde as raízes autobiográficas de sua ficção. Assim como o escritor, Andrei – o protagonista de Um País Terrível – volta para a sua terra de origem, a Rússia. O ano é 2008: o que ele encontra é um país diferente daquele que deixou, com a emigração para os Estados Unidos durante a infância. Esse estranhamento marca o ponto de partida do livro. Gessen nunca pensou em escrever uma ficção sobre a Rússia, mas foi no romance que encontrou a forma para captar as contradições do seu país de origem.

A profunda humanidade de Andrei, com a crueza de uma persona de Dostoievski ou Tolstoi, rendeu elogios ao escritor. Segundo Gessen, o protagonista se encontra em uma dupla jornada pela Rússia. Em primeiro lugar, ele precisa aprender a cuidar da avó, que testemunhou desde o regime stalinista até o fim da União Soviética. É ela quem dá título ao livro, ao definir o país como “terrível”. Em paralelo a isso, há uma aprendizagem intelectual sobre a complexa estrutura econômica russa, o que leva Andrei a refletir sobre a própria condição enquanto trabalhador nos Estados Unidos.

Jornalista, escritor e professor de jornalismo da Universidade de Columbia, nos EUA, Keith Gessen é autor do romance 'UM País Terrível'  Foto: Universidade de Columbia

O romance, publicado originalmente em 2018 – antes, portanto, do início do conflito com a Ucrânia neste ano – chega aos leitores brasileiros pela editora Todavia em um turbulento momento da história russa. Na narrativa, Gessen toca a questão dos mecanimos de repressão do governo, perpetuados desde a União Soviética, ao mesmo tempo em que pondera sobre o caráter ambíguo do período para o desenvolvimento da Rússia. Sobre Um País Terrível, o autor conversou – por chamada de vídeo – com o Aliás:

Da onde surgiu a ideia para escrever ‘Um País Terrível’?

Assim como o personagem principal, eu nasci na Rússia e fui para lá em 2008 para cuidar da minha avó. Como jornalista, sempre achei que poderia captar as contradições da sociedade russa. Eu estava focado no grupo governante e, particularmente, em Putin. No jornalismo, era muito difícil captar essas contradições. Isso foi parte da minha frustração como um jornalista vivendo na Rússia. Passei um ano em Moscou, voltei, e nunca pensei que escreveria sobre a Rússia na forma de um romance. Mas eu sabia que tinha tido uma experiência muito intensa. Vivi com uma pessoa que tinha sobrevivido ao comunismo, estava muito feliz quando ele colapsou, mas que se viu totalmente falida na situação pós-soviética. Viver com ela por um ano e ver a sua vida de perto me pareceu uma experiência muito poderosa. Eu queria escrever sobre isso. Então, trabalhei em algo como um livro de memórias, intercalado com longos ensaios sobre a história e a literatura russa. Um pouco como Moby Dick ou Guerra e Paz. Quando terminei este rascunho, descobri que os ensaios eram muito chatos e que a parte das memórias era bem interessante. Se eu o tornasse ainda mais interessante, ele poderia ser o tipo de argumento que eu estava tentando mostrar sobre a Rússia soviética, a Rússia pós-soviética e o dano que ela causou. A vida da avó era esse argumento. Por fim, passei alguns anos cortando os ensaios e tornando a parte da avó mais central.

No livro, o protagonista Andrei é também o narrador. Como foi explorar a subjetividade desta personagem masculina?

O narrador é uma versão ficcional de mim mesmo. Ele está nessa jornada emocional com relação a sua avó, no sentido de se reconectar com ela e aprender como ele pode cuidar dela. Quando Andrei vai para a Rússia, pela primeira vez, ele não sabe do que ela precisa. Ele imagina que eles farão passeios culturais fabulosos, porque ela é uma pessoa que ama a cultura. Pensa também que a avó vai contar a ele todos os fatos interessantes sobre a história soviética, que podem ser usados para publicar um artigo acadêmico. Mas, rapidamente, ele descobre que ela não se lembra de nada sobre a história soviética e que está muito frágil para ir aos fantásticos passeios culturais. Ele experimenta muita frustração, e até raiva da avó. Andrei está nesse processo de descobrir do que ela precisa. Ao fim, a avó precisa apenas que ele esteja lá, escute o que ela diz e se envolva com ela. Ele só precisa estar presente.

Um país com distorções e entraves ideológicos, essa é a Rússia apresentada no romance Foto: Yuri Kochetko/EFE

De que modo foi pensada a construção intelectual deste personagem?

Andrei também está em algum tipo de jornada intelectual para entender a Rússia. Isso reflete minha própria jornada intelectual. Essa é a diferença entre um livro de memórias e um romance. No meu caso, essa jornada ocorreu ao longo de vinte anos. No caso dele, são seis meses. Ele tem uma educação intelectual muito rápida sobre a economia russa e o dano que isso causou à vida de sua avó. No começo, Andrei está muito aborrecido com a realidade da vida no país. No meio do livro, ele se envolve com um grupo de ativistas políticos e se apaixona por uma delas. No fim, ele coloca todo mundo em apuros na Rússia, mas acaba recompensado por isso nos Estados Unidos. A carreira de um jornalista ocidental não é totalmente diferente. Você vai para a Rússia ou qualquer outro lugar, as histórias que você ouve são, muitas vezes, trágicas e terríveis. Você vende essas histórias para um público ocidental e isso não te custa muita coisa.

O fator econômico interfere diretamente nas relações presentes no livro. Por que pensou nessa estrutura, em que o dinheiro e o status alcançam a centralidade dentro da narrativa?

Todos nós vivemos dentro disso. É mais fácil escrever sobre um país diferente do meu. Voltar para a Rússia nos anos 1990 e ver o capitalismo em sua forma mais violenta me permitiu ver o capitalismo americano muito mais claro também. Isso mudou desde então, do período do romance até os últimos seis meses. É possível debater se este livro ainda descreve a Rússia como ela é. Por um tempo, você tem o rublo muito forte. Então, para o personagem, um expatriado americano que não estava ganhando muito dinheiro, os dólares não duravam muito. Ele era uma espécie de trabalhador precário nos Estados Unidos e descobriu que isso também não melhoraria na Rússia. Então, temos um personagem que se preocupa quanto ao dinheiro tanto quanto a maioria das pessoas, está consciente disso o tempo todo e mostra como o dinheiro e o status realmente deformam nossas relações. Vemos isso bem diante de nós, o que às vezes é difícil de encarar. Ficamos confusos com o quanto o dinheiro importa, pensamos até que são outras coisas que estão por trás dos nossos comportamentos. Mas, por baixo de tudo, está a vibração do capital.

Putin é alvo de manifestações mundo afora, como este grafiti em Zurique Foto: Arnd Wiegmann/Reuters

Andrei passa a conviver com a avó, que presenciou os mais significativos momentos da Rússia no século 19. De que modo você enxerga as diferentes visões que os dois personagens têm sobre este país dito como terrível?

A avó é uma espécie de guia para o que a Rússia significa. É ela quem dá título ao livro. Ela diz: eu amo que você esteja aqui, mas não fique, este é um país terrível. Isso é o que minha avó costumava dizer para mim, mas é algo que eu jamais diria, pois aquele era o país terrível dela. Um país terrível que ela decidiu não deixar, nem depois da imigração de sua filha ou da morte do marido. Ela dedicou sua vida a esse país terrível. Essa é uma coisa difícil sobre a Rússia. É desafiador, nós nos perguntamos: por que os russos não estão se levantando e se rebelando contra o regime de Putin? A questão é ingênua. O regime tem um aparato repressivo significativo. Centenas de milhares de pessoas desgostavam da União Soviética, mas poucos deles saíram e protestaram, porque seriam, obviamente, enviados a uma colônia penal por vinte anos ou mais. Esse tipo de aparato repressivo está retornando rapidamente, o que é chocante, pois isso sumiu durante muito tempo. No livro, a avó é uma pessoa que odiava a União Soviética, mas que ainda assim não fez muito para apressar o seu fim, e tentou construir uma vida nesse regime. Isso é algo que é meio difícil de entender quando você está vivendo nos Estados Unidos, embora os Estados Unidos sejam um país em que a injustiça está em cada esquina e, mesmo assim, não estamos nos levantando contra o governo. Mais do que a diferença geracional, há a posição do sujeito. Ela é uma é cidadã russa e ele, claro, um cidadão norte-americano.l

Keith Gessen não esconde as raízes autobiográficas de sua ficção. Assim como o escritor, Andrei – o protagonista de Um País Terrível – volta para a sua terra de origem, a Rússia. O ano é 2008: o que ele encontra é um país diferente daquele que deixou, com a emigração para os Estados Unidos durante a infância. Esse estranhamento marca o ponto de partida do livro. Gessen nunca pensou em escrever uma ficção sobre a Rússia, mas foi no romance que encontrou a forma para captar as contradições do seu país de origem.

A profunda humanidade de Andrei, com a crueza de uma persona de Dostoievski ou Tolstoi, rendeu elogios ao escritor. Segundo Gessen, o protagonista se encontra em uma dupla jornada pela Rússia. Em primeiro lugar, ele precisa aprender a cuidar da avó, que testemunhou desde o regime stalinista até o fim da União Soviética. É ela quem dá título ao livro, ao definir o país como “terrível”. Em paralelo a isso, há uma aprendizagem intelectual sobre a complexa estrutura econômica russa, o que leva Andrei a refletir sobre a própria condição enquanto trabalhador nos Estados Unidos.

Jornalista, escritor e professor de jornalismo da Universidade de Columbia, nos EUA, Keith Gessen é autor do romance 'UM País Terrível'  Foto: Universidade de Columbia

O romance, publicado originalmente em 2018 – antes, portanto, do início do conflito com a Ucrânia neste ano – chega aos leitores brasileiros pela editora Todavia em um turbulento momento da história russa. Na narrativa, Gessen toca a questão dos mecanimos de repressão do governo, perpetuados desde a União Soviética, ao mesmo tempo em que pondera sobre o caráter ambíguo do período para o desenvolvimento da Rússia. Sobre Um País Terrível, o autor conversou – por chamada de vídeo – com o Aliás:

Da onde surgiu a ideia para escrever ‘Um País Terrível’?

Assim como o personagem principal, eu nasci na Rússia e fui para lá em 2008 para cuidar da minha avó. Como jornalista, sempre achei que poderia captar as contradições da sociedade russa. Eu estava focado no grupo governante e, particularmente, em Putin. No jornalismo, era muito difícil captar essas contradições. Isso foi parte da minha frustração como um jornalista vivendo na Rússia. Passei um ano em Moscou, voltei, e nunca pensei que escreveria sobre a Rússia na forma de um romance. Mas eu sabia que tinha tido uma experiência muito intensa. Vivi com uma pessoa que tinha sobrevivido ao comunismo, estava muito feliz quando ele colapsou, mas que se viu totalmente falida na situação pós-soviética. Viver com ela por um ano e ver a sua vida de perto me pareceu uma experiência muito poderosa. Eu queria escrever sobre isso. Então, trabalhei em algo como um livro de memórias, intercalado com longos ensaios sobre a história e a literatura russa. Um pouco como Moby Dick ou Guerra e Paz. Quando terminei este rascunho, descobri que os ensaios eram muito chatos e que a parte das memórias era bem interessante. Se eu o tornasse ainda mais interessante, ele poderia ser o tipo de argumento que eu estava tentando mostrar sobre a Rússia soviética, a Rússia pós-soviética e o dano que ela causou. A vida da avó era esse argumento. Por fim, passei alguns anos cortando os ensaios e tornando a parte da avó mais central.

No livro, o protagonista Andrei é também o narrador. Como foi explorar a subjetividade desta personagem masculina?

O narrador é uma versão ficcional de mim mesmo. Ele está nessa jornada emocional com relação a sua avó, no sentido de se reconectar com ela e aprender como ele pode cuidar dela. Quando Andrei vai para a Rússia, pela primeira vez, ele não sabe do que ela precisa. Ele imagina que eles farão passeios culturais fabulosos, porque ela é uma pessoa que ama a cultura. Pensa também que a avó vai contar a ele todos os fatos interessantes sobre a história soviética, que podem ser usados para publicar um artigo acadêmico. Mas, rapidamente, ele descobre que ela não se lembra de nada sobre a história soviética e que está muito frágil para ir aos fantásticos passeios culturais. Ele experimenta muita frustração, e até raiva da avó. Andrei está nesse processo de descobrir do que ela precisa. Ao fim, a avó precisa apenas que ele esteja lá, escute o que ela diz e se envolva com ela. Ele só precisa estar presente.

Um país com distorções e entraves ideológicos, essa é a Rússia apresentada no romance Foto: Yuri Kochetko/EFE

De que modo foi pensada a construção intelectual deste personagem?

Andrei também está em algum tipo de jornada intelectual para entender a Rússia. Isso reflete minha própria jornada intelectual. Essa é a diferença entre um livro de memórias e um romance. No meu caso, essa jornada ocorreu ao longo de vinte anos. No caso dele, são seis meses. Ele tem uma educação intelectual muito rápida sobre a economia russa e o dano que isso causou à vida de sua avó. No começo, Andrei está muito aborrecido com a realidade da vida no país. No meio do livro, ele se envolve com um grupo de ativistas políticos e se apaixona por uma delas. No fim, ele coloca todo mundo em apuros na Rússia, mas acaba recompensado por isso nos Estados Unidos. A carreira de um jornalista ocidental não é totalmente diferente. Você vai para a Rússia ou qualquer outro lugar, as histórias que você ouve são, muitas vezes, trágicas e terríveis. Você vende essas histórias para um público ocidental e isso não te custa muita coisa.

O fator econômico interfere diretamente nas relações presentes no livro. Por que pensou nessa estrutura, em que o dinheiro e o status alcançam a centralidade dentro da narrativa?

Todos nós vivemos dentro disso. É mais fácil escrever sobre um país diferente do meu. Voltar para a Rússia nos anos 1990 e ver o capitalismo em sua forma mais violenta me permitiu ver o capitalismo americano muito mais claro também. Isso mudou desde então, do período do romance até os últimos seis meses. É possível debater se este livro ainda descreve a Rússia como ela é. Por um tempo, você tem o rublo muito forte. Então, para o personagem, um expatriado americano que não estava ganhando muito dinheiro, os dólares não duravam muito. Ele era uma espécie de trabalhador precário nos Estados Unidos e descobriu que isso também não melhoraria na Rússia. Então, temos um personagem que se preocupa quanto ao dinheiro tanto quanto a maioria das pessoas, está consciente disso o tempo todo e mostra como o dinheiro e o status realmente deformam nossas relações. Vemos isso bem diante de nós, o que às vezes é difícil de encarar. Ficamos confusos com o quanto o dinheiro importa, pensamos até que são outras coisas que estão por trás dos nossos comportamentos. Mas, por baixo de tudo, está a vibração do capital.

Putin é alvo de manifestações mundo afora, como este grafiti em Zurique Foto: Arnd Wiegmann/Reuters

Andrei passa a conviver com a avó, que presenciou os mais significativos momentos da Rússia no século 19. De que modo você enxerga as diferentes visões que os dois personagens têm sobre este país dito como terrível?

A avó é uma espécie de guia para o que a Rússia significa. É ela quem dá título ao livro. Ela diz: eu amo que você esteja aqui, mas não fique, este é um país terrível. Isso é o que minha avó costumava dizer para mim, mas é algo que eu jamais diria, pois aquele era o país terrível dela. Um país terrível que ela decidiu não deixar, nem depois da imigração de sua filha ou da morte do marido. Ela dedicou sua vida a esse país terrível. Essa é uma coisa difícil sobre a Rússia. É desafiador, nós nos perguntamos: por que os russos não estão se levantando e se rebelando contra o regime de Putin? A questão é ingênua. O regime tem um aparato repressivo significativo. Centenas de milhares de pessoas desgostavam da União Soviética, mas poucos deles saíram e protestaram, porque seriam, obviamente, enviados a uma colônia penal por vinte anos ou mais. Esse tipo de aparato repressivo está retornando rapidamente, o que é chocante, pois isso sumiu durante muito tempo. No livro, a avó é uma pessoa que odiava a União Soviética, mas que ainda assim não fez muito para apressar o seu fim, e tentou construir uma vida nesse regime. Isso é algo que é meio difícil de entender quando você está vivendo nos Estados Unidos, embora os Estados Unidos sejam um país em que a injustiça está em cada esquina e, mesmo assim, não estamos nos levantando contra o governo. Mais do que a diferença geracional, há a posição do sujeito. Ela é uma é cidadã russa e ele, claro, um cidadão norte-americano.l

Keith Gessen não esconde as raízes autobiográficas de sua ficção. Assim como o escritor, Andrei – o protagonista de Um País Terrível – volta para a sua terra de origem, a Rússia. O ano é 2008: o que ele encontra é um país diferente daquele que deixou, com a emigração para os Estados Unidos durante a infância. Esse estranhamento marca o ponto de partida do livro. Gessen nunca pensou em escrever uma ficção sobre a Rússia, mas foi no romance que encontrou a forma para captar as contradições do seu país de origem.

A profunda humanidade de Andrei, com a crueza de uma persona de Dostoievski ou Tolstoi, rendeu elogios ao escritor. Segundo Gessen, o protagonista se encontra em uma dupla jornada pela Rússia. Em primeiro lugar, ele precisa aprender a cuidar da avó, que testemunhou desde o regime stalinista até o fim da União Soviética. É ela quem dá título ao livro, ao definir o país como “terrível”. Em paralelo a isso, há uma aprendizagem intelectual sobre a complexa estrutura econômica russa, o que leva Andrei a refletir sobre a própria condição enquanto trabalhador nos Estados Unidos.

Jornalista, escritor e professor de jornalismo da Universidade de Columbia, nos EUA, Keith Gessen é autor do romance 'UM País Terrível'  Foto: Universidade de Columbia

O romance, publicado originalmente em 2018 – antes, portanto, do início do conflito com a Ucrânia neste ano – chega aos leitores brasileiros pela editora Todavia em um turbulento momento da história russa. Na narrativa, Gessen toca a questão dos mecanimos de repressão do governo, perpetuados desde a União Soviética, ao mesmo tempo em que pondera sobre o caráter ambíguo do período para o desenvolvimento da Rússia. Sobre Um País Terrível, o autor conversou – por chamada de vídeo – com o Aliás:

Da onde surgiu a ideia para escrever ‘Um País Terrível’?

Assim como o personagem principal, eu nasci na Rússia e fui para lá em 2008 para cuidar da minha avó. Como jornalista, sempre achei que poderia captar as contradições da sociedade russa. Eu estava focado no grupo governante e, particularmente, em Putin. No jornalismo, era muito difícil captar essas contradições. Isso foi parte da minha frustração como um jornalista vivendo na Rússia. Passei um ano em Moscou, voltei, e nunca pensei que escreveria sobre a Rússia na forma de um romance. Mas eu sabia que tinha tido uma experiência muito intensa. Vivi com uma pessoa que tinha sobrevivido ao comunismo, estava muito feliz quando ele colapsou, mas que se viu totalmente falida na situação pós-soviética. Viver com ela por um ano e ver a sua vida de perto me pareceu uma experiência muito poderosa. Eu queria escrever sobre isso. Então, trabalhei em algo como um livro de memórias, intercalado com longos ensaios sobre a história e a literatura russa. Um pouco como Moby Dick ou Guerra e Paz. Quando terminei este rascunho, descobri que os ensaios eram muito chatos e que a parte das memórias era bem interessante. Se eu o tornasse ainda mais interessante, ele poderia ser o tipo de argumento que eu estava tentando mostrar sobre a Rússia soviética, a Rússia pós-soviética e o dano que ela causou. A vida da avó era esse argumento. Por fim, passei alguns anos cortando os ensaios e tornando a parte da avó mais central.

No livro, o protagonista Andrei é também o narrador. Como foi explorar a subjetividade desta personagem masculina?

O narrador é uma versão ficcional de mim mesmo. Ele está nessa jornada emocional com relação a sua avó, no sentido de se reconectar com ela e aprender como ele pode cuidar dela. Quando Andrei vai para a Rússia, pela primeira vez, ele não sabe do que ela precisa. Ele imagina que eles farão passeios culturais fabulosos, porque ela é uma pessoa que ama a cultura. Pensa também que a avó vai contar a ele todos os fatos interessantes sobre a história soviética, que podem ser usados para publicar um artigo acadêmico. Mas, rapidamente, ele descobre que ela não se lembra de nada sobre a história soviética e que está muito frágil para ir aos fantásticos passeios culturais. Ele experimenta muita frustração, e até raiva da avó. Andrei está nesse processo de descobrir do que ela precisa. Ao fim, a avó precisa apenas que ele esteja lá, escute o que ela diz e se envolva com ela. Ele só precisa estar presente.

Um país com distorções e entraves ideológicos, essa é a Rússia apresentada no romance Foto: Yuri Kochetko/EFE

De que modo foi pensada a construção intelectual deste personagem?

Andrei também está em algum tipo de jornada intelectual para entender a Rússia. Isso reflete minha própria jornada intelectual. Essa é a diferença entre um livro de memórias e um romance. No meu caso, essa jornada ocorreu ao longo de vinte anos. No caso dele, são seis meses. Ele tem uma educação intelectual muito rápida sobre a economia russa e o dano que isso causou à vida de sua avó. No começo, Andrei está muito aborrecido com a realidade da vida no país. No meio do livro, ele se envolve com um grupo de ativistas políticos e se apaixona por uma delas. No fim, ele coloca todo mundo em apuros na Rússia, mas acaba recompensado por isso nos Estados Unidos. A carreira de um jornalista ocidental não é totalmente diferente. Você vai para a Rússia ou qualquer outro lugar, as histórias que você ouve são, muitas vezes, trágicas e terríveis. Você vende essas histórias para um público ocidental e isso não te custa muita coisa.

O fator econômico interfere diretamente nas relações presentes no livro. Por que pensou nessa estrutura, em que o dinheiro e o status alcançam a centralidade dentro da narrativa?

Todos nós vivemos dentro disso. É mais fácil escrever sobre um país diferente do meu. Voltar para a Rússia nos anos 1990 e ver o capitalismo em sua forma mais violenta me permitiu ver o capitalismo americano muito mais claro também. Isso mudou desde então, do período do romance até os últimos seis meses. É possível debater se este livro ainda descreve a Rússia como ela é. Por um tempo, você tem o rublo muito forte. Então, para o personagem, um expatriado americano que não estava ganhando muito dinheiro, os dólares não duravam muito. Ele era uma espécie de trabalhador precário nos Estados Unidos e descobriu que isso também não melhoraria na Rússia. Então, temos um personagem que se preocupa quanto ao dinheiro tanto quanto a maioria das pessoas, está consciente disso o tempo todo e mostra como o dinheiro e o status realmente deformam nossas relações. Vemos isso bem diante de nós, o que às vezes é difícil de encarar. Ficamos confusos com o quanto o dinheiro importa, pensamos até que são outras coisas que estão por trás dos nossos comportamentos. Mas, por baixo de tudo, está a vibração do capital.

Putin é alvo de manifestações mundo afora, como este grafiti em Zurique Foto: Arnd Wiegmann/Reuters

Andrei passa a conviver com a avó, que presenciou os mais significativos momentos da Rússia no século 19. De que modo você enxerga as diferentes visões que os dois personagens têm sobre este país dito como terrível?

A avó é uma espécie de guia para o que a Rússia significa. É ela quem dá título ao livro. Ela diz: eu amo que você esteja aqui, mas não fique, este é um país terrível. Isso é o que minha avó costumava dizer para mim, mas é algo que eu jamais diria, pois aquele era o país terrível dela. Um país terrível que ela decidiu não deixar, nem depois da imigração de sua filha ou da morte do marido. Ela dedicou sua vida a esse país terrível. Essa é uma coisa difícil sobre a Rússia. É desafiador, nós nos perguntamos: por que os russos não estão se levantando e se rebelando contra o regime de Putin? A questão é ingênua. O regime tem um aparato repressivo significativo. Centenas de milhares de pessoas desgostavam da União Soviética, mas poucos deles saíram e protestaram, porque seriam, obviamente, enviados a uma colônia penal por vinte anos ou mais. Esse tipo de aparato repressivo está retornando rapidamente, o que é chocante, pois isso sumiu durante muito tempo. No livro, a avó é uma pessoa que odiava a União Soviética, mas que ainda assim não fez muito para apressar o seu fim, e tentou construir uma vida nesse regime. Isso é algo que é meio difícil de entender quando você está vivendo nos Estados Unidos, embora os Estados Unidos sejam um país em que a injustiça está em cada esquina e, mesmo assim, não estamos nos levantando contra o governo. Mais do que a diferença geracional, há a posição do sujeito. Ela é uma é cidadã russa e ele, claro, um cidadão norte-americano.l

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