Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Erra o cético que considera a Bíblia irrelevante: é um livro histórico


Apenas deve ser feita a ressalva de que um livro traduz a visão de um grupo dentro de uma realidade.

Por Leandro Karnal

Setembro é o mês da Bíblia. No último dia do nono mês, celebramos bibliotecários, secretários e tradutores em honra a Jerônimo: o pai do texto bíblico em latim. Aproveito a data para fazer uma pergunta provocativa: a Bíblia é verdadeira?

Werner Keller escreveu E a Bíblia Tinha Razão (Melhoramentos). Li há mais de 40 anos. O livro, muito bem pesquisado, mostra a realidade de cidades e áreas citadas na Bíblia, como a Ur da qual saiu Abraão e vestígios de um dilúvio na Mesopotâmia. A existência real de um rei Herodes que interfere no nascimento de Jesus seria, para o autor, a prova de que os fatos narrados no Antigo e no Novo Testamento seriam verídicos.

Devemos ter alguns cuidados ao ler a obra do alemão. Quando outro autor, Johann Ludwig Heinrich Julius Schliemann (1822-1890), descobriu o que seriam as ruínas da cidade de Troia, ele trouxe à tona que a narrativa homérica dialogava com a história. A Ilíada e parte da Odisseia deixavam de ser um puro devaneio ficcional e tornavam-se uma escrita poética sobre uma guerra que parece ter ocorrido. Porém, isso não implica confirmar a existência de Zeus ou dos deuses gregos descritos nas epopeias homéricas. Há uma Troia de verdade. Suas muralhas teriam sido construídas pelos deuses Posêidon e Apolo como descreve a mitologia? Helena, a bela, teria habitado seus muros? Isso as escavações não podem demonstrar. Apenas sabemos de uma próspera urbe na região estratégica de passagem entre o Mar Negro e o Egeu. Transfiramos isso para a obra de Keller: existe uma Jericó (até hoje). Suas muralhas teriam caído com as trombetas de Josué? Não encontramos vestígios de muralhas e, mesmo que houvesse, seria difícil determinar a causa do colapso. O cenário real demonstra que as narrativas dialogavam com coisas concretas, a Eneida com Cartago, a Odisseia com a ilha de Ítaca ou a Bíblia sobre Ur e Jericó. Daí, passamos do fato histórico para a fé.

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A pessoa de fé que sobe ao Monte Sinai no atual Egito, que escala o Monte Tabor, que faz o caminho de Abraão do atual Iraque a Israel, que contempla Jerusalém do Monte das Oliveiras, sente uma emoção intensa. Estes são os lugares especiais! Fiz a experiência com alunos ao lado do Mar da Galileia. Li todos os episódios que os Evangelhos narram sobre aquele lago. Estávamos em um hotel chamado Saint Andrew. Naquele pôr do sol, algumas pessoas choraram. Aquela água era um fato, o resto era complementado pela fé. Isso não é errado e jamais pode ser alvo de crítica. Vejam: visitar o local onde Santo Antônio nasceu em Portugal não comprova seus milagres, apenas traz uma peça concreta sobre um homem do século 13. Fernando Martins de Bulhões, depois conhecido como Antônio de Lisboa ou de Pádua, foi alguém real. Temos até os ossos dele! Temos a língua preservada! Tentei explicar o ponto de vista do historiador sobre provas, não atacar ou diminuir a crença de alguém.

Volto ao tema, agora contestando céticos e antirreligiosos. Não acreditar em Deus ou detestar as igrejas cristãs não diminui o caráter fundamental da Bíblia como livro histórico, literário, filosófico e religioso. Destaco apenas quatro elementos: a) códigos éticos e morais se nutrem da Bíblia há mais de 2.500 anos, desde sua redação formal na Babilônia até o fim do século primeiro da era cristã. Tão importante quanto o Direito Romano, nosso direito bebe de fontes bíblicas. b) As traduções da Bíblia definiram parte da percepção das línguas modernas. Não entenderíamos o alemão sem a tradução feita por Lutero. O inglês, do século 17 em diante, deve muito ao trabalho da comissão que lançou a obra em 1611, a famosa KJV (King James Version). c) A Bíblia define arte e literatura. A Capela Sistina sem a Bíblia é um salão colorido; Esaú e Jacó (Machado de Assis) nasce do livro do Gênesis; a Divina Comédia de Dante cita, em todos os cantos, o texto sagrado. A arte busca inspiração bíblica. d) Nossas práticas sociais do Ocidente comemoram como festas familiares o Natal e a Páscoa, eventos narrados nos Evangelhos. Da mesma forma, o Nordeste brasileiro celebra com ardor São João (São Pedro e São Paulo), santos descritos no Novo Testamento.

Assim, por descrever eventos reais e históricos, a Bíblia é um livro histórico, apenas feita a ressalva de que um livro traduz a visão de um grupo dentro de uma realidade. Por influenciar mais do que qualquer outra obra nossa visão de mundo, a Bíblia adquire o estatuto de livro verdadeiro, não porque todos acreditem que tudo ali narrado ocorreu exatamente assim, mas porque se tornou um objeto considerado real por muita gente e causa efeitos concretos.

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Para um historiador, erra o cético que, não gostando das religiões, considera a Bíblia irrelevante. Da mesma forma, erraria a pessoa de fé que, por aceitar uma crença, endossa como narrativas verídicas e concretas tudo que estiver no livro que venera.

Minha esperança é a de que todos possam concordar que a leitura de um livro fundamental, como a Bíblia, é boa para céticos, ateus e religiosos. Sem a Bíblia, nossa história teria sido outra.

Encenação da Via Sacra de Jesus Cristo no Morro da Capelinha, em Planaltina, no Distrito Federal, em abril de 2023. Foto: Wilton Junior/Estadão

Setembro é o mês da Bíblia. No último dia do nono mês, celebramos bibliotecários, secretários e tradutores em honra a Jerônimo: o pai do texto bíblico em latim. Aproveito a data para fazer uma pergunta provocativa: a Bíblia é verdadeira?

Werner Keller escreveu E a Bíblia Tinha Razão (Melhoramentos). Li há mais de 40 anos. O livro, muito bem pesquisado, mostra a realidade de cidades e áreas citadas na Bíblia, como a Ur da qual saiu Abraão e vestígios de um dilúvio na Mesopotâmia. A existência real de um rei Herodes que interfere no nascimento de Jesus seria, para o autor, a prova de que os fatos narrados no Antigo e no Novo Testamento seriam verídicos.

Devemos ter alguns cuidados ao ler a obra do alemão. Quando outro autor, Johann Ludwig Heinrich Julius Schliemann (1822-1890), descobriu o que seriam as ruínas da cidade de Troia, ele trouxe à tona que a narrativa homérica dialogava com a história. A Ilíada e parte da Odisseia deixavam de ser um puro devaneio ficcional e tornavam-se uma escrita poética sobre uma guerra que parece ter ocorrido. Porém, isso não implica confirmar a existência de Zeus ou dos deuses gregos descritos nas epopeias homéricas. Há uma Troia de verdade. Suas muralhas teriam sido construídas pelos deuses Posêidon e Apolo como descreve a mitologia? Helena, a bela, teria habitado seus muros? Isso as escavações não podem demonstrar. Apenas sabemos de uma próspera urbe na região estratégica de passagem entre o Mar Negro e o Egeu. Transfiramos isso para a obra de Keller: existe uma Jericó (até hoje). Suas muralhas teriam caído com as trombetas de Josué? Não encontramos vestígios de muralhas e, mesmo que houvesse, seria difícil determinar a causa do colapso. O cenário real demonstra que as narrativas dialogavam com coisas concretas, a Eneida com Cartago, a Odisseia com a ilha de Ítaca ou a Bíblia sobre Ur e Jericó. Daí, passamos do fato histórico para a fé.

A pessoa de fé que sobe ao Monte Sinai no atual Egito, que escala o Monte Tabor, que faz o caminho de Abraão do atual Iraque a Israel, que contempla Jerusalém do Monte das Oliveiras, sente uma emoção intensa. Estes são os lugares especiais! Fiz a experiência com alunos ao lado do Mar da Galileia. Li todos os episódios que os Evangelhos narram sobre aquele lago. Estávamos em um hotel chamado Saint Andrew. Naquele pôr do sol, algumas pessoas choraram. Aquela água era um fato, o resto era complementado pela fé. Isso não é errado e jamais pode ser alvo de crítica. Vejam: visitar o local onde Santo Antônio nasceu em Portugal não comprova seus milagres, apenas traz uma peça concreta sobre um homem do século 13. Fernando Martins de Bulhões, depois conhecido como Antônio de Lisboa ou de Pádua, foi alguém real. Temos até os ossos dele! Temos a língua preservada! Tentei explicar o ponto de vista do historiador sobre provas, não atacar ou diminuir a crença de alguém.

Volto ao tema, agora contestando céticos e antirreligiosos. Não acreditar em Deus ou detestar as igrejas cristãs não diminui o caráter fundamental da Bíblia como livro histórico, literário, filosófico e religioso. Destaco apenas quatro elementos: a) códigos éticos e morais se nutrem da Bíblia há mais de 2.500 anos, desde sua redação formal na Babilônia até o fim do século primeiro da era cristã. Tão importante quanto o Direito Romano, nosso direito bebe de fontes bíblicas. b) As traduções da Bíblia definiram parte da percepção das línguas modernas. Não entenderíamos o alemão sem a tradução feita por Lutero. O inglês, do século 17 em diante, deve muito ao trabalho da comissão que lançou a obra em 1611, a famosa KJV (King James Version). c) A Bíblia define arte e literatura. A Capela Sistina sem a Bíblia é um salão colorido; Esaú e Jacó (Machado de Assis) nasce do livro do Gênesis; a Divina Comédia de Dante cita, em todos os cantos, o texto sagrado. A arte busca inspiração bíblica. d) Nossas práticas sociais do Ocidente comemoram como festas familiares o Natal e a Páscoa, eventos narrados nos Evangelhos. Da mesma forma, o Nordeste brasileiro celebra com ardor São João (São Pedro e São Paulo), santos descritos no Novo Testamento.

Assim, por descrever eventos reais e históricos, a Bíblia é um livro histórico, apenas feita a ressalva de que um livro traduz a visão de um grupo dentro de uma realidade. Por influenciar mais do que qualquer outra obra nossa visão de mundo, a Bíblia adquire o estatuto de livro verdadeiro, não porque todos acreditem que tudo ali narrado ocorreu exatamente assim, mas porque se tornou um objeto considerado real por muita gente e causa efeitos concretos.

Para um historiador, erra o cético que, não gostando das religiões, considera a Bíblia irrelevante. Da mesma forma, erraria a pessoa de fé que, por aceitar uma crença, endossa como narrativas verídicas e concretas tudo que estiver no livro que venera.

Minha esperança é a de que todos possam concordar que a leitura de um livro fundamental, como a Bíblia, é boa para céticos, ateus e religiosos. Sem a Bíblia, nossa história teria sido outra.

Encenação da Via Sacra de Jesus Cristo no Morro da Capelinha, em Planaltina, no Distrito Federal, em abril de 2023. Foto: Wilton Junior/Estadão

Setembro é o mês da Bíblia. No último dia do nono mês, celebramos bibliotecários, secretários e tradutores em honra a Jerônimo: o pai do texto bíblico em latim. Aproveito a data para fazer uma pergunta provocativa: a Bíblia é verdadeira?

Werner Keller escreveu E a Bíblia Tinha Razão (Melhoramentos). Li há mais de 40 anos. O livro, muito bem pesquisado, mostra a realidade de cidades e áreas citadas na Bíblia, como a Ur da qual saiu Abraão e vestígios de um dilúvio na Mesopotâmia. A existência real de um rei Herodes que interfere no nascimento de Jesus seria, para o autor, a prova de que os fatos narrados no Antigo e no Novo Testamento seriam verídicos.

Devemos ter alguns cuidados ao ler a obra do alemão. Quando outro autor, Johann Ludwig Heinrich Julius Schliemann (1822-1890), descobriu o que seriam as ruínas da cidade de Troia, ele trouxe à tona que a narrativa homérica dialogava com a história. A Ilíada e parte da Odisseia deixavam de ser um puro devaneio ficcional e tornavam-se uma escrita poética sobre uma guerra que parece ter ocorrido. Porém, isso não implica confirmar a existência de Zeus ou dos deuses gregos descritos nas epopeias homéricas. Há uma Troia de verdade. Suas muralhas teriam sido construídas pelos deuses Posêidon e Apolo como descreve a mitologia? Helena, a bela, teria habitado seus muros? Isso as escavações não podem demonstrar. Apenas sabemos de uma próspera urbe na região estratégica de passagem entre o Mar Negro e o Egeu. Transfiramos isso para a obra de Keller: existe uma Jericó (até hoje). Suas muralhas teriam caído com as trombetas de Josué? Não encontramos vestígios de muralhas e, mesmo que houvesse, seria difícil determinar a causa do colapso. O cenário real demonstra que as narrativas dialogavam com coisas concretas, a Eneida com Cartago, a Odisseia com a ilha de Ítaca ou a Bíblia sobre Ur e Jericó. Daí, passamos do fato histórico para a fé.

A pessoa de fé que sobe ao Monte Sinai no atual Egito, que escala o Monte Tabor, que faz o caminho de Abraão do atual Iraque a Israel, que contempla Jerusalém do Monte das Oliveiras, sente uma emoção intensa. Estes são os lugares especiais! Fiz a experiência com alunos ao lado do Mar da Galileia. Li todos os episódios que os Evangelhos narram sobre aquele lago. Estávamos em um hotel chamado Saint Andrew. Naquele pôr do sol, algumas pessoas choraram. Aquela água era um fato, o resto era complementado pela fé. Isso não é errado e jamais pode ser alvo de crítica. Vejam: visitar o local onde Santo Antônio nasceu em Portugal não comprova seus milagres, apenas traz uma peça concreta sobre um homem do século 13. Fernando Martins de Bulhões, depois conhecido como Antônio de Lisboa ou de Pádua, foi alguém real. Temos até os ossos dele! Temos a língua preservada! Tentei explicar o ponto de vista do historiador sobre provas, não atacar ou diminuir a crença de alguém.

Volto ao tema, agora contestando céticos e antirreligiosos. Não acreditar em Deus ou detestar as igrejas cristãs não diminui o caráter fundamental da Bíblia como livro histórico, literário, filosófico e religioso. Destaco apenas quatro elementos: a) códigos éticos e morais se nutrem da Bíblia há mais de 2.500 anos, desde sua redação formal na Babilônia até o fim do século primeiro da era cristã. Tão importante quanto o Direito Romano, nosso direito bebe de fontes bíblicas. b) As traduções da Bíblia definiram parte da percepção das línguas modernas. Não entenderíamos o alemão sem a tradução feita por Lutero. O inglês, do século 17 em diante, deve muito ao trabalho da comissão que lançou a obra em 1611, a famosa KJV (King James Version). c) A Bíblia define arte e literatura. A Capela Sistina sem a Bíblia é um salão colorido; Esaú e Jacó (Machado de Assis) nasce do livro do Gênesis; a Divina Comédia de Dante cita, em todos os cantos, o texto sagrado. A arte busca inspiração bíblica. d) Nossas práticas sociais do Ocidente comemoram como festas familiares o Natal e a Páscoa, eventos narrados nos Evangelhos. Da mesma forma, o Nordeste brasileiro celebra com ardor São João (São Pedro e São Paulo), santos descritos no Novo Testamento.

Assim, por descrever eventos reais e históricos, a Bíblia é um livro histórico, apenas feita a ressalva de que um livro traduz a visão de um grupo dentro de uma realidade. Por influenciar mais do que qualquer outra obra nossa visão de mundo, a Bíblia adquire o estatuto de livro verdadeiro, não porque todos acreditem que tudo ali narrado ocorreu exatamente assim, mas porque se tornou um objeto considerado real por muita gente e causa efeitos concretos.

Para um historiador, erra o cético que, não gostando das religiões, considera a Bíblia irrelevante. Da mesma forma, erraria a pessoa de fé que, por aceitar uma crença, endossa como narrativas verídicas e concretas tudo que estiver no livro que venera.

Minha esperança é a de que todos possam concordar que a leitura de um livro fundamental, como a Bíblia, é boa para céticos, ateus e religiosos. Sem a Bíblia, nossa história teria sido outra.

Encenação da Via Sacra de Jesus Cristo no Morro da Capelinha, em Planaltina, no Distrito Federal, em abril de 2023. Foto: Wilton Junior/Estadão

Setembro é o mês da Bíblia. No último dia do nono mês, celebramos bibliotecários, secretários e tradutores em honra a Jerônimo: o pai do texto bíblico em latim. Aproveito a data para fazer uma pergunta provocativa: a Bíblia é verdadeira?

Werner Keller escreveu E a Bíblia Tinha Razão (Melhoramentos). Li há mais de 40 anos. O livro, muito bem pesquisado, mostra a realidade de cidades e áreas citadas na Bíblia, como a Ur da qual saiu Abraão e vestígios de um dilúvio na Mesopotâmia. A existência real de um rei Herodes que interfere no nascimento de Jesus seria, para o autor, a prova de que os fatos narrados no Antigo e no Novo Testamento seriam verídicos.

Devemos ter alguns cuidados ao ler a obra do alemão. Quando outro autor, Johann Ludwig Heinrich Julius Schliemann (1822-1890), descobriu o que seriam as ruínas da cidade de Troia, ele trouxe à tona que a narrativa homérica dialogava com a história. A Ilíada e parte da Odisseia deixavam de ser um puro devaneio ficcional e tornavam-se uma escrita poética sobre uma guerra que parece ter ocorrido. Porém, isso não implica confirmar a existência de Zeus ou dos deuses gregos descritos nas epopeias homéricas. Há uma Troia de verdade. Suas muralhas teriam sido construídas pelos deuses Posêidon e Apolo como descreve a mitologia? Helena, a bela, teria habitado seus muros? Isso as escavações não podem demonstrar. Apenas sabemos de uma próspera urbe na região estratégica de passagem entre o Mar Negro e o Egeu. Transfiramos isso para a obra de Keller: existe uma Jericó (até hoje). Suas muralhas teriam caído com as trombetas de Josué? Não encontramos vestígios de muralhas e, mesmo que houvesse, seria difícil determinar a causa do colapso. O cenário real demonstra que as narrativas dialogavam com coisas concretas, a Eneida com Cartago, a Odisseia com a ilha de Ítaca ou a Bíblia sobre Ur e Jericó. Daí, passamos do fato histórico para a fé.

A pessoa de fé que sobe ao Monte Sinai no atual Egito, que escala o Monte Tabor, que faz o caminho de Abraão do atual Iraque a Israel, que contempla Jerusalém do Monte das Oliveiras, sente uma emoção intensa. Estes são os lugares especiais! Fiz a experiência com alunos ao lado do Mar da Galileia. Li todos os episódios que os Evangelhos narram sobre aquele lago. Estávamos em um hotel chamado Saint Andrew. Naquele pôr do sol, algumas pessoas choraram. Aquela água era um fato, o resto era complementado pela fé. Isso não é errado e jamais pode ser alvo de crítica. Vejam: visitar o local onde Santo Antônio nasceu em Portugal não comprova seus milagres, apenas traz uma peça concreta sobre um homem do século 13. Fernando Martins de Bulhões, depois conhecido como Antônio de Lisboa ou de Pádua, foi alguém real. Temos até os ossos dele! Temos a língua preservada! Tentei explicar o ponto de vista do historiador sobre provas, não atacar ou diminuir a crença de alguém.

Volto ao tema, agora contestando céticos e antirreligiosos. Não acreditar em Deus ou detestar as igrejas cristãs não diminui o caráter fundamental da Bíblia como livro histórico, literário, filosófico e religioso. Destaco apenas quatro elementos: a) códigos éticos e morais se nutrem da Bíblia há mais de 2.500 anos, desde sua redação formal na Babilônia até o fim do século primeiro da era cristã. Tão importante quanto o Direito Romano, nosso direito bebe de fontes bíblicas. b) As traduções da Bíblia definiram parte da percepção das línguas modernas. Não entenderíamos o alemão sem a tradução feita por Lutero. O inglês, do século 17 em diante, deve muito ao trabalho da comissão que lançou a obra em 1611, a famosa KJV (King James Version). c) A Bíblia define arte e literatura. A Capela Sistina sem a Bíblia é um salão colorido; Esaú e Jacó (Machado de Assis) nasce do livro do Gênesis; a Divina Comédia de Dante cita, em todos os cantos, o texto sagrado. A arte busca inspiração bíblica. d) Nossas práticas sociais do Ocidente comemoram como festas familiares o Natal e a Páscoa, eventos narrados nos Evangelhos. Da mesma forma, o Nordeste brasileiro celebra com ardor São João (São Pedro e São Paulo), santos descritos no Novo Testamento.

Assim, por descrever eventos reais e históricos, a Bíblia é um livro histórico, apenas feita a ressalva de que um livro traduz a visão de um grupo dentro de uma realidade. Por influenciar mais do que qualquer outra obra nossa visão de mundo, a Bíblia adquire o estatuto de livro verdadeiro, não porque todos acreditem que tudo ali narrado ocorreu exatamente assim, mas porque se tornou um objeto considerado real por muita gente e causa efeitos concretos.

Para um historiador, erra o cético que, não gostando das religiões, considera a Bíblia irrelevante. Da mesma forma, erraria a pessoa de fé que, por aceitar uma crença, endossa como narrativas verídicas e concretas tudo que estiver no livro que venera.

Minha esperança é a de que todos possam concordar que a leitura de um livro fundamental, como a Bíblia, é boa para céticos, ateus e religiosos. Sem a Bíblia, nossa história teria sido outra.

Encenação da Via Sacra de Jesus Cristo no Morro da Capelinha, em Planaltina, no Distrito Federal, em abril de 2023. Foto: Wilton Junior/Estadão
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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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