Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Criticar no Brasil


As fraquezas do ensino aumentam a barreira à discussão. Somos bons de briga e ruins no debate

Por Leandro Karnal
Atualização:

Nunca me esqueço do primeiro congresso internacional de História do qual participei. Eu era um pós-graduando e, como tal, tinha limites claros para uso da palavra diante dos “grandes”. Ouvíamos, em silêncio religioso, os professores. A pirâmide do poder era alta, e eu ficava na base olhando para cima...

Qual foi minha surpresa: doutores titulares, respeitados em grandes universidades, faziam suas falas e, logo em seguida, colegas estrangeiros “desciam a lenha” (adoro a expressão brasileira). Era impressionante: “O trabalho tem méritos, sim, mas é completamente equivocado na conclusão”. Não era uma discreta correção ou suave apontamento: era “porrada” da boa! Eu, brasileiro da gema, imaginava que haveria um duelo armado ao final do encontro. Segunda surpresa: o crítico e o alvo eram vistos, tomando café e sorrindo. Uma diferença com nossa tradição era visível.

Visitante em pavilhão da Feira do Livro de Bogotá em abril de 2015. Foto: Jose Miguel Gomez/Reuters
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No Brasil, a crítica é quase sempre vista como pessoal. “Não gostou do que escrevi? Só pode ser meu inimigo; por isso, não podemos mais conversar. Mais: não elogiou em abundância? Também não conte com o meu afeto. Todos os meus amigos devem, em adoração, concordar com tudo aquilo que digo e escrevo. Caso contrário, seriam amigos?” Na Europa e nos EUA são...

As raízes são diversas. Sérgio Buarque apontou nosso caráter cordial, que, nunca é excessivo lembrar, não é de ser cordato e gentil, mas passional, pensando sempre com o coração. Assim, o mesmo povo que sorri sem parar (nós) é o que mata mais no trânsito, em comparação a outros países onde os dentes não são mostrados com frequência, mas os carros atropelam menos. Nosso homem cordial cumprimenta e mata por ser... cordial.

Existe outra questão: pouco hábito com o contraditório na democracia. Vamos imaginar dois períodos de abertura: 1946–1964 e 1985 em diante. Somando as datas, temos cerca de 56 anos de democracia imperfeita. 56 anos em 523 de história, que constituem uma experiência menor do que a minha vida de articulista. É pouco! A tradição é de ditadura, coronelismo, oligarquias e mandonismo. Formalidades argumentativas esbarram-se nas conhecidas expressões: “Você sabe com quem está falando?”, “Quem é você para me falar assim?” ou “Eu sou filho de fulano...”.

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Temos uma forte tradição autoritária; ninguém pode contestar o coronel. O não a um poder monocrático equivale ao risco de violência e até de morte. Os coronéis clássicos da literatura e da novela escasseiam. Seus filhos e netos cobrem todo o território nacional. Há os “neocoronéis” nos departamentos das universidades, nos clubes, nos condomínios, nas igrejas, nas famílias, no transporte público e em outros lugares. Contestados reagem com extrema agressividade, fazendo crer que leram Bossuet; consideram que todo poder emana de Deus.

As fraquezas do ensino brasileiro aumentam a barreira à discussão. Somos bons de briga e ruins no debate.

A política aqui é pouco dada a ideias e muito apaixonada pela “fulanização”. Não queremos correntes e posições, desejamos nomes. “Fulanizar” significa desviar a atenção de uma ideia para a identificação de um nome. Abstraímos pouco, acusamos muito. Quem foi acusado de um comportamento ruim defende-se “fulanizando”.

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O que impressiona em um debate, entre nós, é o recurso ad hominem. É uma falácia, mas que sucesso de falácia! Insultos pessoais constituem tática válida para “lacrar”. Assim: “Ele está atacando a autonomia do Banco Central? Impossível! Você soube que a esposa o trai?”. E assim: “Você defende o superávit primário porque é de Santa Catarina!”. Querem mais: “Como você pode ser contra o racismo, se você é branco?”. Focar no campo pessoal é garantia de sucesso dos que acompanham a “treta”.

Construir uma sociedade crítica implica muita maturidade. Meu colega apresentou um trabalho com um tema que eu também pesquiso. Se tenho indicações bibliográficas que o ajudem, forneço. Se ele conclui algo muito diferente do que eu acredito, escuto os argumentos e, se for o caso, apresento os meus. Superada a vaidade da autoria, ficando na ideia científica de um trabalho perfectível, aprimoro-me, ouvindo teses das quais discordo. Não incluo o fígado. Não ataco a pessoa. Não “fulanizo”. Fico no campo das ideias. A pesquisa pode ser boa, mesmo que esse ser humano seja conservador ou de esquerda, católico ou do candomblé, hétero ou gay. Ouvir muito, criticar sem paixão, analisar de acordo com os próprios limites, sem se considerar porta-voz da verdade. Aceitar aprender e, de quando em vez, ensinar. Ninguém perde nesse jogo, pois aquele que tiver mais dados e argumentos mostrará um caminho melhor para seguir. Apegar-se ao remédio que você inventou por pura vaidade, rejeitando um mais avançado, é estupidez forte.

O parágrafo anterior traduziu um ideal. Ainda não chegamos lá. Dentro de nós todos, há um coronel potroso (expressão que aprendi com Gabriel García Márquez), lento e autoritário, cansado na origem e desejoso de ser deixado na cadeira patriarcal que ocupa. Existe um mundo fora de Macondo. Tenho esperança de que consigamos, num dia.

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* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Nunca me esqueço do primeiro congresso internacional de História do qual participei. Eu era um pós-graduando e, como tal, tinha limites claros para uso da palavra diante dos “grandes”. Ouvíamos, em silêncio religioso, os professores. A pirâmide do poder era alta, e eu ficava na base olhando para cima...

Qual foi minha surpresa: doutores titulares, respeitados em grandes universidades, faziam suas falas e, logo em seguida, colegas estrangeiros “desciam a lenha” (adoro a expressão brasileira). Era impressionante: “O trabalho tem méritos, sim, mas é completamente equivocado na conclusão”. Não era uma discreta correção ou suave apontamento: era “porrada” da boa! Eu, brasileiro da gema, imaginava que haveria um duelo armado ao final do encontro. Segunda surpresa: o crítico e o alvo eram vistos, tomando café e sorrindo. Uma diferença com nossa tradição era visível.

Visitante em pavilhão da Feira do Livro de Bogotá em abril de 2015. Foto: Jose Miguel Gomez/Reuters

No Brasil, a crítica é quase sempre vista como pessoal. “Não gostou do que escrevi? Só pode ser meu inimigo; por isso, não podemos mais conversar. Mais: não elogiou em abundância? Também não conte com o meu afeto. Todos os meus amigos devem, em adoração, concordar com tudo aquilo que digo e escrevo. Caso contrário, seriam amigos?” Na Europa e nos EUA são...

As raízes são diversas. Sérgio Buarque apontou nosso caráter cordial, que, nunca é excessivo lembrar, não é de ser cordato e gentil, mas passional, pensando sempre com o coração. Assim, o mesmo povo que sorri sem parar (nós) é o que mata mais no trânsito, em comparação a outros países onde os dentes não são mostrados com frequência, mas os carros atropelam menos. Nosso homem cordial cumprimenta e mata por ser... cordial.

Existe outra questão: pouco hábito com o contraditório na democracia. Vamos imaginar dois períodos de abertura: 1946–1964 e 1985 em diante. Somando as datas, temos cerca de 56 anos de democracia imperfeita. 56 anos em 523 de história, que constituem uma experiência menor do que a minha vida de articulista. É pouco! A tradição é de ditadura, coronelismo, oligarquias e mandonismo. Formalidades argumentativas esbarram-se nas conhecidas expressões: “Você sabe com quem está falando?”, “Quem é você para me falar assim?” ou “Eu sou filho de fulano...”.

Temos uma forte tradição autoritária; ninguém pode contestar o coronel. O não a um poder monocrático equivale ao risco de violência e até de morte. Os coronéis clássicos da literatura e da novela escasseiam. Seus filhos e netos cobrem todo o território nacional. Há os “neocoronéis” nos departamentos das universidades, nos clubes, nos condomínios, nas igrejas, nas famílias, no transporte público e em outros lugares. Contestados reagem com extrema agressividade, fazendo crer que leram Bossuet; consideram que todo poder emana de Deus.

As fraquezas do ensino brasileiro aumentam a barreira à discussão. Somos bons de briga e ruins no debate.

A política aqui é pouco dada a ideias e muito apaixonada pela “fulanização”. Não queremos correntes e posições, desejamos nomes. “Fulanizar” significa desviar a atenção de uma ideia para a identificação de um nome. Abstraímos pouco, acusamos muito. Quem foi acusado de um comportamento ruim defende-se “fulanizando”.

O que impressiona em um debate, entre nós, é o recurso ad hominem. É uma falácia, mas que sucesso de falácia! Insultos pessoais constituem tática válida para “lacrar”. Assim: “Ele está atacando a autonomia do Banco Central? Impossível! Você soube que a esposa o trai?”. E assim: “Você defende o superávit primário porque é de Santa Catarina!”. Querem mais: “Como você pode ser contra o racismo, se você é branco?”. Focar no campo pessoal é garantia de sucesso dos que acompanham a “treta”.

Construir uma sociedade crítica implica muita maturidade. Meu colega apresentou um trabalho com um tema que eu também pesquiso. Se tenho indicações bibliográficas que o ajudem, forneço. Se ele conclui algo muito diferente do que eu acredito, escuto os argumentos e, se for o caso, apresento os meus. Superada a vaidade da autoria, ficando na ideia científica de um trabalho perfectível, aprimoro-me, ouvindo teses das quais discordo. Não incluo o fígado. Não ataco a pessoa. Não “fulanizo”. Fico no campo das ideias. A pesquisa pode ser boa, mesmo que esse ser humano seja conservador ou de esquerda, católico ou do candomblé, hétero ou gay. Ouvir muito, criticar sem paixão, analisar de acordo com os próprios limites, sem se considerar porta-voz da verdade. Aceitar aprender e, de quando em vez, ensinar. Ninguém perde nesse jogo, pois aquele que tiver mais dados e argumentos mostrará um caminho melhor para seguir. Apegar-se ao remédio que você inventou por pura vaidade, rejeitando um mais avançado, é estupidez forte.

O parágrafo anterior traduziu um ideal. Ainda não chegamos lá. Dentro de nós todos, há um coronel potroso (expressão que aprendi com Gabriel García Márquez), lento e autoritário, cansado na origem e desejoso de ser deixado na cadeira patriarcal que ocupa. Existe um mundo fora de Macondo. Tenho esperança de que consigamos, num dia.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Nunca me esqueço do primeiro congresso internacional de História do qual participei. Eu era um pós-graduando e, como tal, tinha limites claros para uso da palavra diante dos “grandes”. Ouvíamos, em silêncio religioso, os professores. A pirâmide do poder era alta, e eu ficava na base olhando para cima...

Qual foi minha surpresa: doutores titulares, respeitados em grandes universidades, faziam suas falas e, logo em seguida, colegas estrangeiros “desciam a lenha” (adoro a expressão brasileira). Era impressionante: “O trabalho tem méritos, sim, mas é completamente equivocado na conclusão”. Não era uma discreta correção ou suave apontamento: era “porrada” da boa! Eu, brasileiro da gema, imaginava que haveria um duelo armado ao final do encontro. Segunda surpresa: o crítico e o alvo eram vistos, tomando café e sorrindo. Uma diferença com nossa tradição era visível.

Visitante em pavilhão da Feira do Livro de Bogotá em abril de 2015. Foto: Jose Miguel Gomez/Reuters

No Brasil, a crítica é quase sempre vista como pessoal. “Não gostou do que escrevi? Só pode ser meu inimigo; por isso, não podemos mais conversar. Mais: não elogiou em abundância? Também não conte com o meu afeto. Todos os meus amigos devem, em adoração, concordar com tudo aquilo que digo e escrevo. Caso contrário, seriam amigos?” Na Europa e nos EUA são...

As raízes são diversas. Sérgio Buarque apontou nosso caráter cordial, que, nunca é excessivo lembrar, não é de ser cordato e gentil, mas passional, pensando sempre com o coração. Assim, o mesmo povo que sorri sem parar (nós) é o que mata mais no trânsito, em comparação a outros países onde os dentes não são mostrados com frequência, mas os carros atropelam menos. Nosso homem cordial cumprimenta e mata por ser... cordial.

Existe outra questão: pouco hábito com o contraditório na democracia. Vamos imaginar dois períodos de abertura: 1946–1964 e 1985 em diante. Somando as datas, temos cerca de 56 anos de democracia imperfeita. 56 anos em 523 de história, que constituem uma experiência menor do que a minha vida de articulista. É pouco! A tradição é de ditadura, coronelismo, oligarquias e mandonismo. Formalidades argumentativas esbarram-se nas conhecidas expressões: “Você sabe com quem está falando?”, “Quem é você para me falar assim?” ou “Eu sou filho de fulano...”.

Temos uma forte tradição autoritária; ninguém pode contestar o coronel. O não a um poder monocrático equivale ao risco de violência e até de morte. Os coronéis clássicos da literatura e da novela escasseiam. Seus filhos e netos cobrem todo o território nacional. Há os “neocoronéis” nos departamentos das universidades, nos clubes, nos condomínios, nas igrejas, nas famílias, no transporte público e em outros lugares. Contestados reagem com extrema agressividade, fazendo crer que leram Bossuet; consideram que todo poder emana de Deus.

As fraquezas do ensino brasileiro aumentam a barreira à discussão. Somos bons de briga e ruins no debate.

A política aqui é pouco dada a ideias e muito apaixonada pela “fulanização”. Não queremos correntes e posições, desejamos nomes. “Fulanizar” significa desviar a atenção de uma ideia para a identificação de um nome. Abstraímos pouco, acusamos muito. Quem foi acusado de um comportamento ruim defende-se “fulanizando”.

O que impressiona em um debate, entre nós, é o recurso ad hominem. É uma falácia, mas que sucesso de falácia! Insultos pessoais constituem tática válida para “lacrar”. Assim: “Ele está atacando a autonomia do Banco Central? Impossível! Você soube que a esposa o trai?”. E assim: “Você defende o superávit primário porque é de Santa Catarina!”. Querem mais: “Como você pode ser contra o racismo, se você é branco?”. Focar no campo pessoal é garantia de sucesso dos que acompanham a “treta”.

Construir uma sociedade crítica implica muita maturidade. Meu colega apresentou um trabalho com um tema que eu também pesquiso. Se tenho indicações bibliográficas que o ajudem, forneço. Se ele conclui algo muito diferente do que eu acredito, escuto os argumentos e, se for o caso, apresento os meus. Superada a vaidade da autoria, ficando na ideia científica de um trabalho perfectível, aprimoro-me, ouvindo teses das quais discordo. Não incluo o fígado. Não ataco a pessoa. Não “fulanizo”. Fico no campo das ideias. A pesquisa pode ser boa, mesmo que esse ser humano seja conservador ou de esquerda, católico ou do candomblé, hétero ou gay. Ouvir muito, criticar sem paixão, analisar de acordo com os próprios limites, sem se considerar porta-voz da verdade. Aceitar aprender e, de quando em vez, ensinar. Ninguém perde nesse jogo, pois aquele que tiver mais dados e argumentos mostrará um caminho melhor para seguir. Apegar-se ao remédio que você inventou por pura vaidade, rejeitando um mais avançado, é estupidez forte.

O parágrafo anterior traduziu um ideal. Ainda não chegamos lá. Dentro de nós todos, há um coronel potroso (expressão que aprendi com Gabriel García Márquez), lento e autoritário, cansado na origem e desejoso de ser deixado na cadeira patriarcal que ocupa. Existe um mundo fora de Macondo. Tenho esperança de que consigamos, num dia.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Nunca me esqueço do primeiro congresso internacional de História do qual participei. Eu era um pós-graduando e, como tal, tinha limites claros para uso da palavra diante dos “grandes”. Ouvíamos, em silêncio religioso, os professores. A pirâmide do poder era alta, e eu ficava na base olhando para cima...

Qual foi minha surpresa: doutores titulares, respeitados em grandes universidades, faziam suas falas e, logo em seguida, colegas estrangeiros “desciam a lenha” (adoro a expressão brasileira). Era impressionante: “O trabalho tem méritos, sim, mas é completamente equivocado na conclusão”. Não era uma discreta correção ou suave apontamento: era “porrada” da boa! Eu, brasileiro da gema, imaginava que haveria um duelo armado ao final do encontro. Segunda surpresa: o crítico e o alvo eram vistos, tomando café e sorrindo. Uma diferença com nossa tradição era visível.

Visitante em pavilhão da Feira do Livro de Bogotá em abril de 2015. Foto: Jose Miguel Gomez/Reuters

No Brasil, a crítica é quase sempre vista como pessoal. “Não gostou do que escrevi? Só pode ser meu inimigo; por isso, não podemos mais conversar. Mais: não elogiou em abundância? Também não conte com o meu afeto. Todos os meus amigos devem, em adoração, concordar com tudo aquilo que digo e escrevo. Caso contrário, seriam amigos?” Na Europa e nos EUA são...

As raízes são diversas. Sérgio Buarque apontou nosso caráter cordial, que, nunca é excessivo lembrar, não é de ser cordato e gentil, mas passional, pensando sempre com o coração. Assim, o mesmo povo que sorri sem parar (nós) é o que mata mais no trânsito, em comparação a outros países onde os dentes não são mostrados com frequência, mas os carros atropelam menos. Nosso homem cordial cumprimenta e mata por ser... cordial.

Existe outra questão: pouco hábito com o contraditório na democracia. Vamos imaginar dois períodos de abertura: 1946–1964 e 1985 em diante. Somando as datas, temos cerca de 56 anos de democracia imperfeita. 56 anos em 523 de história, que constituem uma experiência menor do que a minha vida de articulista. É pouco! A tradição é de ditadura, coronelismo, oligarquias e mandonismo. Formalidades argumentativas esbarram-se nas conhecidas expressões: “Você sabe com quem está falando?”, “Quem é você para me falar assim?” ou “Eu sou filho de fulano...”.

Temos uma forte tradição autoritária; ninguém pode contestar o coronel. O não a um poder monocrático equivale ao risco de violência e até de morte. Os coronéis clássicos da literatura e da novela escasseiam. Seus filhos e netos cobrem todo o território nacional. Há os “neocoronéis” nos departamentos das universidades, nos clubes, nos condomínios, nas igrejas, nas famílias, no transporte público e em outros lugares. Contestados reagem com extrema agressividade, fazendo crer que leram Bossuet; consideram que todo poder emana de Deus.

As fraquezas do ensino brasileiro aumentam a barreira à discussão. Somos bons de briga e ruins no debate.

A política aqui é pouco dada a ideias e muito apaixonada pela “fulanização”. Não queremos correntes e posições, desejamos nomes. “Fulanizar” significa desviar a atenção de uma ideia para a identificação de um nome. Abstraímos pouco, acusamos muito. Quem foi acusado de um comportamento ruim defende-se “fulanizando”.

O que impressiona em um debate, entre nós, é o recurso ad hominem. É uma falácia, mas que sucesso de falácia! Insultos pessoais constituem tática válida para “lacrar”. Assim: “Ele está atacando a autonomia do Banco Central? Impossível! Você soube que a esposa o trai?”. E assim: “Você defende o superávit primário porque é de Santa Catarina!”. Querem mais: “Como você pode ser contra o racismo, se você é branco?”. Focar no campo pessoal é garantia de sucesso dos que acompanham a “treta”.

Construir uma sociedade crítica implica muita maturidade. Meu colega apresentou um trabalho com um tema que eu também pesquiso. Se tenho indicações bibliográficas que o ajudem, forneço. Se ele conclui algo muito diferente do que eu acredito, escuto os argumentos e, se for o caso, apresento os meus. Superada a vaidade da autoria, ficando na ideia científica de um trabalho perfectível, aprimoro-me, ouvindo teses das quais discordo. Não incluo o fígado. Não ataco a pessoa. Não “fulanizo”. Fico no campo das ideias. A pesquisa pode ser boa, mesmo que esse ser humano seja conservador ou de esquerda, católico ou do candomblé, hétero ou gay. Ouvir muito, criticar sem paixão, analisar de acordo com os próprios limites, sem se considerar porta-voz da verdade. Aceitar aprender e, de quando em vez, ensinar. Ninguém perde nesse jogo, pois aquele que tiver mais dados e argumentos mostrará um caminho melhor para seguir. Apegar-se ao remédio que você inventou por pura vaidade, rejeitando um mais avançado, é estupidez forte.

O parágrafo anterior traduziu um ideal. Ainda não chegamos lá. Dentro de nós todos, há um coronel potroso (expressão que aprendi com Gabriel García Márquez), lento e autoritário, cansado na origem e desejoso de ser deixado na cadeira patriarcal que ocupa. Existe um mundo fora de Macondo. Tenho esperança de que consigamos, num dia.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Nunca me esqueço do primeiro congresso internacional de História do qual participei. Eu era um pós-graduando e, como tal, tinha limites claros para uso da palavra diante dos “grandes”. Ouvíamos, em silêncio religioso, os professores. A pirâmide do poder era alta, e eu ficava na base olhando para cima...

Qual foi minha surpresa: doutores titulares, respeitados em grandes universidades, faziam suas falas e, logo em seguida, colegas estrangeiros “desciam a lenha” (adoro a expressão brasileira). Era impressionante: “O trabalho tem méritos, sim, mas é completamente equivocado na conclusão”. Não era uma discreta correção ou suave apontamento: era “porrada” da boa! Eu, brasileiro da gema, imaginava que haveria um duelo armado ao final do encontro. Segunda surpresa: o crítico e o alvo eram vistos, tomando café e sorrindo. Uma diferença com nossa tradição era visível.

Visitante em pavilhão da Feira do Livro de Bogotá em abril de 2015. Foto: Jose Miguel Gomez/Reuters

No Brasil, a crítica é quase sempre vista como pessoal. “Não gostou do que escrevi? Só pode ser meu inimigo; por isso, não podemos mais conversar. Mais: não elogiou em abundância? Também não conte com o meu afeto. Todos os meus amigos devem, em adoração, concordar com tudo aquilo que digo e escrevo. Caso contrário, seriam amigos?” Na Europa e nos EUA são...

As raízes são diversas. Sérgio Buarque apontou nosso caráter cordial, que, nunca é excessivo lembrar, não é de ser cordato e gentil, mas passional, pensando sempre com o coração. Assim, o mesmo povo que sorri sem parar (nós) é o que mata mais no trânsito, em comparação a outros países onde os dentes não são mostrados com frequência, mas os carros atropelam menos. Nosso homem cordial cumprimenta e mata por ser... cordial.

Existe outra questão: pouco hábito com o contraditório na democracia. Vamos imaginar dois períodos de abertura: 1946–1964 e 1985 em diante. Somando as datas, temos cerca de 56 anos de democracia imperfeita. 56 anos em 523 de história, que constituem uma experiência menor do que a minha vida de articulista. É pouco! A tradição é de ditadura, coronelismo, oligarquias e mandonismo. Formalidades argumentativas esbarram-se nas conhecidas expressões: “Você sabe com quem está falando?”, “Quem é você para me falar assim?” ou “Eu sou filho de fulano...”.

Temos uma forte tradição autoritária; ninguém pode contestar o coronel. O não a um poder monocrático equivale ao risco de violência e até de morte. Os coronéis clássicos da literatura e da novela escasseiam. Seus filhos e netos cobrem todo o território nacional. Há os “neocoronéis” nos departamentos das universidades, nos clubes, nos condomínios, nas igrejas, nas famílias, no transporte público e em outros lugares. Contestados reagem com extrema agressividade, fazendo crer que leram Bossuet; consideram que todo poder emana de Deus.

As fraquezas do ensino brasileiro aumentam a barreira à discussão. Somos bons de briga e ruins no debate.

A política aqui é pouco dada a ideias e muito apaixonada pela “fulanização”. Não queremos correntes e posições, desejamos nomes. “Fulanizar” significa desviar a atenção de uma ideia para a identificação de um nome. Abstraímos pouco, acusamos muito. Quem foi acusado de um comportamento ruim defende-se “fulanizando”.

O que impressiona em um debate, entre nós, é o recurso ad hominem. É uma falácia, mas que sucesso de falácia! Insultos pessoais constituem tática válida para “lacrar”. Assim: “Ele está atacando a autonomia do Banco Central? Impossível! Você soube que a esposa o trai?”. E assim: “Você defende o superávit primário porque é de Santa Catarina!”. Querem mais: “Como você pode ser contra o racismo, se você é branco?”. Focar no campo pessoal é garantia de sucesso dos que acompanham a “treta”.

Construir uma sociedade crítica implica muita maturidade. Meu colega apresentou um trabalho com um tema que eu também pesquiso. Se tenho indicações bibliográficas que o ajudem, forneço. Se ele conclui algo muito diferente do que eu acredito, escuto os argumentos e, se for o caso, apresento os meus. Superada a vaidade da autoria, ficando na ideia científica de um trabalho perfectível, aprimoro-me, ouvindo teses das quais discordo. Não incluo o fígado. Não ataco a pessoa. Não “fulanizo”. Fico no campo das ideias. A pesquisa pode ser boa, mesmo que esse ser humano seja conservador ou de esquerda, católico ou do candomblé, hétero ou gay. Ouvir muito, criticar sem paixão, analisar de acordo com os próprios limites, sem se considerar porta-voz da verdade. Aceitar aprender e, de quando em vez, ensinar. Ninguém perde nesse jogo, pois aquele que tiver mais dados e argumentos mostrará um caminho melhor para seguir. Apegar-se ao remédio que você inventou por pura vaidade, rejeitando um mais avançado, é estupidez forte.

O parágrafo anterior traduziu um ideal. Ainda não chegamos lá. Dentro de nós todos, há um coronel potroso (expressão que aprendi com Gabriel García Márquez), lento e autoritário, cansado na origem e desejoso de ser deixado na cadeira patriarcal que ocupa. Existe um mundo fora de Macondo. Tenho esperança de que consigamos, num dia.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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