Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|A rebeldia que aprovo: a história é feita por insurgentes, heróis de um grupo e monstros de outro


Imagine os alunos em fila, silenciosos, atentos à hierarquia e disciplinados, lendo sobre Napoleão, Joana D’Arc e Maria Quitéria. No mundo contemporâneo, queremos que as pessoas tenham como modelo os rebeldes corretos. Quem são eles?

Por Leandro Karnal

Você é rebelde? A resposta indica algo positivo ou negativo, dependendo da época. Pode ser virtude ou defeito. Um “filho rebelde” ou um “aluno rebelde” geram comentários negativos, em geral de pais e de professores. A insolência pode ser um gesto libertador se o sistema for considerado opressivo.

Alexandre, ao invadir o secular Império Persa; Júlio César, ao atravessar o proibido Rio Rubicão; Lutero, ao questionar a autoridade e a tradição; D. Pedro I, ao romper com o governo português; Freud, ao dar explicações contrárias ao senso comum: todos foram rebeldes celebrados e comemorados até hoje. Quase toda história é feita por insurgentes e, muitas vezes, era matéria dada a turmas das quais se esperavam apenas ordem e disciplina. Contraditório, não é?

Imagine os alunos em fila, silenciosos, atentos à hierarquia e disciplinados, lendo sobre Napoleão, o homem dos golpes e das rupturas? Moças comportadas, em bons colégios religiosos, estudando Joana D’Arc, Maria Quitéria ou outros modelos de insurgência feminina? Um curso universitário formal e disciplinado ensinando sobre empreendedorismo? Não existe um líder, inclusive religioso, que não foi contra um modelo.

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Imagine os alunos em fila, silenciosos, atentos à hierarquia e disciplinados, lendo sobre Napoleão, Joana D’Arc e Maria Quitéria. (Imagem ilustrativa). Foto: NICKTSUGULIEV / Adobe Stock

Moisés, o homem da Lei, antes de receber os mandamentos, casou-se com uma mulher fora da comunidade dos hebreus: Zípora (também grafado como Séfora), que foi filha de um líder do deserto. Há fontes divergentes, mas, conforme lemos em Números 12 uma murmuração dentro da família de Moisés contra sua esposa (que pode ser outra ou a mesma Zípora), temos a ideia de uma mulher negra ao lado do reformador. Assim Moisés aparece em algumas imagens, como no quadro de Jacob Jordaens: Moisés e Sua Esposa Etíope. A consorte negra e a filha de uma tribo do Sinai seriam a mesma pessoa? Irrelevante para nossa argumentação, mas o importante aqui é que, nos dois casos, houve uma liberdade rebelde na escolha de Moisés.

Moisés, Jesus, Maomé: todos criticaram uma situação e ajudaram a criar outra. A seus modos proféticos, lideraram uma revolta. Podem ter comandado tropas, como Maomé, ou apenas falado contra a iniquidade dos líderes da época, como Jesus, mas foram rebeldes. Seus seguidores, judeus, cristãos e muçulmanos, nasceram de uma ruptura inspirada diretamente por Deus.

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No mundo contemporâneo, queremos que as pessoas tenham como modelo os rebeldes corretos. São duas as características: ele defende a mesma causa na qual eu acredito e, acima de tudo, o tempo já esterilizou seu conteúdo mais agressivo. Exemplo? Rebeldes contra a oligarquia que fizeram as revoltas tenentistas, como a dos 18 do Forte, são nomes de rua e celebrados com estátuas. Rebeldes contra outros valores que fizeram a Intentona Comunista, de 1935, são demonizados por conservadores.

Já ouço o coro gritando: “Mas a Intentona teve mortes, traíram superiores, mataram, etc... etc”. Sim... e isso impediria quase todo rebelde militar de ser louvado hoje. A adversativa destacada, mas, introduz o meu universo de valores. Garibaldi é herói; Luiz Carlos Prestes, um comunista traiçoeiro; Calvino pode ser um bom líder ou herege total, dependendo de quem enuncia o “mas”. Por fim, Che Guevara torna-se uma inspiração ou um monstro sanguinário. O “mas” define sua posição e fala pouco do “rebelde” em questão. O filme Diários de Motocicleta (2004, Walter Salles) torna o guerrilheiro argentino um inspirado romântico em luta contra as injustiças. Nas conversas da família Bolsonaro, Che deve ter outra feição, imagino.

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Gael García Bernal no filme 'Diários de Motocicleta', de Walter Salles. Foto: Focus Features/Divulgação

Não tem jeito: seu rebelde herói é o monstro de outro grupo. Solano López é um tirano ou um libertador, dependendo do lado da fronteira onde você estiver: Brasil ou Paraguai. Alexandre Magno é ainda citado como uma espécie de bicho-papão entre afegãos. Um invasor violento! Tropas nazistas foram saudadas na Ucrânia porque, para alguns, libertariam o país da tirania stalinista. Cristóvão Colombo tem estátuas, avenidas e até seu dia. Indigenistas consideram o genovês o pioneiro do genocídio das Américas. Hipátia de Alexandria era uma brilhante matemática e astrônoma, porém pagã. Ela foi atacada e barbaramente assassinada por cristãos. Heroína?

Não é relativismo moral. Evidencio memórias históricas e de rebeldia. Alguém obediente dá pouco trabalho a pais e professores. Prefiro conviver com vizinhos dóceis às regras do condomínio, silenciosos, submissos às decisões da assembleia e com a formalidade da boa educação ao cumprimentarem-se à porta do elevador. No entanto, reconheço que as mudanças históricas raramente são originadas pela civilidade do bom vizinho.

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Amo a rebeldia nos livros de história e nos grandes processos revolucionários. Valorizo a quebra de regras ao estudar o artista do passado que desmontou sistemas, como Picasso ou Duchamp. Que maravilha ler sobre aqueles homens e mulheres rompedores de todas as barreiras. Nem sempre desejo que estejam na minha sala de aula, no avião em que estou ou no prédio que habito. Viva a rebeldia? Sim, com esperança de que não atrapalhe muito nem se sente ao meu lado...

Você é rebelde? A resposta indica algo positivo ou negativo, dependendo da época. Pode ser virtude ou defeito. Um “filho rebelde” ou um “aluno rebelde” geram comentários negativos, em geral de pais e de professores. A insolência pode ser um gesto libertador se o sistema for considerado opressivo.

Alexandre, ao invadir o secular Império Persa; Júlio César, ao atravessar o proibido Rio Rubicão; Lutero, ao questionar a autoridade e a tradição; D. Pedro I, ao romper com o governo português; Freud, ao dar explicações contrárias ao senso comum: todos foram rebeldes celebrados e comemorados até hoje. Quase toda história é feita por insurgentes e, muitas vezes, era matéria dada a turmas das quais se esperavam apenas ordem e disciplina. Contraditório, não é?

Imagine os alunos em fila, silenciosos, atentos à hierarquia e disciplinados, lendo sobre Napoleão, o homem dos golpes e das rupturas? Moças comportadas, em bons colégios religiosos, estudando Joana D’Arc, Maria Quitéria ou outros modelos de insurgência feminina? Um curso universitário formal e disciplinado ensinando sobre empreendedorismo? Não existe um líder, inclusive religioso, que não foi contra um modelo.

Imagine os alunos em fila, silenciosos, atentos à hierarquia e disciplinados, lendo sobre Napoleão, Joana D’Arc e Maria Quitéria. (Imagem ilustrativa). Foto: NICKTSUGULIEV / Adobe Stock

Moisés, o homem da Lei, antes de receber os mandamentos, casou-se com uma mulher fora da comunidade dos hebreus: Zípora (também grafado como Séfora), que foi filha de um líder do deserto. Há fontes divergentes, mas, conforme lemos em Números 12 uma murmuração dentro da família de Moisés contra sua esposa (que pode ser outra ou a mesma Zípora), temos a ideia de uma mulher negra ao lado do reformador. Assim Moisés aparece em algumas imagens, como no quadro de Jacob Jordaens: Moisés e Sua Esposa Etíope. A consorte negra e a filha de uma tribo do Sinai seriam a mesma pessoa? Irrelevante para nossa argumentação, mas o importante aqui é que, nos dois casos, houve uma liberdade rebelde na escolha de Moisés.

Moisés, Jesus, Maomé: todos criticaram uma situação e ajudaram a criar outra. A seus modos proféticos, lideraram uma revolta. Podem ter comandado tropas, como Maomé, ou apenas falado contra a iniquidade dos líderes da época, como Jesus, mas foram rebeldes. Seus seguidores, judeus, cristãos e muçulmanos, nasceram de uma ruptura inspirada diretamente por Deus.

No mundo contemporâneo, queremos que as pessoas tenham como modelo os rebeldes corretos. São duas as características: ele defende a mesma causa na qual eu acredito e, acima de tudo, o tempo já esterilizou seu conteúdo mais agressivo. Exemplo? Rebeldes contra a oligarquia que fizeram as revoltas tenentistas, como a dos 18 do Forte, são nomes de rua e celebrados com estátuas. Rebeldes contra outros valores que fizeram a Intentona Comunista, de 1935, são demonizados por conservadores.

Já ouço o coro gritando: “Mas a Intentona teve mortes, traíram superiores, mataram, etc... etc”. Sim... e isso impediria quase todo rebelde militar de ser louvado hoje. A adversativa destacada, mas, introduz o meu universo de valores. Garibaldi é herói; Luiz Carlos Prestes, um comunista traiçoeiro; Calvino pode ser um bom líder ou herege total, dependendo de quem enuncia o “mas”. Por fim, Che Guevara torna-se uma inspiração ou um monstro sanguinário. O “mas” define sua posição e fala pouco do “rebelde” em questão. O filme Diários de Motocicleta (2004, Walter Salles) torna o guerrilheiro argentino um inspirado romântico em luta contra as injustiças. Nas conversas da família Bolsonaro, Che deve ter outra feição, imagino.

Gael García Bernal no filme 'Diários de Motocicleta', de Walter Salles. Foto: Focus Features/Divulgação

Não tem jeito: seu rebelde herói é o monstro de outro grupo. Solano López é um tirano ou um libertador, dependendo do lado da fronteira onde você estiver: Brasil ou Paraguai. Alexandre Magno é ainda citado como uma espécie de bicho-papão entre afegãos. Um invasor violento! Tropas nazistas foram saudadas na Ucrânia porque, para alguns, libertariam o país da tirania stalinista. Cristóvão Colombo tem estátuas, avenidas e até seu dia. Indigenistas consideram o genovês o pioneiro do genocídio das Américas. Hipátia de Alexandria era uma brilhante matemática e astrônoma, porém pagã. Ela foi atacada e barbaramente assassinada por cristãos. Heroína?

Não é relativismo moral. Evidencio memórias históricas e de rebeldia. Alguém obediente dá pouco trabalho a pais e professores. Prefiro conviver com vizinhos dóceis às regras do condomínio, silenciosos, submissos às decisões da assembleia e com a formalidade da boa educação ao cumprimentarem-se à porta do elevador. No entanto, reconheço que as mudanças históricas raramente são originadas pela civilidade do bom vizinho.

Amo a rebeldia nos livros de história e nos grandes processos revolucionários. Valorizo a quebra de regras ao estudar o artista do passado que desmontou sistemas, como Picasso ou Duchamp. Que maravilha ler sobre aqueles homens e mulheres rompedores de todas as barreiras. Nem sempre desejo que estejam na minha sala de aula, no avião em que estou ou no prédio que habito. Viva a rebeldia? Sim, com esperança de que não atrapalhe muito nem se sente ao meu lado...

Você é rebelde? A resposta indica algo positivo ou negativo, dependendo da época. Pode ser virtude ou defeito. Um “filho rebelde” ou um “aluno rebelde” geram comentários negativos, em geral de pais e de professores. A insolência pode ser um gesto libertador se o sistema for considerado opressivo.

Alexandre, ao invadir o secular Império Persa; Júlio César, ao atravessar o proibido Rio Rubicão; Lutero, ao questionar a autoridade e a tradição; D. Pedro I, ao romper com o governo português; Freud, ao dar explicações contrárias ao senso comum: todos foram rebeldes celebrados e comemorados até hoje. Quase toda história é feita por insurgentes e, muitas vezes, era matéria dada a turmas das quais se esperavam apenas ordem e disciplina. Contraditório, não é?

Imagine os alunos em fila, silenciosos, atentos à hierarquia e disciplinados, lendo sobre Napoleão, o homem dos golpes e das rupturas? Moças comportadas, em bons colégios religiosos, estudando Joana D’Arc, Maria Quitéria ou outros modelos de insurgência feminina? Um curso universitário formal e disciplinado ensinando sobre empreendedorismo? Não existe um líder, inclusive religioso, que não foi contra um modelo.

Imagine os alunos em fila, silenciosos, atentos à hierarquia e disciplinados, lendo sobre Napoleão, Joana D’Arc e Maria Quitéria. (Imagem ilustrativa). Foto: NICKTSUGULIEV / Adobe Stock

Moisés, o homem da Lei, antes de receber os mandamentos, casou-se com uma mulher fora da comunidade dos hebreus: Zípora (também grafado como Séfora), que foi filha de um líder do deserto. Há fontes divergentes, mas, conforme lemos em Números 12 uma murmuração dentro da família de Moisés contra sua esposa (que pode ser outra ou a mesma Zípora), temos a ideia de uma mulher negra ao lado do reformador. Assim Moisés aparece em algumas imagens, como no quadro de Jacob Jordaens: Moisés e Sua Esposa Etíope. A consorte negra e a filha de uma tribo do Sinai seriam a mesma pessoa? Irrelevante para nossa argumentação, mas o importante aqui é que, nos dois casos, houve uma liberdade rebelde na escolha de Moisés.

Moisés, Jesus, Maomé: todos criticaram uma situação e ajudaram a criar outra. A seus modos proféticos, lideraram uma revolta. Podem ter comandado tropas, como Maomé, ou apenas falado contra a iniquidade dos líderes da época, como Jesus, mas foram rebeldes. Seus seguidores, judeus, cristãos e muçulmanos, nasceram de uma ruptura inspirada diretamente por Deus.

No mundo contemporâneo, queremos que as pessoas tenham como modelo os rebeldes corretos. São duas as características: ele defende a mesma causa na qual eu acredito e, acima de tudo, o tempo já esterilizou seu conteúdo mais agressivo. Exemplo? Rebeldes contra a oligarquia que fizeram as revoltas tenentistas, como a dos 18 do Forte, são nomes de rua e celebrados com estátuas. Rebeldes contra outros valores que fizeram a Intentona Comunista, de 1935, são demonizados por conservadores.

Já ouço o coro gritando: “Mas a Intentona teve mortes, traíram superiores, mataram, etc... etc”. Sim... e isso impediria quase todo rebelde militar de ser louvado hoje. A adversativa destacada, mas, introduz o meu universo de valores. Garibaldi é herói; Luiz Carlos Prestes, um comunista traiçoeiro; Calvino pode ser um bom líder ou herege total, dependendo de quem enuncia o “mas”. Por fim, Che Guevara torna-se uma inspiração ou um monstro sanguinário. O “mas” define sua posição e fala pouco do “rebelde” em questão. O filme Diários de Motocicleta (2004, Walter Salles) torna o guerrilheiro argentino um inspirado romântico em luta contra as injustiças. Nas conversas da família Bolsonaro, Che deve ter outra feição, imagino.

Gael García Bernal no filme 'Diários de Motocicleta', de Walter Salles. Foto: Focus Features/Divulgação

Não tem jeito: seu rebelde herói é o monstro de outro grupo. Solano López é um tirano ou um libertador, dependendo do lado da fronteira onde você estiver: Brasil ou Paraguai. Alexandre Magno é ainda citado como uma espécie de bicho-papão entre afegãos. Um invasor violento! Tropas nazistas foram saudadas na Ucrânia porque, para alguns, libertariam o país da tirania stalinista. Cristóvão Colombo tem estátuas, avenidas e até seu dia. Indigenistas consideram o genovês o pioneiro do genocídio das Américas. Hipátia de Alexandria era uma brilhante matemática e astrônoma, porém pagã. Ela foi atacada e barbaramente assassinada por cristãos. Heroína?

Não é relativismo moral. Evidencio memórias históricas e de rebeldia. Alguém obediente dá pouco trabalho a pais e professores. Prefiro conviver com vizinhos dóceis às regras do condomínio, silenciosos, submissos às decisões da assembleia e com a formalidade da boa educação ao cumprimentarem-se à porta do elevador. No entanto, reconheço que as mudanças históricas raramente são originadas pela civilidade do bom vizinho.

Amo a rebeldia nos livros de história e nos grandes processos revolucionários. Valorizo a quebra de regras ao estudar o artista do passado que desmontou sistemas, como Picasso ou Duchamp. Que maravilha ler sobre aqueles homens e mulheres rompedores de todas as barreiras. Nem sempre desejo que estejam na minha sala de aula, no avião em que estou ou no prédio que habito. Viva a rebeldia? Sim, com esperança de que não atrapalhe muito nem se sente ao meu lado...

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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