Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|A pior pavlova da minha vida


Reclamar talvez seja gostoso por causa da ‘omissão do sujeito’. Quem reclama não se inclui

Por Leandro Karnal

Precisamos pensar sobre o prazer de reclamar. Por que reclamamos tanto? Alguém dirá: “Direito de crítica em uma democracia”. Sim! Manifestação do contraditório, base da justiça! Sim, também! É um dever sagrado de aperfeiçoamento, da perfectibilidade filosófica, insinuada por Aristóteles e declarada por Rousseau. Sim, mais uma vez! Tudo verdadeiro. Há coisas mais sutis que embasam a crítica constante.

Recebi pessoas na minha casa. O bacalhau com natas estava em nível muito alto. Fui muito feliz na seleção de vinhos. Surgiu um tiramisù que parecia restaurar a glória de Veneza. As flores estavam viçosas, a playlist musical foi elogiada, a louça muito bonita. O mais importante: o dia lindo, com pessoas afetivas e alegres! Tudo perfeito? Uma pavlova com frutas vermelhas veio à mesa. Problema? As pequenas frutas tinham uma acidez medonha. Se eu fosse químico, diria que o pH foi entre 2 e 3. Estavam intragáveis. Acontece nas melhores famílias.

Uma das pessoas presentes me disse, dias depois: “E aquela pavlova, hein? Rapaz, parecia ácido de bateria de carro! Foi a pior pavlova da minha vida”. Pensei: ela não teceu nenhum elogio ao bacalhau. Bebeu muito e não notou a excelência enológica. Comeu e repetiu o tiramisù. Mas... notou o fracasso de uma sobremesa.

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Interpreto que a reclamação possa ser uma defesa: tudo estava tão bom que me incomodou. Quando surge um erro, eu o destaco para que, diminuindo o almoço, possa pensar que não sou tão ruim. Também pode ser uma estratégia: elogiar de forma abundante fará a outra pessoa relaxar na próxima. Criticar mantém a tensão produtiva que me favorece. Por fim, a reclamação mostra uma qualidade: sou um indivíduo exigente, sei das coisas; para me agradar, tudo deve ser excelente. Claro, nem tente imaginar como são os almoços na casa do reclamador. Com sorte, apenas uma calda estaria ácida, com muita sorte...

Reclamar talvez seja gostoso por causa da “omissão do sujeito”. Quem reclama não se inclui. “Os brasileiros são atrasados” indica que eu deva me considerar, no mínimo, um europeu, pois usei a terceira pessoa para os brasileiros. A reclamação é um elogio a si: se os políticos são corruptos, eu devo ser um lago sereno e cristalino de ética. Se minha família fala alto, eu sou um poeta a sussurrar docilidades. Se minha sogra é desagradável, eu, por certo, sou um encanto que a todos seduz com doçuras. Reclamar traz dedos reversos, indicando o modelo oculto: eu sou bom.

Pavlova Foto: Photo by Tom McCorkle for The Washington Post; food styling by Lisa Cherkasky for The Washington Post.
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Os filósofos estoicos recomendavam que a gente, antes de reclamar sobre alguém, buscasse reformar nossa vida interior. Existem defeitos alheios, mas temos mais poder sobre os nossos. Emendar-se antes de apontar o dedo acusador. Examinar-se para entrar em harmonia com o universo. Reclamar desviaria o foco que deveria estar em mim.

Já falei (e escrevi) que reclamar é sempre negativo. Criticar tem uma diferença importante: eu quero que o sistema melhore e incluo-me na solução. Quem reclama aponta e condena; o crítico busca o caminho para refazer e pensa em como ele pode colaborar. A reclamação fala do meu fracasso: nada fiz e só sei apontar o que deu errado. A crítica, por sua vez, aponta um caminho produtivo.

Por que escrevo sobre isso? Porque sou alguém observador de falhas. Meu olhar é agudo. Minha percepção costuma ver, primeiramente, o erro. Tenho de me educar sempre para evitar dizer, como primeira manifestação, o que não saiu bem.

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A primeira coisa a ser feita é elogiar o elogiável, por menor que seja. E o que não deu certo? Aí depende... A opinião foi pedida? Trata-se de algo subjetivo, como escolha estética de outra pessoa? Se não foi solicitado, silêncio total. Caso distinto: é algo de caráter profissional que pode nos abalar como equipe ou colocar aquele de quem eu gosto em perigo? Nesse caso, destacar as qualidades, em primeiro lugar, e, só então, envelopar a crítica em sanduíche de três camadas estratégicas: elogio, crítica, elogio. Isso ajuda em ambiente profissional e familiar.

Há pessoas hipersensíveis. Não importa quantos elogios você faça: ficarão muito magoadas. Devemos ter especial cuidado com o momento. É o primeiro livro publicado de alguém? A crítica deve incentivar e, quando muito, se solicitado, indicar pontos para que fique ainda melhor. Ninguém nasce pronto.

Digo tudo isso para mim, pois sou um notório “reclamão”. Foque na sua própria melhoria. Só faça análise sobre falhas se for solicitado. Destaque o positivo sempre. Elogie os esforços de alguém. Sua frase agressiva no trânsito não irá melhorar em nada a circulação de veículos. Gritar “imbecil” não fará um mau motorista tornar-se, subitamente, bom. Ele, agora, seguirá como mau condutor e irritado. A única estratégia produtiva do universo é tentar ser muito bom, levando em conta que os outros podem não estar na mesma vibração de aperfeiçoamento.

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Em resumo: reclamar é um fracasso. É improdutivo. Afeta a esperança de evolução. Escrevo e releio para me convencer. A pavlova, sim, estava horrível. Ponto positivo: não engordei com ela, foi quase inteira para o lixo. Tudo tem um lado bom...

Precisamos pensar sobre o prazer de reclamar. Por que reclamamos tanto? Alguém dirá: “Direito de crítica em uma democracia”. Sim! Manifestação do contraditório, base da justiça! Sim, também! É um dever sagrado de aperfeiçoamento, da perfectibilidade filosófica, insinuada por Aristóteles e declarada por Rousseau. Sim, mais uma vez! Tudo verdadeiro. Há coisas mais sutis que embasam a crítica constante.

Recebi pessoas na minha casa. O bacalhau com natas estava em nível muito alto. Fui muito feliz na seleção de vinhos. Surgiu um tiramisù que parecia restaurar a glória de Veneza. As flores estavam viçosas, a playlist musical foi elogiada, a louça muito bonita. O mais importante: o dia lindo, com pessoas afetivas e alegres! Tudo perfeito? Uma pavlova com frutas vermelhas veio à mesa. Problema? As pequenas frutas tinham uma acidez medonha. Se eu fosse químico, diria que o pH foi entre 2 e 3. Estavam intragáveis. Acontece nas melhores famílias.

Uma das pessoas presentes me disse, dias depois: “E aquela pavlova, hein? Rapaz, parecia ácido de bateria de carro! Foi a pior pavlova da minha vida”. Pensei: ela não teceu nenhum elogio ao bacalhau. Bebeu muito e não notou a excelência enológica. Comeu e repetiu o tiramisù. Mas... notou o fracasso de uma sobremesa.

Interpreto que a reclamação possa ser uma defesa: tudo estava tão bom que me incomodou. Quando surge um erro, eu o destaco para que, diminuindo o almoço, possa pensar que não sou tão ruim. Também pode ser uma estratégia: elogiar de forma abundante fará a outra pessoa relaxar na próxima. Criticar mantém a tensão produtiva que me favorece. Por fim, a reclamação mostra uma qualidade: sou um indivíduo exigente, sei das coisas; para me agradar, tudo deve ser excelente. Claro, nem tente imaginar como são os almoços na casa do reclamador. Com sorte, apenas uma calda estaria ácida, com muita sorte...

Reclamar talvez seja gostoso por causa da “omissão do sujeito”. Quem reclama não se inclui. “Os brasileiros são atrasados” indica que eu deva me considerar, no mínimo, um europeu, pois usei a terceira pessoa para os brasileiros. A reclamação é um elogio a si: se os políticos são corruptos, eu devo ser um lago sereno e cristalino de ética. Se minha família fala alto, eu sou um poeta a sussurrar docilidades. Se minha sogra é desagradável, eu, por certo, sou um encanto que a todos seduz com doçuras. Reclamar traz dedos reversos, indicando o modelo oculto: eu sou bom.

Pavlova Foto: Photo by Tom McCorkle for The Washington Post; food styling by Lisa Cherkasky for The Washington Post.

Os filósofos estoicos recomendavam que a gente, antes de reclamar sobre alguém, buscasse reformar nossa vida interior. Existem defeitos alheios, mas temos mais poder sobre os nossos. Emendar-se antes de apontar o dedo acusador. Examinar-se para entrar em harmonia com o universo. Reclamar desviaria o foco que deveria estar em mim.

Já falei (e escrevi) que reclamar é sempre negativo. Criticar tem uma diferença importante: eu quero que o sistema melhore e incluo-me na solução. Quem reclama aponta e condena; o crítico busca o caminho para refazer e pensa em como ele pode colaborar. A reclamação fala do meu fracasso: nada fiz e só sei apontar o que deu errado. A crítica, por sua vez, aponta um caminho produtivo.

Por que escrevo sobre isso? Porque sou alguém observador de falhas. Meu olhar é agudo. Minha percepção costuma ver, primeiramente, o erro. Tenho de me educar sempre para evitar dizer, como primeira manifestação, o que não saiu bem.

A primeira coisa a ser feita é elogiar o elogiável, por menor que seja. E o que não deu certo? Aí depende... A opinião foi pedida? Trata-se de algo subjetivo, como escolha estética de outra pessoa? Se não foi solicitado, silêncio total. Caso distinto: é algo de caráter profissional que pode nos abalar como equipe ou colocar aquele de quem eu gosto em perigo? Nesse caso, destacar as qualidades, em primeiro lugar, e, só então, envelopar a crítica em sanduíche de três camadas estratégicas: elogio, crítica, elogio. Isso ajuda em ambiente profissional e familiar.

Há pessoas hipersensíveis. Não importa quantos elogios você faça: ficarão muito magoadas. Devemos ter especial cuidado com o momento. É o primeiro livro publicado de alguém? A crítica deve incentivar e, quando muito, se solicitado, indicar pontos para que fique ainda melhor. Ninguém nasce pronto.

Digo tudo isso para mim, pois sou um notório “reclamão”. Foque na sua própria melhoria. Só faça análise sobre falhas se for solicitado. Destaque o positivo sempre. Elogie os esforços de alguém. Sua frase agressiva no trânsito não irá melhorar em nada a circulação de veículos. Gritar “imbecil” não fará um mau motorista tornar-se, subitamente, bom. Ele, agora, seguirá como mau condutor e irritado. A única estratégia produtiva do universo é tentar ser muito bom, levando em conta que os outros podem não estar na mesma vibração de aperfeiçoamento.

Em resumo: reclamar é um fracasso. É improdutivo. Afeta a esperança de evolução. Escrevo e releio para me convencer. A pavlova, sim, estava horrível. Ponto positivo: não engordei com ela, foi quase inteira para o lixo. Tudo tem um lado bom...

Precisamos pensar sobre o prazer de reclamar. Por que reclamamos tanto? Alguém dirá: “Direito de crítica em uma democracia”. Sim! Manifestação do contraditório, base da justiça! Sim, também! É um dever sagrado de aperfeiçoamento, da perfectibilidade filosófica, insinuada por Aristóteles e declarada por Rousseau. Sim, mais uma vez! Tudo verdadeiro. Há coisas mais sutis que embasam a crítica constante.

Recebi pessoas na minha casa. O bacalhau com natas estava em nível muito alto. Fui muito feliz na seleção de vinhos. Surgiu um tiramisù que parecia restaurar a glória de Veneza. As flores estavam viçosas, a playlist musical foi elogiada, a louça muito bonita. O mais importante: o dia lindo, com pessoas afetivas e alegres! Tudo perfeito? Uma pavlova com frutas vermelhas veio à mesa. Problema? As pequenas frutas tinham uma acidez medonha. Se eu fosse químico, diria que o pH foi entre 2 e 3. Estavam intragáveis. Acontece nas melhores famílias.

Uma das pessoas presentes me disse, dias depois: “E aquela pavlova, hein? Rapaz, parecia ácido de bateria de carro! Foi a pior pavlova da minha vida”. Pensei: ela não teceu nenhum elogio ao bacalhau. Bebeu muito e não notou a excelência enológica. Comeu e repetiu o tiramisù. Mas... notou o fracasso de uma sobremesa.

Interpreto que a reclamação possa ser uma defesa: tudo estava tão bom que me incomodou. Quando surge um erro, eu o destaco para que, diminuindo o almoço, possa pensar que não sou tão ruim. Também pode ser uma estratégia: elogiar de forma abundante fará a outra pessoa relaxar na próxima. Criticar mantém a tensão produtiva que me favorece. Por fim, a reclamação mostra uma qualidade: sou um indivíduo exigente, sei das coisas; para me agradar, tudo deve ser excelente. Claro, nem tente imaginar como são os almoços na casa do reclamador. Com sorte, apenas uma calda estaria ácida, com muita sorte...

Reclamar talvez seja gostoso por causa da “omissão do sujeito”. Quem reclama não se inclui. “Os brasileiros são atrasados” indica que eu deva me considerar, no mínimo, um europeu, pois usei a terceira pessoa para os brasileiros. A reclamação é um elogio a si: se os políticos são corruptos, eu devo ser um lago sereno e cristalino de ética. Se minha família fala alto, eu sou um poeta a sussurrar docilidades. Se minha sogra é desagradável, eu, por certo, sou um encanto que a todos seduz com doçuras. Reclamar traz dedos reversos, indicando o modelo oculto: eu sou bom.

Pavlova Foto: Photo by Tom McCorkle for The Washington Post; food styling by Lisa Cherkasky for The Washington Post.

Os filósofos estoicos recomendavam que a gente, antes de reclamar sobre alguém, buscasse reformar nossa vida interior. Existem defeitos alheios, mas temos mais poder sobre os nossos. Emendar-se antes de apontar o dedo acusador. Examinar-se para entrar em harmonia com o universo. Reclamar desviaria o foco que deveria estar em mim.

Já falei (e escrevi) que reclamar é sempre negativo. Criticar tem uma diferença importante: eu quero que o sistema melhore e incluo-me na solução. Quem reclama aponta e condena; o crítico busca o caminho para refazer e pensa em como ele pode colaborar. A reclamação fala do meu fracasso: nada fiz e só sei apontar o que deu errado. A crítica, por sua vez, aponta um caminho produtivo.

Por que escrevo sobre isso? Porque sou alguém observador de falhas. Meu olhar é agudo. Minha percepção costuma ver, primeiramente, o erro. Tenho de me educar sempre para evitar dizer, como primeira manifestação, o que não saiu bem.

A primeira coisa a ser feita é elogiar o elogiável, por menor que seja. E o que não deu certo? Aí depende... A opinião foi pedida? Trata-se de algo subjetivo, como escolha estética de outra pessoa? Se não foi solicitado, silêncio total. Caso distinto: é algo de caráter profissional que pode nos abalar como equipe ou colocar aquele de quem eu gosto em perigo? Nesse caso, destacar as qualidades, em primeiro lugar, e, só então, envelopar a crítica em sanduíche de três camadas estratégicas: elogio, crítica, elogio. Isso ajuda em ambiente profissional e familiar.

Há pessoas hipersensíveis. Não importa quantos elogios você faça: ficarão muito magoadas. Devemos ter especial cuidado com o momento. É o primeiro livro publicado de alguém? A crítica deve incentivar e, quando muito, se solicitado, indicar pontos para que fique ainda melhor. Ninguém nasce pronto.

Digo tudo isso para mim, pois sou um notório “reclamão”. Foque na sua própria melhoria. Só faça análise sobre falhas se for solicitado. Destaque o positivo sempre. Elogie os esforços de alguém. Sua frase agressiva no trânsito não irá melhorar em nada a circulação de veículos. Gritar “imbecil” não fará um mau motorista tornar-se, subitamente, bom. Ele, agora, seguirá como mau condutor e irritado. A única estratégia produtiva do universo é tentar ser muito bom, levando em conta que os outros podem não estar na mesma vibração de aperfeiçoamento.

Em resumo: reclamar é um fracasso. É improdutivo. Afeta a esperança de evolução. Escrevo e releio para me convencer. A pavlova, sim, estava horrível. Ponto positivo: não engordei com ela, foi quase inteira para o lixo. Tudo tem um lado bom...

Precisamos pensar sobre o prazer de reclamar. Por que reclamamos tanto? Alguém dirá: “Direito de crítica em uma democracia”. Sim! Manifestação do contraditório, base da justiça! Sim, também! É um dever sagrado de aperfeiçoamento, da perfectibilidade filosófica, insinuada por Aristóteles e declarada por Rousseau. Sim, mais uma vez! Tudo verdadeiro. Há coisas mais sutis que embasam a crítica constante.

Recebi pessoas na minha casa. O bacalhau com natas estava em nível muito alto. Fui muito feliz na seleção de vinhos. Surgiu um tiramisù que parecia restaurar a glória de Veneza. As flores estavam viçosas, a playlist musical foi elogiada, a louça muito bonita. O mais importante: o dia lindo, com pessoas afetivas e alegres! Tudo perfeito? Uma pavlova com frutas vermelhas veio à mesa. Problema? As pequenas frutas tinham uma acidez medonha. Se eu fosse químico, diria que o pH foi entre 2 e 3. Estavam intragáveis. Acontece nas melhores famílias.

Uma das pessoas presentes me disse, dias depois: “E aquela pavlova, hein? Rapaz, parecia ácido de bateria de carro! Foi a pior pavlova da minha vida”. Pensei: ela não teceu nenhum elogio ao bacalhau. Bebeu muito e não notou a excelência enológica. Comeu e repetiu o tiramisù. Mas... notou o fracasso de uma sobremesa.

Interpreto que a reclamação possa ser uma defesa: tudo estava tão bom que me incomodou. Quando surge um erro, eu o destaco para que, diminuindo o almoço, possa pensar que não sou tão ruim. Também pode ser uma estratégia: elogiar de forma abundante fará a outra pessoa relaxar na próxima. Criticar mantém a tensão produtiva que me favorece. Por fim, a reclamação mostra uma qualidade: sou um indivíduo exigente, sei das coisas; para me agradar, tudo deve ser excelente. Claro, nem tente imaginar como são os almoços na casa do reclamador. Com sorte, apenas uma calda estaria ácida, com muita sorte...

Reclamar talvez seja gostoso por causa da “omissão do sujeito”. Quem reclama não se inclui. “Os brasileiros são atrasados” indica que eu deva me considerar, no mínimo, um europeu, pois usei a terceira pessoa para os brasileiros. A reclamação é um elogio a si: se os políticos são corruptos, eu devo ser um lago sereno e cristalino de ética. Se minha família fala alto, eu sou um poeta a sussurrar docilidades. Se minha sogra é desagradável, eu, por certo, sou um encanto que a todos seduz com doçuras. Reclamar traz dedos reversos, indicando o modelo oculto: eu sou bom.

Pavlova Foto: Photo by Tom McCorkle for The Washington Post; food styling by Lisa Cherkasky for The Washington Post.

Os filósofos estoicos recomendavam que a gente, antes de reclamar sobre alguém, buscasse reformar nossa vida interior. Existem defeitos alheios, mas temos mais poder sobre os nossos. Emendar-se antes de apontar o dedo acusador. Examinar-se para entrar em harmonia com o universo. Reclamar desviaria o foco que deveria estar em mim.

Já falei (e escrevi) que reclamar é sempre negativo. Criticar tem uma diferença importante: eu quero que o sistema melhore e incluo-me na solução. Quem reclama aponta e condena; o crítico busca o caminho para refazer e pensa em como ele pode colaborar. A reclamação fala do meu fracasso: nada fiz e só sei apontar o que deu errado. A crítica, por sua vez, aponta um caminho produtivo.

Por que escrevo sobre isso? Porque sou alguém observador de falhas. Meu olhar é agudo. Minha percepção costuma ver, primeiramente, o erro. Tenho de me educar sempre para evitar dizer, como primeira manifestação, o que não saiu bem.

A primeira coisa a ser feita é elogiar o elogiável, por menor que seja. E o que não deu certo? Aí depende... A opinião foi pedida? Trata-se de algo subjetivo, como escolha estética de outra pessoa? Se não foi solicitado, silêncio total. Caso distinto: é algo de caráter profissional que pode nos abalar como equipe ou colocar aquele de quem eu gosto em perigo? Nesse caso, destacar as qualidades, em primeiro lugar, e, só então, envelopar a crítica em sanduíche de três camadas estratégicas: elogio, crítica, elogio. Isso ajuda em ambiente profissional e familiar.

Há pessoas hipersensíveis. Não importa quantos elogios você faça: ficarão muito magoadas. Devemos ter especial cuidado com o momento. É o primeiro livro publicado de alguém? A crítica deve incentivar e, quando muito, se solicitado, indicar pontos para que fique ainda melhor. Ninguém nasce pronto.

Digo tudo isso para mim, pois sou um notório “reclamão”. Foque na sua própria melhoria. Só faça análise sobre falhas se for solicitado. Destaque o positivo sempre. Elogie os esforços de alguém. Sua frase agressiva no trânsito não irá melhorar em nada a circulação de veículos. Gritar “imbecil” não fará um mau motorista tornar-se, subitamente, bom. Ele, agora, seguirá como mau condutor e irritado. A única estratégia produtiva do universo é tentar ser muito bom, levando em conta que os outros podem não estar na mesma vibração de aperfeiçoamento.

Em resumo: reclamar é um fracasso. É improdutivo. Afeta a esperança de evolução. Escrevo e releio para me convencer. A pavlova, sim, estava horrível. Ponto positivo: não engordei com ela, foi quase inteira para o lixo. Tudo tem um lado bom...

Precisamos pensar sobre o prazer de reclamar. Por que reclamamos tanto? Alguém dirá: “Direito de crítica em uma democracia”. Sim! Manifestação do contraditório, base da justiça! Sim, também! É um dever sagrado de aperfeiçoamento, da perfectibilidade filosófica, insinuada por Aristóteles e declarada por Rousseau. Sim, mais uma vez! Tudo verdadeiro. Há coisas mais sutis que embasam a crítica constante.

Recebi pessoas na minha casa. O bacalhau com natas estava em nível muito alto. Fui muito feliz na seleção de vinhos. Surgiu um tiramisù que parecia restaurar a glória de Veneza. As flores estavam viçosas, a playlist musical foi elogiada, a louça muito bonita. O mais importante: o dia lindo, com pessoas afetivas e alegres! Tudo perfeito? Uma pavlova com frutas vermelhas veio à mesa. Problema? As pequenas frutas tinham uma acidez medonha. Se eu fosse químico, diria que o pH foi entre 2 e 3. Estavam intragáveis. Acontece nas melhores famílias.

Uma das pessoas presentes me disse, dias depois: “E aquela pavlova, hein? Rapaz, parecia ácido de bateria de carro! Foi a pior pavlova da minha vida”. Pensei: ela não teceu nenhum elogio ao bacalhau. Bebeu muito e não notou a excelência enológica. Comeu e repetiu o tiramisù. Mas... notou o fracasso de uma sobremesa.

Interpreto que a reclamação possa ser uma defesa: tudo estava tão bom que me incomodou. Quando surge um erro, eu o destaco para que, diminuindo o almoço, possa pensar que não sou tão ruim. Também pode ser uma estratégia: elogiar de forma abundante fará a outra pessoa relaxar na próxima. Criticar mantém a tensão produtiva que me favorece. Por fim, a reclamação mostra uma qualidade: sou um indivíduo exigente, sei das coisas; para me agradar, tudo deve ser excelente. Claro, nem tente imaginar como são os almoços na casa do reclamador. Com sorte, apenas uma calda estaria ácida, com muita sorte...

Reclamar talvez seja gostoso por causa da “omissão do sujeito”. Quem reclama não se inclui. “Os brasileiros são atrasados” indica que eu deva me considerar, no mínimo, um europeu, pois usei a terceira pessoa para os brasileiros. A reclamação é um elogio a si: se os políticos são corruptos, eu devo ser um lago sereno e cristalino de ética. Se minha família fala alto, eu sou um poeta a sussurrar docilidades. Se minha sogra é desagradável, eu, por certo, sou um encanto que a todos seduz com doçuras. Reclamar traz dedos reversos, indicando o modelo oculto: eu sou bom.

Pavlova Foto: Photo by Tom McCorkle for The Washington Post; food styling by Lisa Cherkasky for The Washington Post.

Os filósofos estoicos recomendavam que a gente, antes de reclamar sobre alguém, buscasse reformar nossa vida interior. Existem defeitos alheios, mas temos mais poder sobre os nossos. Emendar-se antes de apontar o dedo acusador. Examinar-se para entrar em harmonia com o universo. Reclamar desviaria o foco que deveria estar em mim.

Já falei (e escrevi) que reclamar é sempre negativo. Criticar tem uma diferença importante: eu quero que o sistema melhore e incluo-me na solução. Quem reclama aponta e condena; o crítico busca o caminho para refazer e pensa em como ele pode colaborar. A reclamação fala do meu fracasso: nada fiz e só sei apontar o que deu errado. A crítica, por sua vez, aponta um caminho produtivo.

Por que escrevo sobre isso? Porque sou alguém observador de falhas. Meu olhar é agudo. Minha percepção costuma ver, primeiramente, o erro. Tenho de me educar sempre para evitar dizer, como primeira manifestação, o que não saiu bem.

A primeira coisa a ser feita é elogiar o elogiável, por menor que seja. E o que não deu certo? Aí depende... A opinião foi pedida? Trata-se de algo subjetivo, como escolha estética de outra pessoa? Se não foi solicitado, silêncio total. Caso distinto: é algo de caráter profissional que pode nos abalar como equipe ou colocar aquele de quem eu gosto em perigo? Nesse caso, destacar as qualidades, em primeiro lugar, e, só então, envelopar a crítica em sanduíche de três camadas estratégicas: elogio, crítica, elogio. Isso ajuda em ambiente profissional e familiar.

Há pessoas hipersensíveis. Não importa quantos elogios você faça: ficarão muito magoadas. Devemos ter especial cuidado com o momento. É o primeiro livro publicado de alguém? A crítica deve incentivar e, quando muito, se solicitado, indicar pontos para que fique ainda melhor. Ninguém nasce pronto.

Digo tudo isso para mim, pois sou um notório “reclamão”. Foque na sua própria melhoria. Só faça análise sobre falhas se for solicitado. Destaque o positivo sempre. Elogie os esforços de alguém. Sua frase agressiva no trânsito não irá melhorar em nada a circulação de veículos. Gritar “imbecil” não fará um mau motorista tornar-se, subitamente, bom. Ele, agora, seguirá como mau condutor e irritado. A única estratégia produtiva do universo é tentar ser muito bom, levando em conta que os outros podem não estar na mesma vibração de aperfeiçoamento.

Em resumo: reclamar é um fracasso. É improdutivo. Afeta a esperança de evolução. Escrevo e releio para me convencer. A pavlova, sim, estava horrível. Ponto positivo: não engordei com ela, foi quase inteira para o lixo. Tudo tem um lado bom...

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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