Grande parte da curta vida do pintor francês Toulouse-Lautrec (1864-1901), morto aos 36 anos, foi passada em Montmartre, o bairro boêmio parisiense frequentado por artistas, entre eles Van Gogh. Em 1889, aos 25 anos, Toulouse-Lautrec já havia pintado uma dúzia de telas que retratavam personagens e lugares de Montmartre. Uma delas, No Moulin de la Galette, virá para a grande retrospectiva do artista que o Masp inaugura em junho. A mostra, Toulouse-Lautrec em Vermelho, reúne 60 obras e 51 documentos provenientes de vários museus importantes, entre eles o Instituto de Arte de Chicago, que emprestou a citada pintura que retrata o famoso salão de baile de Montmartre.
A modernidade da tela é assustadora. Nela, Toulouse-Lautrec faz uso de uma técnica conhecida como ‘peinture à l’essence’, em que a tinta, diluída em terebintina, torna visível as pinceladas e acentua a transparência, dando à pintura certo aspecto de obra inacabada. No caso de No Moulin de la Galette, ela traduz a divisão de classes sociais que tanto marcou o artista, um aristocrata que trocou a vida de nobre pelo convívio com os marginais de Paris – prostitutas, bêbados e gigolôs. No primeiro plano da tela, é possível ver três mulheres entediadas e o dono do lugar, separados por um balcão de madeira da classe operária, que dança e se diverte ao fundo.
No entanto, No Moulin de la Galette não é a peça principal da retrospectiva, a maior mostra montada no Masp desde que o diretor artístico do museu, Adriano Pedrosa, assumiu o cargo há dois anos. E é preciso lembrar que, além do Instituto de Arte de Chicago, outros importantes museus cederam obras para ela, como o Museu d’Orsay de Paris, o Rijksmuseum de Amsterdã e o Museu Thyssen-Bornemmisza de Madri. Mas a peça-chave da exposição é mesmo O Divã, pintura de 1893 que retrata o bordel onde Toulouse-Lautrec praticamente vivia em Paris – uma espécie de extensão de seu ateliê, pelo qual circulavam prostitutas amantes e modelos, algumas em plena ação, inclusive em cenas homoafetivas.
A escolha de O Divã, uma das 11 telas pertencentes ao acervo do Masp, não foi casual. Ela define a intenção do curador Adriano Pedrosa de enfatizar a relação de Toulouse-Lautrec com o sexo, dentro do segmento Histórias da Sexualidade criado por ele – no ano passado, foi a vez da série Histórias da Infância. O “vermelho” do título da exposição indica tanto um sinal de alerta, de emergência, como a subversão de um jovem aristocrata anão que se entregou à vida boêmia do fin-de-siècle parisiense, inaugurando a modernidade pictórica ao fazer da pintura – então uma arte consumida por aristocratas e pela alta burguesia – uma manifestação artística de alcance democrático. Um exemplo: ele foi pioneiro ao criar pôsteres para divulgar cantoras, shows e peças teatrais, espalhados pelas ruas de Paris, que logo se transformaram em peças de colecionadores no fim do século 19.
referenceVoltando ao Divã, a principal peça de Toulouse-Lautrec na coleção do Masp, ela sintetiza, de fato, a visão do pintor desse universo em vermelho, feito de paixão e desespero, de sexo e sangue. O Divã não é o primeiro quadro da história ocidental ou oriental a retratar o universo da prostitutas – o japonês Utamaro, que o pintor francês adorava, foi um dos precursores na área. Mas, definitivamente, é a tela que melhor traduz a expressão resignada das pacientes prostitutas à espera dos clientes na antessala do bordel. E, evoque-se, Toulouse-Lautrec se inspirou em Daumier, Degas e Forain, que já pintavam as garotas dos bordéis parisienses, especialmente o da Rue des Moulins, que passou a ser a segunda residência do pintor e onde pintou O Divã. Lá foi parar um dia o elegante Paul Durand-Ruel, marchand dos impressionistas, quando pediu a Toulouse-Lautrec para conhecer seu ateliê.
Três anos antes de O Divã, em 1890, o senador Bérenger fez passar uma lei contra cartazes considerados imorais nas ruas de Paris, visando justamente artistas como Toulouse-Lautrec, que simplesmente ignorou a cruzada moralista do político contra o can-can e outras manifestações artísticas consideradas ofensivas aos bons costumes – e um dos cartazes da mostra (emprestado pelo Victoria and Albert Museum) retrata justamente a dançarina de can-can Jane Avril (1868-1943), conhecida como La Mélinite.
A técnica usada na elaboração do trabalho gráfico do artista impressiona. Num óleo sobre cartão, esboço para uma litogravura chamada Lassitude, pintado com tinta diluída, Toulouse-Lautrec, antes de partir para a transposição gráfica da imagem, rigorosamente reproduzida, se permite tal liberdade que é difícil imaginar como um editor dava conta de ser fiel aos seus traços livres, como Gustave Pellet, que cuidou do álbum Elles, do qual Lassitude é a décima prancha (o óleo sobre cartão original, que mostra uma prostituta espalhada na cama, de lingerie e meias pretas, vem para a mostra).
Lautrec mantinha em sua coleção litogravuras eróticas com a qual chocava alguns burgueses escandalizáveis. Em Montmartre, a curiosidade de Toulouse-Lautrec pelas formas alternativas de sexo foi aguçada pelo convívio com as garotas do bordel da Rue de Moulins, onde passou um ano de sua vida e produziu 11 telas sobre o amor entre mulheres. Algumas estão na retrospectiva do Masp, entre elas Dançando no Moulin Rouge (1897), que mostra um casal de lésbicas.
Essa foi a época mais produtiva de Toulouse-Lautrec”, comenta o curador Adriano Perosa, revelando, com orgulho, que o Masp tem em seu acervo pinturas desse período, como o óleo Monsieur Fourcade, de 1889, que retrata o banqueiro Henri Fourcade, amigo íntimo do pintor. É uma bela pintura pós-impressionista em que só a figura principal está no foco, de fraque e cartola, sendo as personagens secundárias apenas esboçadas em rápidas pinceladas, embora uma delas fosse o primo do pintor, Gabriel Tapié de Céleyran. Ele inspirou a última tela de Toulouse-Lautrec, Exame na Faculdade de Medicina, na qual o artista mostra o parente defendendo sua tese de doutorado em Medicina. O autor da tela não estava presente. Já afetado pelas crises frequentes de amnésia, imaginou a cena em tintas dramáticas quando tentava se curar do alcoolismo numa clínica em Neuilly.
Antes dessa última pintura, Toulouse-Lautrec realizou outra obra-prima, Paul Viaud como Almirante (1901), retrato inaudito de seu amigo Paul Viaud, que a mãe do pintor encarregou de cuidar do artista quando este deixou a clínica. A missão de Viaud era infrutífera. Deveria vigiar os passos do amigo para não voltar a beber, mas, cheio de imaginação, o pintor inventou várias maneiras de burlar essa vigilância, escondendo a bebida nos lugares mais insólitos, entre eles o interior da bengala que o ajudava a caminhar. Toulouse-Lautrec viveu algum tempo com o amigo almirante em seu iate. Depois, alugaram uma casa.
O retrato que ele fez de Viaud no castelo familiar de Malromé, onde também pintou o de sua mãe, é cinematográfico. A pintura antecipa o enquadramento de uma arte que nascera apenas seis anos antes, o cinema, e ainda não desenvolvera sua linguagem. O almirante é visto de costas do lado esquerdo da tela, desprezando a composição clássica centralizada e o equilíbrio acadêmico. Rápidas pinceladas esboçam um galeão ao fundo. O rosto do almirante parece uma caricatura. O quadro parece existir em função da roupa vermelha de Viaud, o verdadeiro pretexto para a pintura, uma das melhores da coleção do Masp.
Toulouse-Lautrec era fascinado por roupas e pantomimas (depois do bordel, o Circo Fernando era seu divertimento preferido em Paris). Adorava se vestir de mulher, de palhaço, de gueixa, desenhando impiedosas autocaricaturas que acentuavam seu defeito físico. As pernas curtas, porém, nunca impediram o pintor de atrair um número espantoso de namoradas e amantes. Amor mesmo, segundo seus biógrafos, só teve um: Suzanne Valadon (1867-1938), nascida numa família pobre de Limousin, que trabalhou numa lavanderia e num circo antes de se tornar modelo de Degas, pintora e mãe de outro famoso pintor, Maurice Utrillo.
No obituário do Le Courier Français, em 15 de setembro de 1901, o crítico Jules Roques compara Toulouse-Lautrec a um Quasímodo com “tamanha aversão à humanidade que se dedicou por anos a fio a deformar e fazer caricaturas de seus modelos”. Roques, que reconhecia o talento do artista, ainda que não gostasse dele, cruzara com o pintor um mês antes, no pavilhão d’Armenonville, “olhando a procissão de senhoras vestidas na última moda com certa distância, ausente”.
Os outros obituários não são menos críticos. O pintor é descrito como um louco que escapou do asilo ou como um artista que desperdiçou seu talento em caricaturas obscenas e desenhos grotescos. Seus detratores não esquecem de evocar sua ascendência nobre, um dos últimos condes da elegante família do Château du Bosc, faltando mencionar que seu pai Alphonse (1838-1913) e sua mãe, a condessa Adèle (1841-1930), retratada numa bela tela da mostra, eram primos em primeiro grau, o que poderia ter contribuído para a frágil estrutura das pernas atrofiadas do pintor – há outras teorias científicas que buscaram explicar o nanismo de Toulouse-Lautrec, mas ele não foi o único caso na família.
Pode ser que sua estatura responda pelo olhar contra-plongée que marcou sua produção artística – em especial o pôsteres que provocaram uma revolução gráfica ao “emancipar linha e forma da dependência do modelo real e usar livremente a cor”, como observou o crítico Bernard Denvir, marcando definitivamente a sintaxe publicitária. Nesse aspecto, ele anunciou seis décadas antes o que faria o pop Andy Warhol. Mais: transpôs para a tela a implacável crítica social da literatura de Huysmans (1848-1907). Em ambos os casos, falamos de gigantes espirituais que experimentaram a devastação do corpo.