Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Dona Florinda pede comida


As distinções sociais ficaram difusas. Não me refiro ao dinheiro, mas às molduras sociais

Por Leandro Karnal

Uma cena que se repete: um entregador de comida é maltratado pela pessoa que encomendou. É um déjà-vu eterno. Toda semana, há um novo episódio. O que está ocorrendo?

Alguém soltará um suspiro saudosista: “Antigamente, as pessoas eram mais educadas”. Sim, havia mais fórmulas de comportamento polido. No entanto, reconheçamos – não eram regras para ser aplicadas a todo mundo. Vejamos algumas normas do campo da etiqueta tradicional: “Ao chegar pela primeira vez a uma casa, leve um presente. Cumprimente as pessoas, olhando nos olhos. Pergunte se estão bem. Agradeça a consideração. Elogie a casa. Jamais critique a comida ou os móveis. Retribua o convite, recebendo-as na sua residência”. Eram princípios lindos de uma vida harmoniosa, mas, forçoso pensar, surgiam da horizontalidade social e só diziam respeito a pessoas que se acreditavam da mesma categoria. Vamos a uma expressão antiga: “Não grite comigo, porque eu não sou sua empregada”. O sentido é lógico: com a empregada, você pode gritar. “Sou o proprietário deste imóvel e devo ser respeitado.” A etiqueta derivava, em parte, da escritura do apartamento. Respeito era uma categoria mais financeira do que humana.

Lívia Andrade e Felipe Levoto como Dona Florinda e Seu Madruga em especial de homenagem a 'Chaves' feito pelo SBT em 2011 Foto: Arthur Igrecias/SBT/Divulgação
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O mundo foi transformado, e as distinções sociais ficaram mais difusas. Não me refiro ao dinheiro: ele continua bastante concentrado como sempre. Refiro-me às molduras sociais. Não temos por comuns, entre nós, nobres de nascimento. Para comer em um lugar caro, basta ter recursos financeiros; nenhuma linhagem é exigida. Pior: um influencer famoso da internet terá mais facilidade com a reserva do que Dona Maria Antônia de Andrade Motta Siqueira e Prado, paulista quatrocentona e descendente de uma família bandeirante. “Oh tempora, oh mores!” – proclamará Dona Maria Antônia, em memória ao latim do Colégio Des Oiseaux. “É nóis na fita!” – dirá o influencer que nem sabe onde ficava o instituto educacional aristocrático. O mundo, como diria Christopher Hill, está de “ponta-cabeça”.

Sem limites claros, sem códigos evidentes de roupas e de costumes, sem brasões, a diferença social agarra-se ao material em si. Fica mais difícil me isolar da massa. Só tenho a casa, o apartamento, o carro ou a renda para me considerar especial. Fazer um espaço de identidade que me afaste da plebe é uma aspiração antiga no Brasil. Não importa que tenha vindo de terceira classe, no porão de um cargueiro: meus ancestrais eram europeus. Nos trópicos, minha alvura deveria ser um distintivo, pensam os membros do precariado. O neologismo serve para os adultos altamente escolarizados que sentem insegurança, pois não possuem milhões em um banco em Genebra. Trabalham, têm alguma renda, mas vivem sem lastros firmes e apresentam pavor à ideia de declínio.

Quando eu marco uma comida em um aplicativo, sinto-me um duque inglês, pedindo meu chá Darjeeling com sanduíche de pepino. Ao embarcar em um voo, faço o ar blasé de um aristocrata no cais do Le Havre, prestes a um passeio ao redor do mundo. Só que... não. O meu chá da nobreza é uma pizza amolecida pelo vapor e chega em uma moto velha. Por vezes, “The horror, the horror!” – eu tenho de descer à portaria e dialogar com um trabalhador que não está trajado à altura do meu moletom. Como Dona Florinda, a mãe do Kiko, no seriado mexicano Chaves, eu estou na mesma vila de todo mundo, mas, como tenho uma pequena pensão do meu falecido esposo, recomendo ao meu rebento que “não se misture com esta gentalha”. A dor da Dona Florinda é ser gentalha também, precariado puro. A única alegria dela, com vida social e sexual deficitárias, é humilhar seu Madruga e similares para se sentir melhor.

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O mundo é líquido, e hierarquias oscilam muito. Pedir uma comida barata significa algo prático. Implica também que não tenho muitos empregados em casa, elaborando pratos sofisticados. Uma vida prática, com pouco tempo, limitada em recursos, lançou-me aos aplicativos de comida. Mas... eu ainda sou Dona Florinda e “não me misturo com esta gentalha”.

Vivemos em um mundo de grosserias, porque temos receios. O medo gera ogros raivosos. O ressentimento volta-se para a política, para as redes sociais e para o entregador. Aquele rapaz que pedala ou dirige a moto é o símbolo de tudo o que eu tento evitar. Se eu demonstrar minha indignação com ele, estarei um pouco menos pesaroso em relação à minha memória de precariado. O que meu restou? O pugilato com quem não pode se defender. Isso é meu reconhecimento de fraqueza, do meu fracasso e, por saber disso, fico ainda mais irado. Cada pizza amolecida remete-me ao que jamais tive, mas que fantasio como instrumento de transferência. Sim, Dona Florinda está sempre com os bobes, porque um dia sairá dali arrumada e feliz. Provavelmente, nunca escapará da vila. No entanto, o destino deu-lhe ao menos um consolo: poder humilhar a gentalha anônima que a lembra, a cada entrega, que ela também é uma fracassada. Esperança? Isso o aplicativo não entrega. Tem de ser construído.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS.

Uma cena que se repete: um entregador de comida é maltratado pela pessoa que encomendou. É um déjà-vu eterno. Toda semana, há um novo episódio. O que está ocorrendo?

Alguém soltará um suspiro saudosista: “Antigamente, as pessoas eram mais educadas”. Sim, havia mais fórmulas de comportamento polido. No entanto, reconheçamos – não eram regras para ser aplicadas a todo mundo. Vejamos algumas normas do campo da etiqueta tradicional: “Ao chegar pela primeira vez a uma casa, leve um presente. Cumprimente as pessoas, olhando nos olhos. Pergunte se estão bem. Agradeça a consideração. Elogie a casa. Jamais critique a comida ou os móveis. Retribua o convite, recebendo-as na sua residência”. Eram princípios lindos de uma vida harmoniosa, mas, forçoso pensar, surgiam da horizontalidade social e só diziam respeito a pessoas que se acreditavam da mesma categoria. Vamos a uma expressão antiga: “Não grite comigo, porque eu não sou sua empregada”. O sentido é lógico: com a empregada, você pode gritar. “Sou o proprietário deste imóvel e devo ser respeitado.” A etiqueta derivava, em parte, da escritura do apartamento. Respeito era uma categoria mais financeira do que humana.

Lívia Andrade e Felipe Levoto como Dona Florinda e Seu Madruga em especial de homenagem a 'Chaves' feito pelo SBT em 2011 Foto: Arthur Igrecias/SBT/Divulgação

O mundo foi transformado, e as distinções sociais ficaram mais difusas. Não me refiro ao dinheiro: ele continua bastante concentrado como sempre. Refiro-me às molduras sociais. Não temos por comuns, entre nós, nobres de nascimento. Para comer em um lugar caro, basta ter recursos financeiros; nenhuma linhagem é exigida. Pior: um influencer famoso da internet terá mais facilidade com a reserva do que Dona Maria Antônia de Andrade Motta Siqueira e Prado, paulista quatrocentona e descendente de uma família bandeirante. “Oh tempora, oh mores!” – proclamará Dona Maria Antônia, em memória ao latim do Colégio Des Oiseaux. “É nóis na fita!” – dirá o influencer que nem sabe onde ficava o instituto educacional aristocrático. O mundo, como diria Christopher Hill, está de “ponta-cabeça”.

Sem limites claros, sem códigos evidentes de roupas e de costumes, sem brasões, a diferença social agarra-se ao material em si. Fica mais difícil me isolar da massa. Só tenho a casa, o apartamento, o carro ou a renda para me considerar especial. Fazer um espaço de identidade que me afaste da plebe é uma aspiração antiga no Brasil. Não importa que tenha vindo de terceira classe, no porão de um cargueiro: meus ancestrais eram europeus. Nos trópicos, minha alvura deveria ser um distintivo, pensam os membros do precariado. O neologismo serve para os adultos altamente escolarizados que sentem insegurança, pois não possuem milhões em um banco em Genebra. Trabalham, têm alguma renda, mas vivem sem lastros firmes e apresentam pavor à ideia de declínio.

Quando eu marco uma comida em um aplicativo, sinto-me um duque inglês, pedindo meu chá Darjeeling com sanduíche de pepino. Ao embarcar em um voo, faço o ar blasé de um aristocrata no cais do Le Havre, prestes a um passeio ao redor do mundo. Só que... não. O meu chá da nobreza é uma pizza amolecida pelo vapor e chega em uma moto velha. Por vezes, “The horror, the horror!” – eu tenho de descer à portaria e dialogar com um trabalhador que não está trajado à altura do meu moletom. Como Dona Florinda, a mãe do Kiko, no seriado mexicano Chaves, eu estou na mesma vila de todo mundo, mas, como tenho uma pequena pensão do meu falecido esposo, recomendo ao meu rebento que “não se misture com esta gentalha”. A dor da Dona Florinda é ser gentalha também, precariado puro. A única alegria dela, com vida social e sexual deficitárias, é humilhar seu Madruga e similares para se sentir melhor.

O mundo é líquido, e hierarquias oscilam muito. Pedir uma comida barata significa algo prático. Implica também que não tenho muitos empregados em casa, elaborando pratos sofisticados. Uma vida prática, com pouco tempo, limitada em recursos, lançou-me aos aplicativos de comida. Mas... eu ainda sou Dona Florinda e “não me misturo com esta gentalha”.

Vivemos em um mundo de grosserias, porque temos receios. O medo gera ogros raivosos. O ressentimento volta-se para a política, para as redes sociais e para o entregador. Aquele rapaz que pedala ou dirige a moto é o símbolo de tudo o que eu tento evitar. Se eu demonstrar minha indignação com ele, estarei um pouco menos pesaroso em relação à minha memória de precariado. O que meu restou? O pugilato com quem não pode se defender. Isso é meu reconhecimento de fraqueza, do meu fracasso e, por saber disso, fico ainda mais irado. Cada pizza amolecida remete-me ao que jamais tive, mas que fantasio como instrumento de transferência. Sim, Dona Florinda está sempre com os bobes, porque um dia sairá dali arrumada e feliz. Provavelmente, nunca escapará da vila. No entanto, o destino deu-lhe ao menos um consolo: poder humilhar a gentalha anônima que a lembra, a cada entrega, que ela também é uma fracassada. Esperança? Isso o aplicativo não entrega. Tem de ser construído.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS.

Uma cena que se repete: um entregador de comida é maltratado pela pessoa que encomendou. É um déjà-vu eterno. Toda semana, há um novo episódio. O que está ocorrendo?

Alguém soltará um suspiro saudosista: “Antigamente, as pessoas eram mais educadas”. Sim, havia mais fórmulas de comportamento polido. No entanto, reconheçamos – não eram regras para ser aplicadas a todo mundo. Vejamos algumas normas do campo da etiqueta tradicional: “Ao chegar pela primeira vez a uma casa, leve um presente. Cumprimente as pessoas, olhando nos olhos. Pergunte se estão bem. Agradeça a consideração. Elogie a casa. Jamais critique a comida ou os móveis. Retribua o convite, recebendo-as na sua residência”. Eram princípios lindos de uma vida harmoniosa, mas, forçoso pensar, surgiam da horizontalidade social e só diziam respeito a pessoas que se acreditavam da mesma categoria. Vamos a uma expressão antiga: “Não grite comigo, porque eu não sou sua empregada”. O sentido é lógico: com a empregada, você pode gritar. “Sou o proprietário deste imóvel e devo ser respeitado.” A etiqueta derivava, em parte, da escritura do apartamento. Respeito era uma categoria mais financeira do que humana.

Lívia Andrade e Felipe Levoto como Dona Florinda e Seu Madruga em especial de homenagem a 'Chaves' feito pelo SBT em 2011 Foto: Arthur Igrecias/SBT/Divulgação

O mundo foi transformado, e as distinções sociais ficaram mais difusas. Não me refiro ao dinheiro: ele continua bastante concentrado como sempre. Refiro-me às molduras sociais. Não temos por comuns, entre nós, nobres de nascimento. Para comer em um lugar caro, basta ter recursos financeiros; nenhuma linhagem é exigida. Pior: um influencer famoso da internet terá mais facilidade com a reserva do que Dona Maria Antônia de Andrade Motta Siqueira e Prado, paulista quatrocentona e descendente de uma família bandeirante. “Oh tempora, oh mores!” – proclamará Dona Maria Antônia, em memória ao latim do Colégio Des Oiseaux. “É nóis na fita!” – dirá o influencer que nem sabe onde ficava o instituto educacional aristocrático. O mundo, como diria Christopher Hill, está de “ponta-cabeça”.

Sem limites claros, sem códigos evidentes de roupas e de costumes, sem brasões, a diferença social agarra-se ao material em si. Fica mais difícil me isolar da massa. Só tenho a casa, o apartamento, o carro ou a renda para me considerar especial. Fazer um espaço de identidade que me afaste da plebe é uma aspiração antiga no Brasil. Não importa que tenha vindo de terceira classe, no porão de um cargueiro: meus ancestrais eram europeus. Nos trópicos, minha alvura deveria ser um distintivo, pensam os membros do precariado. O neologismo serve para os adultos altamente escolarizados que sentem insegurança, pois não possuem milhões em um banco em Genebra. Trabalham, têm alguma renda, mas vivem sem lastros firmes e apresentam pavor à ideia de declínio.

Quando eu marco uma comida em um aplicativo, sinto-me um duque inglês, pedindo meu chá Darjeeling com sanduíche de pepino. Ao embarcar em um voo, faço o ar blasé de um aristocrata no cais do Le Havre, prestes a um passeio ao redor do mundo. Só que... não. O meu chá da nobreza é uma pizza amolecida pelo vapor e chega em uma moto velha. Por vezes, “The horror, the horror!” – eu tenho de descer à portaria e dialogar com um trabalhador que não está trajado à altura do meu moletom. Como Dona Florinda, a mãe do Kiko, no seriado mexicano Chaves, eu estou na mesma vila de todo mundo, mas, como tenho uma pequena pensão do meu falecido esposo, recomendo ao meu rebento que “não se misture com esta gentalha”. A dor da Dona Florinda é ser gentalha também, precariado puro. A única alegria dela, com vida social e sexual deficitárias, é humilhar seu Madruga e similares para se sentir melhor.

O mundo é líquido, e hierarquias oscilam muito. Pedir uma comida barata significa algo prático. Implica também que não tenho muitos empregados em casa, elaborando pratos sofisticados. Uma vida prática, com pouco tempo, limitada em recursos, lançou-me aos aplicativos de comida. Mas... eu ainda sou Dona Florinda e “não me misturo com esta gentalha”.

Vivemos em um mundo de grosserias, porque temos receios. O medo gera ogros raivosos. O ressentimento volta-se para a política, para as redes sociais e para o entregador. Aquele rapaz que pedala ou dirige a moto é o símbolo de tudo o que eu tento evitar. Se eu demonstrar minha indignação com ele, estarei um pouco menos pesaroso em relação à minha memória de precariado. O que meu restou? O pugilato com quem não pode se defender. Isso é meu reconhecimento de fraqueza, do meu fracasso e, por saber disso, fico ainda mais irado. Cada pizza amolecida remete-me ao que jamais tive, mas que fantasio como instrumento de transferência. Sim, Dona Florinda está sempre com os bobes, porque um dia sairá dali arrumada e feliz. Provavelmente, nunca escapará da vila. No entanto, o destino deu-lhe ao menos um consolo: poder humilhar a gentalha anônima que a lembra, a cada entrega, que ela também é uma fracassada. Esperança? Isso o aplicativo não entrega. Tem de ser construído.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS.

Uma cena que se repete: um entregador de comida é maltratado pela pessoa que encomendou. É um déjà-vu eterno. Toda semana, há um novo episódio. O que está ocorrendo?

Alguém soltará um suspiro saudosista: “Antigamente, as pessoas eram mais educadas”. Sim, havia mais fórmulas de comportamento polido. No entanto, reconheçamos – não eram regras para ser aplicadas a todo mundo. Vejamos algumas normas do campo da etiqueta tradicional: “Ao chegar pela primeira vez a uma casa, leve um presente. Cumprimente as pessoas, olhando nos olhos. Pergunte se estão bem. Agradeça a consideração. Elogie a casa. Jamais critique a comida ou os móveis. Retribua o convite, recebendo-as na sua residência”. Eram princípios lindos de uma vida harmoniosa, mas, forçoso pensar, surgiam da horizontalidade social e só diziam respeito a pessoas que se acreditavam da mesma categoria. Vamos a uma expressão antiga: “Não grite comigo, porque eu não sou sua empregada”. O sentido é lógico: com a empregada, você pode gritar. “Sou o proprietário deste imóvel e devo ser respeitado.” A etiqueta derivava, em parte, da escritura do apartamento. Respeito era uma categoria mais financeira do que humana.

Lívia Andrade e Felipe Levoto como Dona Florinda e Seu Madruga em especial de homenagem a 'Chaves' feito pelo SBT em 2011 Foto: Arthur Igrecias/SBT/Divulgação

O mundo foi transformado, e as distinções sociais ficaram mais difusas. Não me refiro ao dinheiro: ele continua bastante concentrado como sempre. Refiro-me às molduras sociais. Não temos por comuns, entre nós, nobres de nascimento. Para comer em um lugar caro, basta ter recursos financeiros; nenhuma linhagem é exigida. Pior: um influencer famoso da internet terá mais facilidade com a reserva do que Dona Maria Antônia de Andrade Motta Siqueira e Prado, paulista quatrocentona e descendente de uma família bandeirante. “Oh tempora, oh mores!” – proclamará Dona Maria Antônia, em memória ao latim do Colégio Des Oiseaux. “É nóis na fita!” – dirá o influencer que nem sabe onde ficava o instituto educacional aristocrático. O mundo, como diria Christopher Hill, está de “ponta-cabeça”.

Sem limites claros, sem códigos evidentes de roupas e de costumes, sem brasões, a diferença social agarra-se ao material em si. Fica mais difícil me isolar da massa. Só tenho a casa, o apartamento, o carro ou a renda para me considerar especial. Fazer um espaço de identidade que me afaste da plebe é uma aspiração antiga no Brasil. Não importa que tenha vindo de terceira classe, no porão de um cargueiro: meus ancestrais eram europeus. Nos trópicos, minha alvura deveria ser um distintivo, pensam os membros do precariado. O neologismo serve para os adultos altamente escolarizados que sentem insegurança, pois não possuem milhões em um banco em Genebra. Trabalham, têm alguma renda, mas vivem sem lastros firmes e apresentam pavor à ideia de declínio.

Quando eu marco uma comida em um aplicativo, sinto-me um duque inglês, pedindo meu chá Darjeeling com sanduíche de pepino. Ao embarcar em um voo, faço o ar blasé de um aristocrata no cais do Le Havre, prestes a um passeio ao redor do mundo. Só que... não. O meu chá da nobreza é uma pizza amolecida pelo vapor e chega em uma moto velha. Por vezes, “The horror, the horror!” – eu tenho de descer à portaria e dialogar com um trabalhador que não está trajado à altura do meu moletom. Como Dona Florinda, a mãe do Kiko, no seriado mexicano Chaves, eu estou na mesma vila de todo mundo, mas, como tenho uma pequena pensão do meu falecido esposo, recomendo ao meu rebento que “não se misture com esta gentalha”. A dor da Dona Florinda é ser gentalha também, precariado puro. A única alegria dela, com vida social e sexual deficitárias, é humilhar seu Madruga e similares para se sentir melhor.

O mundo é líquido, e hierarquias oscilam muito. Pedir uma comida barata significa algo prático. Implica também que não tenho muitos empregados em casa, elaborando pratos sofisticados. Uma vida prática, com pouco tempo, limitada em recursos, lançou-me aos aplicativos de comida. Mas... eu ainda sou Dona Florinda e “não me misturo com esta gentalha”.

Vivemos em um mundo de grosserias, porque temos receios. O medo gera ogros raivosos. O ressentimento volta-se para a política, para as redes sociais e para o entregador. Aquele rapaz que pedala ou dirige a moto é o símbolo de tudo o que eu tento evitar. Se eu demonstrar minha indignação com ele, estarei um pouco menos pesaroso em relação à minha memória de precariado. O que meu restou? O pugilato com quem não pode se defender. Isso é meu reconhecimento de fraqueza, do meu fracasso e, por saber disso, fico ainda mais irado. Cada pizza amolecida remete-me ao que jamais tive, mas que fantasio como instrumento de transferência. Sim, Dona Florinda está sempre com os bobes, porque um dia sairá dali arrumada e feliz. Provavelmente, nunca escapará da vila. No entanto, o destino deu-lhe ao menos um consolo: poder humilhar a gentalha anônima que a lembra, a cada entrega, que ela também é uma fracassada. Esperança? Isso o aplicativo não entrega. Tem de ser construído.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS.

Uma cena que se repete: um entregador de comida é maltratado pela pessoa que encomendou. É um déjà-vu eterno. Toda semana, há um novo episódio. O que está ocorrendo?

Alguém soltará um suspiro saudosista: “Antigamente, as pessoas eram mais educadas”. Sim, havia mais fórmulas de comportamento polido. No entanto, reconheçamos – não eram regras para ser aplicadas a todo mundo. Vejamos algumas normas do campo da etiqueta tradicional: “Ao chegar pela primeira vez a uma casa, leve um presente. Cumprimente as pessoas, olhando nos olhos. Pergunte se estão bem. Agradeça a consideração. Elogie a casa. Jamais critique a comida ou os móveis. Retribua o convite, recebendo-as na sua residência”. Eram princípios lindos de uma vida harmoniosa, mas, forçoso pensar, surgiam da horizontalidade social e só diziam respeito a pessoas que se acreditavam da mesma categoria. Vamos a uma expressão antiga: “Não grite comigo, porque eu não sou sua empregada”. O sentido é lógico: com a empregada, você pode gritar. “Sou o proprietário deste imóvel e devo ser respeitado.” A etiqueta derivava, em parte, da escritura do apartamento. Respeito era uma categoria mais financeira do que humana.

Lívia Andrade e Felipe Levoto como Dona Florinda e Seu Madruga em especial de homenagem a 'Chaves' feito pelo SBT em 2011 Foto: Arthur Igrecias/SBT/Divulgação

O mundo foi transformado, e as distinções sociais ficaram mais difusas. Não me refiro ao dinheiro: ele continua bastante concentrado como sempre. Refiro-me às molduras sociais. Não temos por comuns, entre nós, nobres de nascimento. Para comer em um lugar caro, basta ter recursos financeiros; nenhuma linhagem é exigida. Pior: um influencer famoso da internet terá mais facilidade com a reserva do que Dona Maria Antônia de Andrade Motta Siqueira e Prado, paulista quatrocentona e descendente de uma família bandeirante. “Oh tempora, oh mores!” – proclamará Dona Maria Antônia, em memória ao latim do Colégio Des Oiseaux. “É nóis na fita!” – dirá o influencer que nem sabe onde ficava o instituto educacional aristocrático. O mundo, como diria Christopher Hill, está de “ponta-cabeça”.

Sem limites claros, sem códigos evidentes de roupas e de costumes, sem brasões, a diferença social agarra-se ao material em si. Fica mais difícil me isolar da massa. Só tenho a casa, o apartamento, o carro ou a renda para me considerar especial. Fazer um espaço de identidade que me afaste da plebe é uma aspiração antiga no Brasil. Não importa que tenha vindo de terceira classe, no porão de um cargueiro: meus ancestrais eram europeus. Nos trópicos, minha alvura deveria ser um distintivo, pensam os membros do precariado. O neologismo serve para os adultos altamente escolarizados que sentem insegurança, pois não possuem milhões em um banco em Genebra. Trabalham, têm alguma renda, mas vivem sem lastros firmes e apresentam pavor à ideia de declínio.

Quando eu marco uma comida em um aplicativo, sinto-me um duque inglês, pedindo meu chá Darjeeling com sanduíche de pepino. Ao embarcar em um voo, faço o ar blasé de um aristocrata no cais do Le Havre, prestes a um passeio ao redor do mundo. Só que... não. O meu chá da nobreza é uma pizza amolecida pelo vapor e chega em uma moto velha. Por vezes, “The horror, the horror!” – eu tenho de descer à portaria e dialogar com um trabalhador que não está trajado à altura do meu moletom. Como Dona Florinda, a mãe do Kiko, no seriado mexicano Chaves, eu estou na mesma vila de todo mundo, mas, como tenho uma pequena pensão do meu falecido esposo, recomendo ao meu rebento que “não se misture com esta gentalha”. A dor da Dona Florinda é ser gentalha também, precariado puro. A única alegria dela, com vida social e sexual deficitárias, é humilhar seu Madruga e similares para se sentir melhor.

O mundo é líquido, e hierarquias oscilam muito. Pedir uma comida barata significa algo prático. Implica também que não tenho muitos empregados em casa, elaborando pratos sofisticados. Uma vida prática, com pouco tempo, limitada em recursos, lançou-me aos aplicativos de comida. Mas... eu ainda sou Dona Florinda e “não me misturo com esta gentalha”.

Vivemos em um mundo de grosserias, porque temos receios. O medo gera ogros raivosos. O ressentimento volta-se para a política, para as redes sociais e para o entregador. Aquele rapaz que pedala ou dirige a moto é o símbolo de tudo o que eu tento evitar. Se eu demonstrar minha indignação com ele, estarei um pouco menos pesaroso em relação à minha memória de precariado. O que meu restou? O pugilato com quem não pode se defender. Isso é meu reconhecimento de fraqueza, do meu fracasso e, por saber disso, fico ainda mais irado. Cada pizza amolecida remete-me ao que jamais tive, mas que fantasio como instrumento de transferência. Sim, Dona Florinda está sempre com os bobes, porque um dia sairá dali arrumada e feliz. Provavelmente, nunca escapará da vila. No entanto, o destino deu-lhe ao menos um consolo: poder humilhar a gentalha anônima que a lembra, a cada entrega, que ela também é uma fracassada. Esperança? Isso o aplicativo não entrega. Tem de ser construído.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS.

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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