Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|A trajetória de João Carlos Martins alimenta a nossa esperança na vida


Músico tocou em todas as salas importantes do mundo, ao lado das melhores orquestras e dos mais renomados regentes. Nosso pianista conheceu o século 20 ao vivo!

Por Leandro Karnal

Os brasileiros o reconhecem na rua e o tratam como uma celebridade. Fui testemunha disso. Não apenas o público consumidor de música erudita, mas pessoas de todas as origens e identidades. Andamos pelo Largo do Arouche, em São Paulo, e o guardador de carros veio tirar uma foto com ele. No aeroporto de Confins (MG), onde estivemos retidos por horas, aguardando um voo para São Paulo, houve até certa histeria para algum registro. Falo do pianista e maestro João Carlos Martins.

No dia 4 de junho de 2024, na Sala São Paulo, houve o lançamento do livro de Jamil Chade: O Indomável – João Carlos Martins entre Som e Silêncio (ed. Record). Ali, tive o privilégio de fazer uma breve alocução. Carla Camurati leu dois trechos lindos da biografia. João tocou e regeu de forma inesquecível a Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi. Jamil Chade surpreendeu na flauta, com a peça de Villa-Lobos. Foi uma noite emocionante. Eis pequenos trechos do meu discurso naquela terça-feira memorável:

João Carlos Martins em desfile da Vai-Vai no sambódromo do Anhembi Foto: Taba Benedicto/Estadão
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“O talento é um mistério. Ele implica técnica. A destreza é treinável em muita gente. Bem mais raro é o fogo único, a centelha imponderável que separa o correto do extraordinário. (...) O que dizer a um homem que enfrentou quase tudo na vida – do triunfo absoluto à dor física excruciante, da glória à fogueira da vida pública?

Falemos da glória além da imaginação. João Carlos Martins tocou em todas as salas importantes do mundo, ao lado das melhores orquestras e dos mais renomados regentes. Nosso pianista conheceu o século 20 ao vivo! Um episódio na China foi simbólico: a casaca do artista foi alvo de fãs que recortaram pedaços da roupa como a relíquia de um santo. A vestimenta formal foi despedaçada ao vivo, como em um rito elegíaco de comunhão. O governo chinês mandou fazer outro traje para compensar o tsunami de entusiasmo asiático.

Sobre o êxito de décadas, nada mais há a dizer, apenas contemplar esta sala magnífica lotada e sentir a emoção de uma noite que reúne tanta gente em torno de um bachiano notável. A obra de João Carlos Martins pode ser comprovada por amigos, fãs, jovens que ele incentivou e um público sedento da sua arte. Olhemos ao nosso redor este momento fáustico: eis a prova de uma vida única.

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Sintetizo de outra forma. Bach viveu com sua numerosa família sem nunca ter viajado para longe. Seu contemporâneo, Haendel, percorreu mais terras e está enterrado em Westminster, em Londres. O túmulo do autor do oratório Messias está acima do de Dickens e do de Kipling, na renomada abadia. A inscrição é muito forte: Superata tellus, siderat donat. A ideia sai das Consolações que o filósofo Boécio escreveu na prisão. É a chave de toda arte, o objetivo de toda cultura: superar a matéria e criar as estrelas. Dominando o imanente, abrir-se ao transcendente. Rasgando o ‘véu de Maya’, ressignificar a máquina do mundo em seu mecanismo mais íntimo. Superando a dor, redimir a música. Bach ficou cego, Beethoven, surdo. João Carlos Martins sentiu sua mão curvar-se em ângulos dolorosos. A mão material se opunha ao comando da consciência. Superata tellus, siderat donat. Estamos diante de uma jornada de superação e redenção. Ostra feliz não produz pérola! Da areia dolorosa trazida pelo destino, brotaram joias únicas”.

Contei ao público que, em 1981, eu tinha 18 anos; João, 40. Conheci, então, o disco do encontro original de Bach e Chopin que ele fez com Arthur Moreira Lima. Ao ouvir as mesmas peças que eu estava estudando no Cravo Bem Temperado, entendi que eu seria um bom historiador, mas nunca um pianista. Eu tinha captado o que separa o “correto” (eu) do “extraordinário” (João). Eu tocava bem, com metrônomo e clareza. Eu reproduzia as notas escritas; João interpretava o oceano chamado Bach...

Feitos os discursos e a música, o maestro agradeceu, emocionado. Celebrou apoios, como o do Sesi e o do Bradesco. Disse que fará, como regente, uma apresentação de encerramento, no Carnegie Hall, em Nova York, em 2025, no ano do seu 85.º aniversário. Mais: disse que retomará a carreira de pianista, explorando o repertório de peças para a mão esquerda.

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Nunca ficaram tão válidas as palavras de Washington Olivetto na contracapa da biografia: “Nesses seus primeiros 80 anos, João Carlos Martins foi de menino prodígio a adulto prodigioso. Foi do clássico ao popular, de Bach a Bethânia. Se manteve sempre allegro e andante, mas nada moderato. Tocou a vida muito bem e, algumas vezes, desafinou o coro dos contentes. Essa biografia só tem um defeito. Breve estará desatualizada porque certamente o maestro já terá arranjado mais uma das suas. Esse maestro não tem conserto”.

Em resumo, para alimentar nossa esperança na vida: vale a pena ler o livro de Jamil Chade sobre João Carlos Martins. Naquela noite, eu pensei no disco de vinil, de 1981, e na sobrevivência do talento e da arte. Viva Johann Sebastian Bach! Viva a música! Viva João Carlos Martins!

Os brasileiros o reconhecem na rua e o tratam como uma celebridade. Fui testemunha disso. Não apenas o público consumidor de música erudita, mas pessoas de todas as origens e identidades. Andamos pelo Largo do Arouche, em São Paulo, e o guardador de carros veio tirar uma foto com ele. No aeroporto de Confins (MG), onde estivemos retidos por horas, aguardando um voo para São Paulo, houve até certa histeria para algum registro. Falo do pianista e maestro João Carlos Martins.

No dia 4 de junho de 2024, na Sala São Paulo, houve o lançamento do livro de Jamil Chade: O Indomável – João Carlos Martins entre Som e Silêncio (ed. Record). Ali, tive o privilégio de fazer uma breve alocução. Carla Camurati leu dois trechos lindos da biografia. João tocou e regeu de forma inesquecível a Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi. Jamil Chade surpreendeu na flauta, com a peça de Villa-Lobos. Foi uma noite emocionante. Eis pequenos trechos do meu discurso naquela terça-feira memorável:

João Carlos Martins em desfile da Vai-Vai no sambódromo do Anhembi Foto: Taba Benedicto/Estadão

“O talento é um mistério. Ele implica técnica. A destreza é treinável em muita gente. Bem mais raro é o fogo único, a centelha imponderável que separa o correto do extraordinário. (...) O que dizer a um homem que enfrentou quase tudo na vida – do triunfo absoluto à dor física excruciante, da glória à fogueira da vida pública?

Falemos da glória além da imaginação. João Carlos Martins tocou em todas as salas importantes do mundo, ao lado das melhores orquestras e dos mais renomados regentes. Nosso pianista conheceu o século 20 ao vivo! Um episódio na China foi simbólico: a casaca do artista foi alvo de fãs que recortaram pedaços da roupa como a relíquia de um santo. A vestimenta formal foi despedaçada ao vivo, como em um rito elegíaco de comunhão. O governo chinês mandou fazer outro traje para compensar o tsunami de entusiasmo asiático.

Sobre o êxito de décadas, nada mais há a dizer, apenas contemplar esta sala magnífica lotada e sentir a emoção de uma noite que reúne tanta gente em torno de um bachiano notável. A obra de João Carlos Martins pode ser comprovada por amigos, fãs, jovens que ele incentivou e um público sedento da sua arte. Olhemos ao nosso redor este momento fáustico: eis a prova de uma vida única.

Sintetizo de outra forma. Bach viveu com sua numerosa família sem nunca ter viajado para longe. Seu contemporâneo, Haendel, percorreu mais terras e está enterrado em Westminster, em Londres. O túmulo do autor do oratório Messias está acima do de Dickens e do de Kipling, na renomada abadia. A inscrição é muito forte: Superata tellus, siderat donat. A ideia sai das Consolações que o filósofo Boécio escreveu na prisão. É a chave de toda arte, o objetivo de toda cultura: superar a matéria e criar as estrelas. Dominando o imanente, abrir-se ao transcendente. Rasgando o ‘véu de Maya’, ressignificar a máquina do mundo em seu mecanismo mais íntimo. Superando a dor, redimir a música. Bach ficou cego, Beethoven, surdo. João Carlos Martins sentiu sua mão curvar-se em ângulos dolorosos. A mão material se opunha ao comando da consciência. Superata tellus, siderat donat. Estamos diante de uma jornada de superação e redenção. Ostra feliz não produz pérola! Da areia dolorosa trazida pelo destino, brotaram joias únicas”.

Contei ao público que, em 1981, eu tinha 18 anos; João, 40. Conheci, então, o disco do encontro original de Bach e Chopin que ele fez com Arthur Moreira Lima. Ao ouvir as mesmas peças que eu estava estudando no Cravo Bem Temperado, entendi que eu seria um bom historiador, mas nunca um pianista. Eu tinha captado o que separa o “correto” (eu) do “extraordinário” (João). Eu tocava bem, com metrônomo e clareza. Eu reproduzia as notas escritas; João interpretava o oceano chamado Bach...

Feitos os discursos e a música, o maestro agradeceu, emocionado. Celebrou apoios, como o do Sesi e o do Bradesco. Disse que fará, como regente, uma apresentação de encerramento, no Carnegie Hall, em Nova York, em 2025, no ano do seu 85.º aniversário. Mais: disse que retomará a carreira de pianista, explorando o repertório de peças para a mão esquerda.

Nunca ficaram tão válidas as palavras de Washington Olivetto na contracapa da biografia: “Nesses seus primeiros 80 anos, João Carlos Martins foi de menino prodígio a adulto prodigioso. Foi do clássico ao popular, de Bach a Bethânia. Se manteve sempre allegro e andante, mas nada moderato. Tocou a vida muito bem e, algumas vezes, desafinou o coro dos contentes. Essa biografia só tem um defeito. Breve estará desatualizada porque certamente o maestro já terá arranjado mais uma das suas. Esse maestro não tem conserto”.

Em resumo, para alimentar nossa esperança na vida: vale a pena ler o livro de Jamil Chade sobre João Carlos Martins. Naquela noite, eu pensei no disco de vinil, de 1981, e na sobrevivência do talento e da arte. Viva Johann Sebastian Bach! Viva a música! Viva João Carlos Martins!

Os brasileiros o reconhecem na rua e o tratam como uma celebridade. Fui testemunha disso. Não apenas o público consumidor de música erudita, mas pessoas de todas as origens e identidades. Andamos pelo Largo do Arouche, em São Paulo, e o guardador de carros veio tirar uma foto com ele. No aeroporto de Confins (MG), onde estivemos retidos por horas, aguardando um voo para São Paulo, houve até certa histeria para algum registro. Falo do pianista e maestro João Carlos Martins.

No dia 4 de junho de 2024, na Sala São Paulo, houve o lançamento do livro de Jamil Chade: O Indomável – João Carlos Martins entre Som e Silêncio (ed. Record). Ali, tive o privilégio de fazer uma breve alocução. Carla Camurati leu dois trechos lindos da biografia. João tocou e regeu de forma inesquecível a Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi. Jamil Chade surpreendeu na flauta, com a peça de Villa-Lobos. Foi uma noite emocionante. Eis pequenos trechos do meu discurso naquela terça-feira memorável:

João Carlos Martins em desfile da Vai-Vai no sambódromo do Anhembi Foto: Taba Benedicto/Estadão

“O talento é um mistério. Ele implica técnica. A destreza é treinável em muita gente. Bem mais raro é o fogo único, a centelha imponderável que separa o correto do extraordinário. (...) O que dizer a um homem que enfrentou quase tudo na vida – do triunfo absoluto à dor física excruciante, da glória à fogueira da vida pública?

Falemos da glória além da imaginação. João Carlos Martins tocou em todas as salas importantes do mundo, ao lado das melhores orquestras e dos mais renomados regentes. Nosso pianista conheceu o século 20 ao vivo! Um episódio na China foi simbólico: a casaca do artista foi alvo de fãs que recortaram pedaços da roupa como a relíquia de um santo. A vestimenta formal foi despedaçada ao vivo, como em um rito elegíaco de comunhão. O governo chinês mandou fazer outro traje para compensar o tsunami de entusiasmo asiático.

Sobre o êxito de décadas, nada mais há a dizer, apenas contemplar esta sala magnífica lotada e sentir a emoção de uma noite que reúne tanta gente em torno de um bachiano notável. A obra de João Carlos Martins pode ser comprovada por amigos, fãs, jovens que ele incentivou e um público sedento da sua arte. Olhemos ao nosso redor este momento fáustico: eis a prova de uma vida única.

Sintetizo de outra forma. Bach viveu com sua numerosa família sem nunca ter viajado para longe. Seu contemporâneo, Haendel, percorreu mais terras e está enterrado em Westminster, em Londres. O túmulo do autor do oratório Messias está acima do de Dickens e do de Kipling, na renomada abadia. A inscrição é muito forte: Superata tellus, siderat donat. A ideia sai das Consolações que o filósofo Boécio escreveu na prisão. É a chave de toda arte, o objetivo de toda cultura: superar a matéria e criar as estrelas. Dominando o imanente, abrir-se ao transcendente. Rasgando o ‘véu de Maya’, ressignificar a máquina do mundo em seu mecanismo mais íntimo. Superando a dor, redimir a música. Bach ficou cego, Beethoven, surdo. João Carlos Martins sentiu sua mão curvar-se em ângulos dolorosos. A mão material se opunha ao comando da consciência. Superata tellus, siderat donat. Estamos diante de uma jornada de superação e redenção. Ostra feliz não produz pérola! Da areia dolorosa trazida pelo destino, brotaram joias únicas”.

Contei ao público que, em 1981, eu tinha 18 anos; João, 40. Conheci, então, o disco do encontro original de Bach e Chopin que ele fez com Arthur Moreira Lima. Ao ouvir as mesmas peças que eu estava estudando no Cravo Bem Temperado, entendi que eu seria um bom historiador, mas nunca um pianista. Eu tinha captado o que separa o “correto” (eu) do “extraordinário” (João). Eu tocava bem, com metrônomo e clareza. Eu reproduzia as notas escritas; João interpretava o oceano chamado Bach...

Feitos os discursos e a música, o maestro agradeceu, emocionado. Celebrou apoios, como o do Sesi e o do Bradesco. Disse que fará, como regente, uma apresentação de encerramento, no Carnegie Hall, em Nova York, em 2025, no ano do seu 85.º aniversário. Mais: disse que retomará a carreira de pianista, explorando o repertório de peças para a mão esquerda.

Nunca ficaram tão válidas as palavras de Washington Olivetto na contracapa da biografia: “Nesses seus primeiros 80 anos, João Carlos Martins foi de menino prodígio a adulto prodigioso. Foi do clássico ao popular, de Bach a Bethânia. Se manteve sempre allegro e andante, mas nada moderato. Tocou a vida muito bem e, algumas vezes, desafinou o coro dos contentes. Essa biografia só tem um defeito. Breve estará desatualizada porque certamente o maestro já terá arranjado mais uma das suas. Esse maestro não tem conserto”.

Em resumo, para alimentar nossa esperança na vida: vale a pena ler o livro de Jamil Chade sobre João Carlos Martins. Naquela noite, eu pensei no disco de vinil, de 1981, e na sobrevivência do talento e da arte. Viva Johann Sebastian Bach! Viva a música! Viva João Carlos Martins!

Os brasileiros o reconhecem na rua e o tratam como uma celebridade. Fui testemunha disso. Não apenas o público consumidor de música erudita, mas pessoas de todas as origens e identidades. Andamos pelo Largo do Arouche, em São Paulo, e o guardador de carros veio tirar uma foto com ele. No aeroporto de Confins (MG), onde estivemos retidos por horas, aguardando um voo para São Paulo, houve até certa histeria para algum registro. Falo do pianista e maestro João Carlos Martins.

No dia 4 de junho de 2024, na Sala São Paulo, houve o lançamento do livro de Jamil Chade: O Indomável – João Carlos Martins entre Som e Silêncio (ed. Record). Ali, tive o privilégio de fazer uma breve alocução. Carla Camurati leu dois trechos lindos da biografia. João tocou e regeu de forma inesquecível a Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi. Jamil Chade surpreendeu na flauta, com a peça de Villa-Lobos. Foi uma noite emocionante. Eis pequenos trechos do meu discurso naquela terça-feira memorável:

João Carlos Martins em desfile da Vai-Vai no sambódromo do Anhembi Foto: Taba Benedicto/Estadão

“O talento é um mistério. Ele implica técnica. A destreza é treinável em muita gente. Bem mais raro é o fogo único, a centelha imponderável que separa o correto do extraordinário. (...) O que dizer a um homem que enfrentou quase tudo na vida – do triunfo absoluto à dor física excruciante, da glória à fogueira da vida pública?

Falemos da glória além da imaginação. João Carlos Martins tocou em todas as salas importantes do mundo, ao lado das melhores orquestras e dos mais renomados regentes. Nosso pianista conheceu o século 20 ao vivo! Um episódio na China foi simbólico: a casaca do artista foi alvo de fãs que recortaram pedaços da roupa como a relíquia de um santo. A vestimenta formal foi despedaçada ao vivo, como em um rito elegíaco de comunhão. O governo chinês mandou fazer outro traje para compensar o tsunami de entusiasmo asiático.

Sobre o êxito de décadas, nada mais há a dizer, apenas contemplar esta sala magnífica lotada e sentir a emoção de uma noite que reúne tanta gente em torno de um bachiano notável. A obra de João Carlos Martins pode ser comprovada por amigos, fãs, jovens que ele incentivou e um público sedento da sua arte. Olhemos ao nosso redor este momento fáustico: eis a prova de uma vida única.

Sintetizo de outra forma. Bach viveu com sua numerosa família sem nunca ter viajado para longe. Seu contemporâneo, Haendel, percorreu mais terras e está enterrado em Westminster, em Londres. O túmulo do autor do oratório Messias está acima do de Dickens e do de Kipling, na renomada abadia. A inscrição é muito forte: Superata tellus, siderat donat. A ideia sai das Consolações que o filósofo Boécio escreveu na prisão. É a chave de toda arte, o objetivo de toda cultura: superar a matéria e criar as estrelas. Dominando o imanente, abrir-se ao transcendente. Rasgando o ‘véu de Maya’, ressignificar a máquina do mundo em seu mecanismo mais íntimo. Superando a dor, redimir a música. Bach ficou cego, Beethoven, surdo. João Carlos Martins sentiu sua mão curvar-se em ângulos dolorosos. A mão material se opunha ao comando da consciência. Superata tellus, siderat donat. Estamos diante de uma jornada de superação e redenção. Ostra feliz não produz pérola! Da areia dolorosa trazida pelo destino, brotaram joias únicas”.

Contei ao público que, em 1981, eu tinha 18 anos; João, 40. Conheci, então, o disco do encontro original de Bach e Chopin que ele fez com Arthur Moreira Lima. Ao ouvir as mesmas peças que eu estava estudando no Cravo Bem Temperado, entendi que eu seria um bom historiador, mas nunca um pianista. Eu tinha captado o que separa o “correto” (eu) do “extraordinário” (João). Eu tocava bem, com metrônomo e clareza. Eu reproduzia as notas escritas; João interpretava o oceano chamado Bach...

Feitos os discursos e a música, o maestro agradeceu, emocionado. Celebrou apoios, como o do Sesi e o do Bradesco. Disse que fará, como regente, uma apresentação de encerramento, no Carnegie Hall, em Nova York, em 2025, no ano do seu 85.º aniversário. Mais: disse que retomará a carreira de pianista, explorando o repertório de peças para a mão esquerda.

Nunca ficaram tão válidas as palavras de Washington Olivetto na contracapa da biografia: “Nesses seus primeiros 80 anos, João Carlos Martins foi de menino prodígio a adulto prodigioso. Foi do clássico ao popular, de Bach a Bethânia. Se manteve sempre allegro e andante, mas nada moderato. Tocou a vida muito bem e, algumas vezes, desafinou o coro dos contentes. Essa biografia só tem um defeito. Breve estará desatualizada porque certamente o maestro já terá arranjado mais uma das suas. Esse maestro não tem conserto”.

Em resumo, para alimentar nossa esperança na vida: vale a pena ler o livro de Jamil Chade sobre João Carlos Martins. Naquela noite, eu pensei no disco de vinil, de 1981, e na sobrevivência do talento e da arte. Viva Johann Sebastian Bach! Viva a música! Viva João Carlos Martins!

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É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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