Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|A idosa de Narayama


Quando falo com jovens e cito um filme, eles me dizem, invariavelmente: “Não é da minha época!”. Curioso: ‘...E o Vento Levou’ é de 1939. Faltavam mais de duas décadas para eu nascer. Vi muitas vezes, inclusive pela televisão

Por Leandro Karnal

Eu tinha aula às sextas-feiras durante a graduação na Unisinos. Quando terminava, íamos ao Cine Brasil, em São Leopoldo (RS). Às 22h30, religiosamente, começava uma Sessão de Arte, com filmes clássicos. Estou falando dos anos 1980.

Havia um outro cinema, o Independência, em geral com películas mais populares e cadeiras menos confortáveis. Os dois cinemas não existem mais como espaço à Sétima Arte. Tornaram-se lojas. Um foi bingo por um tempo, se não me engano.

Volto às sessões de filmes clássicos. No Cine Brasil, acompanhei Akira Kurosawa, Ingmar Bergman, Pier Paolo Pasolini, François Truffaut, Glauber Rocha e tantos outros. Depois, nos anos 1990, já em São Paulo, eu passava em locadoras e levava filmes que queria analisar em sala de aula. Tinha de devolver “rebobinado” o material.

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Jovens de hoje, diante de ‘E o Vento Levou...’, que vi tantas vezes, reagem: ‘Não é da minha época!’ Foto: SELZNICK INTERNATIONAL PICTURES

Quando falo com jovens e cito um filme, eles me dizem, invariavelmente: “Não é da minha época!”. Curioso: ...E o Vento Levou é de 1939. Minha mãe tinha dois anos de idade. Faltavam mais de duas décadas para eu nascer. Vi muitas vezes, inclusive pela televisão. O filme Macunaíma é de 1969, quando eu tinha seis anos de idade. Não o vi no cinema. Assisti a ele já na faculdade. Era baseado em obra fundamental de Mário de Andrade e, à visão da crítica especializada, um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Isso qualificava a obra de Joaquim Pedro de Andrade.

A memória é geracional, claro. Eu comprava cigarrinhos de chocolate da marca Pan. A embalagem era duplamente incorreta: havia a imagem de um menino negro fumando. Indução ao tabagismo e ambiguidade racista. Isso era da minha geração.

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O filme Avatar (James Cameron) foi lançado em 2009. Foram 13 anos até surgir a continuação. Veio há pouco. Na estreia do primeiro, eu era um professor universitário, careca, de 47 anos.

Uma pessoa de 16 anos tinha três e não era alfabetizada. Até aí, podemos comparar: assim como alguém de 16 anos não viu a estreia de Avatar, eu também não vi a estreia do clássico Casablanca, em 1942. A diferença: eu tenho vivo interesse no filme com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Possivelmente, alguém de 16 anos não verá a obra. Não é apenas o tempo: trata-se de uma nova relação com a cronologia.

Um filme de 1942 tem uma narrativa mais lenta. Cada cena dura muito e há ênfase nos diálogos. As expressões faciais das atrizes e dos atores são essenciais; há poucos ou nenhum efeito especial. As explosões são escassas, a câmera fixa-se por muito tempo em um ponto. Não se trata apenas de avaliar olhos jovens e outros com presbiopia, como os meus. É a própria noção de interesse e de fruição do tempo que se alterou. Isso também é válido para longas peças de teatro.

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Uma característica do chamado “filme de arte” é a lentidão narrativa. Há exceções, mas lembro-me de obras lindas, como A Balada de Narayama (1983 – Shohei Imamura, refilmagem de obra de 1958) que acompanha as agruras de uma senhora idosa no Japão. Sim, há uma cena fortíssima dela, quebrando os dentes intencionalmente, todavia a vida na aldeia segue o ritmo do crescimento de um pinheiro.

A velha senhora Orin tem 69 anos e precisa encontrar uma esposa para o filho, antes de ser levada para o alto da montanha, onde deve morrer. O mundo da vila é da escassez de alimentos. Uma pessoa de 70 anos fica inútil, improdutiva, e a lógica de sobrevivência dita que deve ser excluída do grupo. O filme me impressionou com sua reflexão sobre vida e morte. Em um momento de produtividade, só vale o membro jovem e com força. A memória de uma anciã é irrelevante. Sua sabedoria torna-se um incômodo. O tempo na aldeia é lento, mas as bocas têm fome.

Vejo impaciência com pessoas mais velhas por causa da tecnologia. A montanha em Narayama se ampliou. Não levamos mais septuagenários para morrerem devorados por ursos ou lobos. Vamos tornando todos os idosos invisíveis. Já morreram, sem montanha. A crueldade ficou mais sofisticada. O etarismo tornou-se estrutural. A velha senhora japonesa não consegue mais semear coisas e colher. Hoje, pessoas inábeis em editar vídeos já viraram zumbis, mortos-vivos tecnológicos.

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Todos nós estamos ficando obsoletos. O tempo se acelerou e fomos transformados em um filme clássico: mais lentos, poucos efeitos especiais, narrativas suaves. Se o primeiro Avatar já é distante, imagine se você nasceu quando os filmes eram em preto e branco! A obsolescência ficou rápida.

A questão é importante. O que há em alguém de 75 anos que seja vital para nosso tempo? Que práticas e conhecimentos seriam fundamentais para que aprendêssemos com a terceira idade? Se a gente não conseguir responder com clareza a tais questões, faltarão montanhas para que se abandonem os cidadãos brasileiros, cada vez mais idosos. Em Narayama, a resposta era uma. Qual será a nossa? Sua esperança envelheceu? Resta a esperança.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Eu tinha aula às sextas-feiras durante a graduação na Unisinos. Quando terminava, íamos ao Cine Brasil, em São Leopoldo (RS). Às 22h30, religiosamente, começava uma Sessão de Arte, com filmes clássicos. Estou falando dos anos 1980.

Havia um outro cinema, o Independência, em geral com películas mais populares e cadeiras menos confortáveis. Os dois cinemas não existem mais como espaço à Sétima Arte. Tornaram-se lojas. Um foi bingo por um tempo, se não me engano.

Volto às sessões de filmes clássicos. No Cine Brasil, acompanhei Akira Kurosawa, Ingmar Bergman, Pier Paolo Pasolini, François Truffaut, Glauber Rocha e tantos outros. Depois, nos anos 1990, já em São Paulo, eu passava em locadoras e levava filmes que queria analisar em sala de aula. Tinha de devolver “rebobinado” o material.

Jovens de hoje, diante de ‘E o Vento Levou...’, que vi tantas vezes, reagem: ‘Não é da minha época!’ Foto: SELZNICK INTERNATIONAL PICTURES

Quando falo com jovens e cito um filme, eles me dizem, invariavelmente: “Não é da minha época!”. Curioso: ...E o Vento Levou é de 1939. Minha mãe tinha dois anos de idade. Faltavam mais de duas décadas para eu nascer. Vi muitas vezes, inclusive pela televisão. O filme Macunaíma é de 1969, quando eu tinha seis anos de idade. Não o vi no cinema. Assisti a ele já na faculdade. Era baseado em obra fundamental de Mário de Andrade e, à visão da crítica especializada, um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Isso qualificava a obra de Joaquim Pedro de Andrade.

A memória é geracional, claro. Eu comprava cigarrinhos de chocolate da marca Pan. A embalagem era duplamente incorreta: havia a imagem de um menino negro fumando. Indução ao tabagismo e ambiguidade racista. Isso era da minha geração.

O filme Avatar (James Cameron) foi lançado em 2009. Foram 13 anos até surgir a continuação. Veio há pouco. Na estreia do primeiro, eu era um professor universitário, careca, de 47 anos.

Uma pessoa de 16 anos tinha três e não era alfabetizada. Até aí, podemos comparar: assim como alguém de 16 anos não viu a estreia de Avatar, eu também não vi a estreia do clássico Casablanca, em 1942. A diferença: eu tenho vivo interesse no filme com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Possivelmente, alguém de 16 anos não verá a obra. Não é apenas o tempo: trata-se de uma nova relação com a cronologia.

Um filme de 1942 tem uma narrativa mais lenta. Cada cena dura muito e há ênfase nos diálogos. As expressões faciais das atrizes e dos atores são essenciais; há poucos ou nenhum efeito especial. As explosões são escassas, a câmera fixa-se por muito tempo em um ponto. Não se trata apenas de avaliar olhos jovens e outros com presbiopia, como os meus. É a própria noção de interesse e de fruição do tempo que se alterou. Isso também é válido para longas peças de teatro.

Uma característica do chamado “filme de arte” é a lentidão narrativa. Há exceções, mas lembro-me de obras lindas, como A Balada de Narayama (1983 – Shohei Imamura, refilmagem de obra de 1958) que acompanha as agruras de uma senhora idosa no Japão. Sim, há uma cena fortíssima dela, quebrando os dentes intencionalmente, todavia a vida na aldeia segue o ritmo do crescimento de um pinheiro.

A velha senhora Orin tem 69 anos e precisa encontrar uma esposa para o filho, antes de ser levada para o alto da montanha, onde deve morrer. O mundo da vila é da escassez de alimentos. Uma pessoa de 70 anos fica inútil, improdutiva, e a lógica de sobrevivência dita que deve ser excluída do grupo. O filme me impressionou com sua reflexão sobre vida e morte. Em um momento de produtividade, só vale o membro jovem e com força. A memória de uma anciã é irrelevante. Sua sabedoria torna-se um incômodo. O tempo na aldeia é lento, mas as bocas têm fome.

Vejo impaciência com pessoas mais velhas por causa da tecnologia. A montanha em Narayama se ampliou. Não levamos mais septuagenários para morrerem devorados por ursos ou lobos. Vamos tornando todos os idosos invisíveis. Já morreram, sem montanha. A crueldade ficou mais sofisticada. O etarismo tornou-se estrutural. A velha senhora japonesa não consegue mais semear coisas e colher. Hoje, pessoas inábeis em editar vídeos já viraram zumbis, mortos-vivos tecnológicos.

Todos nós estamos ficando obsoletos. O tempo se acelerou e fomos transformados em um filme clássico: mais lentos, poucos efeitos especiais, narrativas suaves. Se o primeiro Avatar já é distante, imagine se você nasceu quando os filmes eram em preto e branco! A obsolescência ficou rápida.

A questão é importante. O que há em alguém de 75 anos que seja vital para nosso tempo? Que práticas e conhecimentos seriam fundamentais para que aprendêssemos com a terceira idade? Se a gente não conseguir responder com clareza a tais questões, faltarão montanhas para que se abandonem os cidadãos brasileiros, cada vez mais idosos. Em Narayama, a resposta era uma. Qual será a nossa? Sua esperança envelheceu? Resta a esperança.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Eu tinha aula às sextas-feiras durante a graduação na Unisinos. Quando terminava, íamos ao Cine Brasil, em São Leopoldo (RS). Às 22h30, religiosamente, começava uma Sessão de Arte, com filmes clássicos. Estou falando dos anos 1980.

Havia um outro cinema, o Independência, em geral com películas mais populares e cadeiras menos confortáveis. Os dois cinemas não existem mais como espaço à Sétima Arte. Tornaram-se lojas. Um foi bingo por um tempo, se não me engano.

Volto às sessões de filmes clássicos. No Cine Brasil, acompanhei Akira Kurosawa, Ingmar Bergman, Pier Paolo Pasolini, François Truffaut, Glauber Rocha e tantos outros. Depois, nos anos 1990, já em São Paulo, eu passava em locadoras e levava filmes que queria analisar em sala de aula. Tinha de devolver “rebobinado” o material.

Jovens de hoje, diante de ‘E o Vento Levou...’, que vi tantas vezes, reagem: ‘Não é da minha época!’ Foto: SELZNICK INTERNATIONAL PICTURES

Quando falo com jovens e cito um filme, eles me dizem, invariavelmente: “Não é da minha época!”. Curioso: ...E o Vento Levou é de 1939. Minha mãe tinha dois anos de idade. Faltavam mais de duas décadas para eu nascer. Vi muitas vezes, inclusive pela televisão. O filme Macunaíma é de 1969, quando eu tinha seis anos de idade. Não o vi no cinema. Assisti a ele já na faculdade. Era baseado em obra fundamental de Mário de Andrade e, à visão da crítica especializada, um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Isso qualificava a obra de Joaquim Pedro de Andrade.

A memória é geracional, claro. Eu comprava cigarrinhos de chocolate da marca Pan. A embalagem era duplamente incorreta: havia a imagem de um menino negro fumando. Indução ao tabagismo e ambiguidade racista. Isso era da minha geração.

O filme Avatar (James Cameron) foi lançado em 2009. Foram 13 anos até surgir a continuação. Veio há pouco. Na estreia do primeiro, eu era um professor universitário, careca, de 47 anos.

Uma pessoa de 16 anos tinha três e não era alfabetizada. Até aí, podemos comparar: assim como alguém de 16 anos não viu a estreia de Avatar, eu também não vi a estreia do clássico Casablanca, em 1942. A diferença: eu tenho vivo interesse no filme com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Possivelmente, alguém de 16 anos não verá a obra. Não é apenas o tempo: trata-se de uma nova relação com a cronologia.

Um filme de 1942 tem uma narrativa mais lenta. Cada cena dura muito e há ênfase nos diálogos. As expressões faciais das atrizes e dos atores são essenciais; há poucos ou nenhum efeito especial. As explosões são escassas, a câmera fixa-se por muito tempo em um ponto. Não se trata apenas de avaliar olhos jovens e outros com presbiopia, como os meus. É a própria noção de interesse e de fruição do tempo que se alterou. Isso também é válido para longas peças de teatro.

Uma característica do chamado “filme de arte” é a lentidão narrativa. Há exceções, mas lembro-me de obras lindas, como A Balada de Narayama (1983 – Shohei Imamura, refilmagem de obra de 1958) que acompanha as agruras de uma senhora idosa no Japão. Sim, há uma cena fortíssima dela, quebrando os dentes intencionalmente, todavia a vida na aldeia segue o ritmo do crescimento de um pinheiro.

A velha senhora Orin tem 69 anos e precisa encontrar uma esposa para o filho, antes de ser levada para o alto da montanha, onde deve morrer. O mundo da vila é da escassez de alimentos. Uma pessoa de 70 anos fica inútil, improdutiva, e a lógica de sobrevivência dita que deve ser excluída do grupo. O filme me impressionou com sua reflexão sobre vida e morte. Em um momento de produtividade, só vale o membro jovem e com força. A memória de uma anciã é irrelevante. Sua sabedoria torna-se um incômodo. O tempo na aldeia é lento, mas as bocas têm fome.

Vejo impaciência com pessoas mais velhas por causa da tecnologia. A montanha em Narayama se ampliou. Não levamos mais septuagenários para morrerem devorados por ursos ou lobos. Vamos tornando todos os idosos invisíveis. Já morreram, sem montanha. A crueldade ficou mais sofisticada. O etarismo tornou-se estrutural. A velha senhora japonesa não consegue mais semear coisas e colher. Hoje, pessoas inábeis em editar vídeos já viraram zumbis, mortos-vivos tecnológicos.

Todos nós estamos ficando obsoletos. O tempo se acelerou e fomos transformados em um filme clássico: mais lentos, poucos efeitos especiais, narrativas suaves. Se o primeiro Avatar já é distante, imagine se você nasceu quando os filmes eram em preto e branco! A obsolescência ficou rápida.

A questão é importante. O que há em alguém de 75 anos que seja vital para nosso tempo? Que práticas e conhecimentos seriam fundamentais para que aprendêssemos com a terceira idade? Se a gente não conseguir responder com clareza a tais questões, faltarão montanhas para que se abandonem os cidadãos brasileiros, cada vez mais idosos. Em Narayama, a resposta era uma. Qual será a nossa? Sua esperança envelheceu? Resta a esperança.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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