Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Como eu posso saber o que sou e qual é meu propósito se, sobrevivendo, parei de pensar em viver?


Adultos passam a trabalhar, muitos constituem família; todos assumem compromissos distintos da infância. Tornamo-nos pessoas ‘responsáveis’ com o peso enorme do termo. ‘Sonhar? É coisa de adolescente desocupado. Eu tenho de viver o mundo real!’

Por Leandro Karnal

Acordar, fazer higiene matinal, alimentar-se, sair para trabalhar, enfrentar mil perrengues na rua, voltar, trânsito ruim, alguns desafios em casa, dormir, alegrias aqui e ali, interromper no fim de semana, viajar, questões de saúde, repetir tudo e ficar a cada dia mais velho... O ciclo contém inércia e, com altos e baixos, traduz de forma não poética o fato chamado “vida”. Quase todo mundo já fez uma pergunta metafísica: isso é tudo?

Pense comigo: como eu posso saber o que, de fato, eu sou, quero e qual é meu propósito mais autêntico? Foram tantas camadas de outras coisas ao longo dos anos que, sobrevivendo, parei de pensar em viver.

Vou dar duas pistas. Um passo seria consultar a memória da infância. O que me fazia feliz quando a palavra “boletos” não pairava sobre meu horizonte? Como eu consumia o tempo? O que me alegrava naquele momento? Se eu conseguisse retornar ao pensamento da infância, eu teria uma pista sobre meu desejo lá na origem.

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Fiz o teste. Imaginei-me em uma cena, com dez anos de idade. Eu gostava de ler (gibis inclusive), adorava escola, escutar músicas infantis (como um disco da Turma da Mônica), viajar com a família, achava bonitas as cerimônias na igreja e desejava que o Natal chegasse logo. Em parte, minha vida futura dialogou com esses gostos.

Realizou sua terapia de idades passadas? O segundo recurso seria imaginar: se eu tivesse muito dinheiro disponível, o que estaria fazendo? Sem limites materiais, como eu planejaria a vida? A tática envolve excluir luta pela sobrevivência, para chegar ao núcleo duro do meu desejo. Elimino os argumentos racionais do trabalho, como base para que eu e minha família possamos comer e existir. A presença da necessidade material desvia-se da clareza do sonho. Afinal, podemos fazer o que gostamos. Porém, iguais a todos os adultos, consumimos muito tempo no que precisamos fazer mais do que naquilo que nos deleita.

Você ainda consegue pensar na vida, sem o peso atual do QR Code? Natal era a pura festa da alegria. Uma temporada na praia eram o mar, o sol e sorvetes. Toda a parte complexa do mundo estava com os pais. De repente, tudo mudou. Você cresceu. Como era sua relação com pessoas e coisas sem que houvesse trabalho ou responsabilidade? A resposta ajudará a identificar o que você sacrificou no altar da responsabilidade financeira.

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Vamos explorar a segunda hipótese: dinheiro abundante e garantido. Claro, no primeiro instante, uma euforia de gastos. Chama-se de “demanda contida” o furor de gastos pós-enriquecimento, algo responsável pelo declínio rápido de muita gente recém-alçada à classe A... Porém, seguindo a ideia de encontrar traços dos sonhos originais: o objeto do meu desejo revelará muito sobre mim? O que eu compraria primeiro? Em qual cidade, loja ou profissional eu depositaria o capital mágico e incessante das novas fontes? Como seriam meus sonhos sem obstáculos?

Estou insistindo em um ponto. Adultos passam a trabalhar, muitos constituem família; todos assumem compromissos distintos da infância. Tornamo-nos pessoas “responsáveis” com o peso enorme do termo. No meio do cotidiano que implica obter recursos, pagar contas, lutar para defender quem você ama e cuidar de um corpo que insiste na degradação, perdemos o foco no primeiro desejo, na aspiração original. “Sonhar? É coisa de adolescente desocupado. Eu tenho de viver o mundo real! Não me venha com devaneios.” Essa é a reação do adulto protagonista e levemente amargurado.

Não estou analisando a busca de sentido, algo com ampla bibliografia filosófica. Apenas lembro o tempo: o que deixamos de lado diante do imperativo biográfico? Qual é o preço que pagamos por esse abandono do ideal antigo? Que justificativas sérias e idôneas invocamos para poder falar que somos, afinal, adultos e que, de alguma forma, a dureza do real derrubou nossa dimensão ideal?

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Sou consciente de como alguns objetivos foram transformados pela caminhada. Todo peregrino do Caminho de Santiago tem um sentimento ao partir; outro no meio; diverso, enfim, ao chegar a Compostela. O caminho produz sentidos originais. A pele ganha cicatrizes. Tenho pensado que nossa flexibilidade em negociar o “primeiro sonho” está um pouco exagerada. Adaptar-se? Adiar um pouco?

Bronnie Ware anotou os cinco principais arrependimentos das pessoas antes da morte. Exemplo: os moribundos gostariam de ter trabalhado menos e ter ficado mais com a família. O livro se chama Antes de Partir (ed. Geração). Da mesma forma, já citei em crônicas por aqui os livros da doutora Anna Cláudia Quintana Arantes, os quais produzem essa reflexão no umbral do fim. Recomendo, em particular: Histórias Lindas de Morrer, A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver e Pra Vida Toda Valer a Pena Viver (ed. Sextante). Creia-me: são textos, discutindo morte, repletos de um enorme impulso de vida e de alegria. Tenho muita esperança em redescobrir a voz de uma criança, brincando no interior do Rio Grande do Sul, nas décadas de 1960 e 1970. E você?

Resta a esperança.

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Foto com paisagem de Araucárias durante pôr do sol na Serra da Mantiqueira em junho de 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Acordar, fazer higiene matinal, alimentar-se, sair para trabalhar, enfrentar mil perrengues na rua, voltar, trânsito ruim, alguns desafios em casa, dormir, alegrias aqui e ali, interromper no fim de semana, viajar, questões de saúde, repetir tudo e ficar a cada dia mais velho... O ciclo contém inércia e, com altos e baixos, traduz de forma não poética o fato chamado “vida”. Quase todo mundo já fez uma pergunta metafísica: isso é tudo?

Pense comigo: como eu posso saber o que, de fato, eu sou, quero e qual é meu propósito mais autêntico? Foram tantas camadas de outras coisas ao longo dos anos que, sobrevivendo, parei de pensar em viver.

Vou dar duas pistas. Um passo seria consultar a memória da infância. O que me fazia feliz quando a palavra “boletos” não pairava sobre meu horizonte? Como eu consumia o tempo? O que me alegrava naquele momento? Se eu conseguisse retornar ao pensamento da infância, eu teria uma pista sobre meu desejo lá na origem.

Fiz o teste. Imaginei-me em uma cena, com dez anos de idade. Eu gostava de ler (gibis inclusive), adorava escola, escutar músicas infantis (como um disco da Turma da Mônica), viajar com a família, achava bonitas as cerimônias na igreja e desejava que o Natal chegasse logo. Em parte, minha vida futura dialogou com esses gostos.

Realizou sua terapia de idades passadas? O segundo recurso seria imaginar: se eu tivesse muito dinheiro disponível, o que estaria fazendo? Sem limites materiais, como eu planejaria a vida? A tática envolve excluir luta pela sobrevivência, para chegar ao núcleo duro do meu desejo. Elimino os argumentos racionais do trabalho, como base para que eu e minha família possamos comer e existir. A presença da necessidade material desvia-se da clareza do sonho. Afinal, podemos fazer o que gostamos. Porém, iguais a todos os adultos, consumimos muito tempo no que precisamos fazer mais do que naquilo que nos deleita.

Você ainda consegue pensar na vida, sem o peso atual do QR Code? Natal era a pura festa da alegria. Uma temporada na praia eram o mar, o sol e sorvetes. Toda a parte complexa do mundo estava com os pais. De repente, tudo mudou. Você cresceu. Como era sua relação com pessoas e coisas sem que houvesse trabalho ou responsabilidade? A resposta ajudará a identificar o que você sacrificou no altar da responsabilidade financeira.

Vamos explorar a segunda hipótese: dinheiro abundante e garantido. Claro, no primeiro instante, uma euforia de gastos. Chama-se de “demanda contida” o furor de gastos pós-enriquecimento, algo responsável pelo declínio rápido de muita gente recém-alçada à classe A... Porém, seguindo a ideia de encontrar traços dos sonhos originais: o objeto do meu desejo revelará muito sobre mim? O que eu compraria primeiro? Em qual cidade, loja ou profissional eu depositaria o capital mágico e incessante das novas fontes? Como seriam meus sonhos sem obstáculos?

Estou insistindo em um ponto. Adultos passam a trabalhar, muitos constituem família; todos assumem compromissos distintos da infância. Tornamo-nos pessoas “responsáveis” com o peso enorme do termo. No meio do cotidiano que implica obter recursos, pagar contas, lutar para defender quem você ama e cuidar de um corpo que insiste na degradação, perdemos o foco no primeiro desejo, na aspiração original. “Sonhar? É coisa de adolescente desocupado. Eu tenho de viver o mundo real! Não me venha com devaneios.” Essa é a reação do adulto protagonista e levemente amargurado.

Não estou analisando a busca de sentido, algo com ampla bibliografia filosófica. Apenas lembro o tempo: o que deixamos de lado diante do imperativo biográfico? Qual é o preço que pagamos por esse abandono do ideal antigo? Que justificativas sérias e idôneas invocamos para poder falar que somos, afinal, adultos e que, de alguma forma, a dureza do real derrubou nossa dimensão ideal?

Sou consciente de como alguns objetivos foram transformados pela caminhada. Todo peregrino do Caminho de Santiago tem um sentimento ao partir; outro no meio; diverso, enfim, ao chegar a Compostela. O caminho produz sentidos originais. A pele ganha cicatrizes. Tenho pensado que nossa flexibilidade em negociar o “primeiro sonho” está um pouco exagerada. Adaptar-se? Adiar um pouco?

Bronnie Ware anotou os cinco principais arrependimentos das pessoas antes da morte. Exemplo: os moribundos gostariam de ter trabalhado menos e ter ficado mais com a família. O livro se chama Antes de Partir (ed. Geração). Da mesma forma, já citei em crônicas por aqui os livros da doutora Anna Cláudia Quintana Arantes, os quais produzem essa reflexão no umbral do fim. Recomendo, em particular: Histórias Lindas de Morrer, A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver e Pra Vida Toda Valer a Pena Viver (ed. Sextante). Creia-me: são textos, discutindo morte, repletos de um enorme impulso de vida e de alegria. Tenho muita esperança em redescobrir a voz de uma criança, brincando no interior do Rio Grande do Sul, nas décadas de 1960 e 1970. E você?

Resta a esperança.

Foto com paisagem de Araucárias durante pôr do sol na Serra da Mantiqueira em junho de 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Acordar, fazer higiene matinal, alimentar-se, sair para trabalhar, enfrentar mil perrengues na rua, voltar, trânsito ruim, alguns desafios em casa, dormir, alegrias aqui e ali, interromper no fim de semana, viajar, questões de saúde, repetir tudo e ficar a cada dia mais velho... O ciclo contém inércia e, com altos e baixos, traduz de forma não poética o fato chamado “vida”. Quase todo mundo já fez uma pergunta metafísica: isso é tudo?

Pense comigo: como eu posso saber o que, de fato, eu sou, quero e qual é meu propósito mais autêntico? Foram tantas camadas de outras coisas ao longo dos anos que, sobrevivendo, parei de pensar em viver.

Vou dar duas pistas. Um passo seria consultar a memória da infância. O que me fazia feliz quando a palavra “boletos” não pairava sobre meu horizonte? Como eu consumia o tempo? O que me alegrava naquele momento? Se eu conseguisse retornar ao pensamento da infância, eu teria uma pista sobre meu desejo lá na origem.

Fiz o teste. Imaginei-me em uma cena, com dez anos de idade. Eu gostava de ler (gibis inclusive), adorava escola, escutar músicas infantis (como um disco da Turma da Mônica), viajar com a família, achava bonitas as cerimônias na igreja e desejava que o Natal chegasse logo. Em parte, minha vida futura dialogou com esses gostos.

Realizou sua terapia de idades passadas? O segundo recurso seria imaginar: se eu tivesse muito dinheiro disponível, o que estaria fazendo? Sem limites materiais, como eu planejaria a vida? A tática envolve excluir luta pela sobrevivência, para chegar ao núcleo duro do meu desejo. Elimino os argumentos racionais do trabalho, como base para que eu e minha família possamos comer e existir. A presença da necessidade material desvia-se da clareza do sonho. Afinal, podemos fazer o que gostamos. Porém, iguais a todos os adultos, consumimos muito tempo no que precisamos fazer mais do que naquilo que nos deleita.

Você ainda consegue pensar na vida, sem o peso atual do QR Code? Natal era a pura festa da alegria. Uma temporada na praia eram o mar, o sol e sorvetes. Toda a parte complexa do mundo estava com os pais. De repente, tudo mudou. Você cresceu. Como era sua relação com pessoas e coisas sem que houvesse trabalho ou responsabilidade? A resposta ajudará a identificar o que você sacrificou no altar da responsabilidade financeira.

Vamos explorar a segunda hipótese: dinheiro abundante e garantido. Claro, no primeiro instante, uma euforia de gastos. Chama-se de “demanda contida” o furor de gastos pós-enriquecimento, algo responsável pelo declínio rápido de muita gente recém-alçada à classe A... Porém, seguindo a ideia de encontrar traços dos sonhos originais: o objeto do meu desejo revelará muito sobre mim? O que eu compraria primeiro? Em qual cidade, loja ou profissional eu depositaria o capital mágico e incessante das novas fontes? Como seriam meus sonhos sem obstáculos?

Estou insistindo em um ponto. Adultos passam a trabalhar, muitos constituem família; todos assumem compromissos distintos da infância. Tornamo-nos pessoas “responsáveis” com o peso enorme do termo. No meio do cotidiano que implica obter recursos, pagar contas, lutar para defender quem você ama e cuidar de um corpo que insiste na degradação, perdemos o foco no primeiro desejo, na aspiração original. “Sonhar? É coisa de adolescente desocupado. Eu tenho de viver o mundo real! Não me venha com devaneios.” Essa é a reação do adulto protagonista e levemente amargurado.

Não estou analisando a busca de sentido, algo com ampla bibliografia filosófica. Apenas lembro o tempo: o que deixamos de lado diante do imperativo biográfico? Qual é o preço que pagamos por esse abandono do ideal antigo? Que justificativas sérias e idôneas invocamos para poder falar que somos, afinal, adultos e que, de alguma forma, a dureza do real derrubou nossa dimensão ideal?

Sou consciente de como alguns objetivos foram transformados pela caminhada. Todo peregrino do Caminho de Santiago tem um sentimento ao partir; outro no meio; diverso, enfim, ao chegar a Compostela. O caminho produz sentidos originais. A pele ganha cicatrizes. Tenho pensado que nossa flexibilidade em negociar o “primeiro sonho” está um pouco exagerada. Adaptar-se? Adiar um pouco?

Bronnie Ware anotou os cinco principais arrependimentos das pessoas antes da morte. Exemplo: os moribundos gostariam de ter trabalhado menos e ter ficado mais com a família. O livro se chama Antes de Partir (ed. Geração). Da mesma forma, já citei em crônicas por aqui os livros da doutora Anna Cláudia Quintana Arantes, os quais produzem essa reflexão no umbral do fim. Recomendo, em particular: Histórias Lindas de Morrer, A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver e Pra Vida Toda Valer a Pena Viver (ed. Sextante). Creia-me: são textos, discutindo morte, repletos de um enorme impulso de vida e de alegria. Tenho muita esperança em redescobrir a voz de uma criança, brincando no interior do Rio Grande do Sul, nas décadas de 1960 e 1970. E você?

Resta a esperança.

Foto com paisagem de Araucárias durante pôr do sol na Serra da Mantiqueira em junho de 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Acordar, fazer higiene matinal, alimentar-se, sair para trabalhar, enfrentar mil perrengues na rua, voltar, trânsito ruim, alguns desafios em casa, dormir, alegrias aqui e ali, interromper no fim de semana, viajar, questões de saúde, repetir tudo e ficar a cada dia mais velho... O ciclo contém inércia e, com altos e baixos, traduz de forma não poética o fato chamado “vida”. Quase todo mundo já fez uma pergunta metafísica: isso é tudo?

Pense comigo: como eu posso saber o que, de fato, eu sou, quero e qual é meu propósito mais autêntico? Foram tantas camadas de outras coisas ao longo dos anos que, sobrevivendo, parei de pensar em viver.

Vou dar duas pistas. Um passo seria consultar a memória da infância. O que me fazia feliz quando a palavra “boletos” não pairava sobre meu horizonte? Como eu consumia o tempo? O que me alegrava naquele momento? Se eu conseguisse retornar ao pensamento da infância, eu teria uma pista sobre meu desejo lá na origem.

Fiz o teste. Imaginei-me em uma cena, com dez anos de idade. Eu gostava de ler (gibis inclusive), adorava escola, escutar músicas infantis (como um disco da Turma da Mônica), viajar com a família, achava bonitas as cerimônias na igreja e desejava que o Natal chegasse logo. Em parte, minha vida futura dialogou com esses gostos.

Realizou sua terapia de idades passadas? O segundo recurso seria imaginar: se eu tivesse muito dinheiro disponível, o que estaria fazendo? Sem limites materiais, como eu planejaria a vida? A tática envolve excluir luta pela sobrevivência, para chegar ao núcleo duro do meu desejo. Elimino os argumentos racionais do trabalho, como base para que eu e minha família possamos comer e existir. A presença da necessidade material desvia-se da clareza do sonho. Afinal, podemos fazer o que gostamos. Porém, iguais a todos os adultos, consumimos muito tempo no que precisamos fazer mais do que naquilo que nos deleita.

Você ainda consegue pensar na vida, sem o peso atual do QR Code? Natal era a pura festa da alegria. Uma temporada na praia eram o mar, o sol e sorvetes. Toda a parte complexa do mundo estava com os pais. De repente, tudo mudou. Você cresceu. Como era sua relação com pessoas e coisas sem que houvesse trabalho ou responsabilidade? A resposta ajudará a identificar o que você sacrificou no altar da responsabilidade financeira.

Vamos explorar a segunda hipótese: dinheiro abundante e garantido. Claro, no primeiro instante, uma euforia de gastos. Chama-se de “demanda contida” o furor de gastos pós-enriquecimento, algo responsável pelo declínio rápido de muita gente recém-alçada à classe A... Porém, seguindo a ideia de encontrar traços dos sonhos originais: o objeto do meu desejo revelará muito sobre mim? O que eu compraria primeiro? Em qual cidade, loja ou profissional eu depositaria o capital mágico e incessante das novas fontes? Como seriam meus sonhos sem obstáculos?

Estou insistindo em um ponto. Adultos passam a trabalhar, muitos constituem família; todos assumem compromissos distintos da infância. Tornamo-nos pessoas “responsáveis” com o peso enorme do termo. No meio do cotidiano que implica obter recursos, pagar contas, lutar para defender quem você ama e cuidar de um corpo que insiste na degradação, perdemos o foco no primeiro desejo, na aspiração original. “Sonhar? É coisa de adolescente desocupado. Eu tenho de viver o mundo real! Não me venha com devaneios.” Essa é a reação do adulto protagonista e levemente amargurado.

Não estou analisando a busca de sentido, algo com ampla bibliografia filosófica. Apenas lembro o tempo: o que deixamos de lado diante do imperativo biográfico? Qual é o preço que pagamos por esse abandono do ideal antigo? Que justificativas sérias e idôneas invocamos para poder falar que somos, afinal, adultos e que, de alguma forma, a dureza do real derrubou nossa dimensão ideal?

Sou consciente de como alguns objetivos foram transformados pela caminhada. Todo peregrino do Caminho de Santiago tem um sentimento ao partir; outro no meio; diverso, enfim, ao chegar a Compostela. O caminho produz sentidos originais. A pele ganha cicatrizes. Tenho pensado que nossa flexibilidade em negociar o “primeiro sonho” está um pouco exagerada. Adaptar-se? Adiar um pouco?

Bronnie Ware anotou os cinco principais arrependimentos das pessoas antes da morte. Exemplo: os moribundos gostariam de ter trabalhado menos e ter ficado mais com a família. O livro se chama Antes de Partir (ed. Geração). Da mesma forma, já citei em crônicas por aqui os livros da doutora Anna Cláudia Quintana Arantes, os quais produzem essa reflexão no umbral do fim. Recomendo, em particular: Histórias Lindas de Morrer, A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver e Pra Vida Toda Valer a Pena Viver (ed. Sextante). Creia-me: são textos, discutindo morte, repletos de um enorme impulso de vida e de alegria. Tenho muita esperança em redescobrir a voz de uma criança, brincando no interior do Rio Grande do Sul, nas décadas de 1960 e 1970. E você?

Resta a esperança.

Foto com paisagem de Araucárias durante pôr do sol na Serra da Mantiqueira em junho de 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Acordar, fazer higiene matinal, alimentar-se, sair para trabalhar, enfrentar mil perrengues na rua, voltar, trânsito ruim, alguns desafios em casa, dormir, alegrias aqui e ali, interromper no fim de semana, viajar, questões de saúde, repetir tudo e ficar a cada dia mais velho... O ciclo contém inércia e, com altos e baixos, traduz de forma não poética o fato chamado “vida”. Quase todo mundo já fez uma pergunta metafísica: isso é tudo?

Pense comigo: como eu posso saber o que, de fato, eu sou, quero e qual é meu propósito mais autêntico? Foram tantas camadas de outras coisas ao longo dos anos que, sobrevivendo, parei de pensar em viver.

Vou dar duas pistas. Um passo seria consultar a memória da infância. O que me fazia feliz quando a palavra “boletos” não pairava sobre meu horizonte? Como eu consumia o tempo? O que me alegrava naquele momento? Se eu conseguisse retornar ao pensamento da infância, eu teria uma pista sobre meu desejo lá na origem.

Fiz o teste. Imaginei-me em uma cena, com dez anos de idade. Eu gostava de ler (gibis inclusive), adorava escola, escutar músicas infantis (como um disco da Turma da Mônica), viajar com a família, achava bonitas as cerimônias na igreja e desejava que o Natal chegasse logo. Em parte, minha vida futura dialogou com esses gostos.

Realizou sua terapia de idades passadas? O segundo recurso seria imaginar: se eu tivesse muito dinheiro disponível, o que estaria fazendo? Sem limites materiais, como eu planejaria a vida? A tática envolve excluir luta pela sobrevivência, para chegar ao núcleo duro do meu desejo. Elimino os argumentos racionais do trabalho, como base para que eu e minha família possamos comer e existir. A presença da necessidade material desvia-se da clareza do sonho. Afinal, podemos fazer o que gostamos. Porém, iguais a todos os adultos, consumimos muito tempo no que precisamos fazer mais do que naquilo que nos deleita.

Você ainda consegue pensar na vida, sem o peso atual do QR Code? Natal era a pura festa da alegria. Uma temporada na praia eram o mar, o sol e sorvetes. Toda a parte complexa do mundo estava com os pais. De repente, tudo mudou. Você cresceu. Como era sua relação com pessoas e coisas sem que houvesse trabalho ou responsabilidade? A resposta ajudará a identificar o que você sacrificou no altar da responsabilidade financeira.

Vamos explorar a segunda hipótese: dinheiro abundante e garantido. Claro, no primeiro instante, uma euforia de gastos. Chama-se de “demanda contida” o furor de gastos pós-enriquecimento, algo responsável pelo declínio rápido de muita gente recém-alçada à classe A... Porém, seguindo a ideia de encontrar traços dos sonhos originais: o objeto do meu desejo revelará muito sobre mim? O que eu compraria primeiro? Em qual cidade, loja ou profissional eu depositaria o capital mágico e incessante das novas fontes? Como seriam meus sonhos sem obstáculos?

Estou insistindo em um ponto. Adultos passam a trabalhar, muitos constituem família; todos assumem compromissos distintos da infância. Tornamo-nos pessoas “responsáveis” com o peso enorme do termo. No meio do cotidiano que implica obter recursos, pagar contas, lutar para defender quem você ama e cuidar de um corpo que insiste na degradação, perdemos o foco no primeiro desejo, na aspiração original. “Sonhar? É coisa de adolescente desocupado. Eu tenho de viver o mundo real! Não me venha com devaneios.” Essa é a reação do adulto protagonista e levemente amargurado.

Não estou analisando a busca de sentido, algo com ampla bibliografia filosófica. Apenas lembro o tempo: o que deixamos de lado diante do imperativo biográfico? Qual é o preço que pagamos por esse abandono do ideal antigo? Que justificativas sérias e idôneas invocamos para poder falar que somos, afinal, adultos e que, de alguma forma, a dureza do real derrubou nossa dimensão ideal?

Sou consciente de como alguns objetivos foram transformados pela caminhada. Todo peregrino do Caminho de Santiago tem um sentimento ao partir; outro no meio; diverso, enfim, ao chegar a Compostela. O caminho produz sentidos originais. A pele ganha cicatrizes. Tenho pensado que nossa flexibilidade em negociar o “primeiro sonho” está um pouco exagerada. Adaptar-se? Adiar um pouco?

Bronnie Ware anotou os cinco principais arrependimentos das pessoas antes da morte. Exemplo: os moribundos gostariam de ter trabalhado menos e ter ficado mais com a família. O livro se chama Antes de Partir (ed. Geração). Da mesma forma, já citei em crônicas por aqui os livros da doutora Anna Cláudia Quintana Arantes, os quais produzem essa reflexão no umbral do fim. Recomendo, em particular: Histórias Lindas de Morrer, A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver e Pra Vida Toda Valer a Pena Viver (ed. Sextante). Creia-me: são textos, discutindo morte, repletos de um enorme impulso de vida e de alegria. Tenho muita esperança em redescobrir a voz de uma criança, brincando no interior do Rio Grande do Sul, nas décadas de 1960 e 1970. E você?

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Foto com paisagem de Araucárias durante pôr do sol na Serra da Mantiqueira em junho de 2024 Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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