Estes dois autores são professores de ciência política em Harvard. Ficaram famosos há alguns anos, com o livro Como as Democracias Morrem (Ed. Zahar). Steven Levitsky e Daniel Ziblatt trabalhavam, naquela obra de 2018, com a figura de Trump, um presidente que subverteu várias lógicas tradicionais da política de Washington. Se a democracia clássica enfrentava risco com golpes violentos no passado, agora ela padece vivendo as regras do sistema eleitoral. O livro foi de enorme influência, desde o lançamento.
Passados alguns anos, os dois professores voltam ao tema, com a obra Como Salvar a Democracia (Ed. Zahar). Ela incorpora novos acontecimentos e busca soluções, não apenas o diagnóstico da crise. O primeiro livro teria sido uma bateria de exames; o segundo indica remédios para a doença política.
O ponto de partida foi a eleição de um senador negro (usam o termo afro-americano) e de outro judeu, na Geórgia (região problemática de debates raciais antigos). Foi no dia 5 de janeiro de 2021. A presença do pastor Raphael Warnock e de Jon Ossof era um furacão que parecia deixar os piores momentos dos discursos trumpistas para trás. Alguém poderia ter sonhado que o discurso famoso de Martin Luther King (“I Have a Dream”) realizara-se e, com isso, as crianças de origens variadas poderiam andar pelas colinas vermelhas da Geórgia.
A lufada de esperança enfrentou um obstáculo assustador: no dia seguinte, 6 de janeiro de 2021, algo inacreditável ocorreu. Um grupo de radicais invadiu o Capitólio, interrompendo a sessão de confirmação da vitória de Joe Biden. Em uma sucessão de horrores, quebraram, agrediram e vandalizaram o prédio, com várias outras pessoas tentando impedir o vandalismo. A mais antiga democracia das Américas viveu seu dia de Banana Republic. Centenas foram indiciadas e presas. Debateu-se muito se o presidente derrotado, Donald Trump, teria participação na tentativa de golpe.
Os poderes constitucionais dos EUA reagiram. O mundo ficou estarrecido.
Parte do Brasil olhou para a tragédia setentrional de 6 de janeiro de 2021 e criou sua farsa, no dia 8 de janeiro de 2023. Porém, o tema da crônica é o livro, não o pastiche tropical.
Um dos eixos dos autores é a reação à diversidade crescente das sociedades. Como a democracia pode incorporar e fazer dialogar grupos distintos? Como os grupos que concorrem podem entender a derrota em uma eleição, porque existe uma vontade soberana, mas não o fim do mundo? Como lidar com a diversidade?
Usando método de perspectiva comparada em história, eles voltam a fevereiro de 1934, na França. Grupos conservadores e xenófobos promoveram agitações nas ruas de Paris e atacaram a Assembleia Nacional. Eram variados, incluindo alguns (mas não todos) fascistas declarados. Gritavam: “A França para os franceses!”
Ameaçavam matar os deputados, alegando que eles eram fracos e corrompidos. Era uma tentativa de golpe por grupos que se anunciavam, como as “jeunesses patriotes”, absolutamente “nacionalistas e devotados à França”. Mataram pessoas. Quase jogaram um ministro no Rio Sena. A democracia francesa sobreviveu ao vandalismo radical de 6 de fevereiro de 1934.
Usando esses e outros exemplos, os autores buscam as raízes da corrosão autoritária. Há acusações diretas. O capítulo 4 tem o título “Por que o Partido Republicano Abandonou a Democracia?”, em uma análise forte com nomes e ações concretas.
Como incorporar grupos variados? Como garantir ordem e respeito às instituições, sem injustiças? Quais são as minorias e como dialogam com a maioria? A resposta vem da tradição dos Artigos Federalistas, do fim do século 18, no texto conhecido de Alexis de Tocqueville (A Democracia na América) e de outro menos conhecido no Brasil, A Comunidade Americana (do escocês James Bryce, no original: The American Commonwealth, 1888).
A resposta dos professores de Harvard é a questão de um governo, de fato, multirracial não apenas nas leis, mas igualmente em todas as práticas e representações. Isso salvaria a democracia dos EUA. Em tom quase messiânico, encerram com uma convocação, na página 233: “Precisamos evitar o erro de nos afastarmos da vida pública por exaustão. Forças pró-democráticas alcançaram vitórias importantes em 2020 e 2022, mas os fatores responsáveis pelo recente retrocesso dos Estados Unidos – uma minoria partidária radicalizada e instituições que a protegem e fortalecem – persistem. A democracia continua à deriva. A história nos convoca novamente”.
Penso que a democracia não é um lugar fixo, mas uma caminhada árdua. Está mais próxima de uma escada do que de um pódio. Para os autores, o que foi feito, ampliando o direito de voto aos pobres brancos, depois a negros e mulheres, fez parte dessa expansão. O trabalho continua.
Como dizem na epígrafe, a nação não está quebrada, “apenas inacabada”. Eu tenho esperança na nossa democracia. Ingenuidade?