Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Há um mundo real, mas a maneira como consigo apreendê-lo depende de questões subjetivas


Os órgãos dos sentidos – como visão, paladar e audição – fluem a partir de treinos e de questões socioambientais. Não se trata apenas de quem ouve melhor, mas como ouve em relação a outras pessoas

Por Leandro Karnal

Um cachorro late.Meu ouvido brasileiro ouve “au-au”. Um amigo dos Estados Unidos diz que escuta “woof-woof”; outro do mesmo país afirma ser “bow-wow”. O coaxar dos sapos à noite soa como “croc-croc”. Em pântanos da América do Norte, dizem que o som é “ribbit-ribbit”. O grilo que emite seu “cri-cri”, no Ibirapuera, canta “chirp-chirp” no Central Park, em Nova York. Disseram-me que o galo, na China, faz “kiau-kiau”. Será verdade? A ave matinal dominaria o mandarim? O mesmo animal muda o som ao cruzar a fronteira? Onomatopeias são nacionalistas?

Sou adepto desta linha de pensamento: existe um mundo real concreto externo a mim e que não depende da minha percepção (nem todos os filósofos concordam com isso). Porém, a maneira como eu consigo apreendê-lo depende de questões cognitivas complexas e subjetivas. Os órgãos dos sentidos – como visão, paladar e audição – fluem a partir de treinos e de questões socioambientais. Não se trata apenas de quem ouve melhor, mas como ouve em relação a outras pessoas. Existe o real externo, entretanto o que eu percebo é um diálogo complexo entre este mundo e sua apreensão/percepção no meu corpo/consciência. Isso envolve gradação (ouvir/ver mais ou menos), emoção (assustar-se com algo percebido ou não) e uma questão cognitiva desafiadora: o diálogo dos signos externos em dança permanente e mutável.

Platão discutiu tema similar no diálogo Teeteto. A personagem Sócrates argumenta se o conhecimento seria percepção; julgamento/opinião ou explicação racional. O que me fascina no Teeteto é trazer o problema do choque entre verdade absoluta e relativismo. Como sempre, usando o método de dar à luz pelo diálogo e fazer surgir no interlocutor uma nova percepção, Sócrates relembra que é filho de parteira (aprendemos ali o nome da mãe dele, Fenarete) e, discutindo os problemas do conhecimento, mais pergunta e questiona do que afirma.

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Posso ir às profundezas platônicas ou escutar a parente do interior: “Quem ama o feio bonito lhe parece”. Consigo pensar na história dos filhos da águia e da coruja, de La Fontaine, pois os medonhos rebentos da ave de Minerva foram descritos como de singular beleza pelo olho enorme e carinhoso da mãe. Monteiro Lobato acrescenta um ditado à fábula: “Para retrato de filho, ninguém acredite em pintor pai”. Graciliano Ramos, sob pseudônimo de J. Calisto (publicado pela editora Baião), mudou um pouco as aves e ampliou a percepção da subjetividade encerrada na consciência de cada um: “Tu és sempre a coruja, e os outros homens são gaviões”. A comadre coruja e o compadre gavião, na visão do alagoano, são as eternas relações do Eu com o Outro. Nunca veremos com o olhar alheio, e a comunicação humana sempre conhecerá pedras pelo caminho. La Fontaine mirou no amor materno; Graciliano ampliou para todos nós.

Imagem da caverna Água Suja, em Iporanga, em foto de 2022. Foto: J.F. Diorio/Estadão

Claro que há reações contra a subjetividade. Platão falou que haveria um Sol fora da caverna dos enganos. A ciência lutou por enunciados mais objetivos. Séculos de debates e transformações na medicina pareciam indicar um mundo diferente.

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Encerro com uma nota na direção oposta. A ascensão da inteligência artificial (IA) está possibilitando, cada vez mais, que os algoritmos respeitem (e formem) meus gostos individuais. As propagandas e publicações que chegam ao meu celular valorizam meu universo, meu eu, minhas barreiras de encontrar algo fora de mim. Ainda não, mas em breve, poderei conhecer filmes e textos feitos diretamente para meu desejo. Já imaginou o poder sedutor de ver um filme feito exclusivamente a partir daquilo que navego ou comento? Suprema liberdade pela frente ou decisiva escravidão? Enclausurados no gosto, como se houvesse um chef habilidoso, sabendo tudo o que amo em uma refeição, cozinhando o prato com quantidade certa de cada elemento, o ponto de cocção exato e a combinação irresistível ao meu paladar? As figuras eróticas que chegariam ao meu celular estariam 100% adaptadas à minha libido e seriam, de fato, sereias irresistíveis com seu canto absoluto. A música seria criada a partir dos meus autores; as poesias seriam selecionadas de tal forma que toda linha fosse um prazer absoluto.

Nossa sociedade foi marcada por imensas ilusões coletivas. O termo ideologia, em Marx, remetia àquilo que velasse relações de dominação, criando miragens confortantes como religião. Daqui a pouco tempo, a IA poderá criar paraísos cristãos, lutas socialistas, verdades islâmicas ou perfeições veganas em nível inédito.

Para incendiar o parquinho, exemplifico com tema polêmico. De um lado, um grupo diz: “O meu livro sagrado proíbe o aborto”. Do outro, pessoas afirmam: “Meu corpo, minhas regras!”. Perceberam que, em comum, as duas argumentações possuem o pronome possessivo “meu”? Não estou debatendo aborto, apenas pensando como pretendemos universalizar o Eu sem pudor.

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Estamos sendo trazidos (ou já chegamos) a uma Matrix inédita. Não é a máquina que nos destrói agora, mas nossa própria liberdade subjetiva de um novo tipo de desejo individual que deve ser respeitado. Esperança? Também estará disponível pela IA na caverna gostosa de cada um.

Um cachorro late.Meu ouvido brasileiro ouve “au-au”. Um amigo dos Estados Unidos diz que escuta “woof-woof”; outro do mesmo país afirma ser “bow-wow”. O coaxar dos sapos à noite soa como “croc-croc”. Em pântanos da América do Norte, dizem que o som é “ribbit-ribbit”. O grilo que emite seu “cri-cri”, no Ibirapuera, canta “chirp-chirp” no Central Park, em Nova York. Disseram-me que o galo, na China, faz “kiau-kiau”. Será verdade? A ave matinal dominaria o mandarim? O mesmo animal muda o som ao cruzar a fronteira? Onomatopeias são nacionalistas?

Sou adepto desta linha de pensamento: existe um mundo real concreto externo a mim e que não depende da minha percepção (nem todos os filósofos concordam com isso). Porém, a maneira como eu consigo apreendê-lo depende de questões cognitivas complexas e subjetivas. Os órgãos dos sentidos – como visão, paladar e audição – fluem a partir de treinos e de questões socioambientais. Não se trata apenas de quem ouve melhor, mas como ouve em relação a outras pessoas. Existe o real externo, entretanto o que eu percebo é um diálogo complexo entre este mundo e sua apreensão/percepção no meu corpo/consciência. Isso envolve gradação (ouvir/ver mais ou menos), emoção (assustar-se com algo percebido ou não) e uma questão cognitiva desafiadora: o diálogo dos signos externos em dança permanente e mutável.

Platão discutiu tema similar no diálogo Teeteto. A personagem Sócrates argumenta se o conhecimento seria percepção; julgamento/opinião ou explicação racional. O que me fascina no Teeteto é trazer o problema do choque entre verdade absoluta e relativismo. Como sempre, usando o método de dar à luz pelo diálogo e fazer surgir no interlocutor uma nova percepção, Sócrates relembra que é filho de parteira (aprendemos ali o nome da mãe dele, Fenarete) e, discutindo os problemas do conhecimento, mais pergunta e questiona do que afirma.

Posso ir às profundezas platônicas ou escutar a parente do interior: “Quem ama o feio bonito lhe parece”. Consigo pensar na história dos filhos da águia e da coruja, de La Fontaine, pois os medonhos rebentos da ave de Minerva foram descritos como de singular beleza pelo olho enorme e carinhoso da mãe. Monteiro Lobato acrescenta um ditado à fábula: “Para retrato de filho, ninguém acredite em pintor pai”. Graciliano Ramos, sob pseudônimo de J. Calisto (publicado pela editora Baião), mudou um pouco as aves e ampliou a percepção da subjetividade encerrada na consciência de cada um: “Tu és sempre a coruja, e os outros homens são gaviões”. A comadre coruja e o compadre gavião, na visão do alagoano, são as eternas relações do Eu com o Outro. Nunca veremos com o olhar alheio, e a comunicação humana sempre conhecerá pedras pelo caminho. La Fontaine mirou no amor materno; Graciliano ampliou para todos nós.

Imagem da caverna Água Suja, em Iporanga, em foto de 2022. Foto: J.F. Diorio/Estadão

Claro que há reações contra a subjetividade. Platão falou que haveria um Sol fora da caverna dos enganos. A ciência lutou por enunciados mais objetivos. Séculos de debates e transformações na medicina pareciam indicar um mundo diferente.

Encerro com uma nota na direção oposta. A ascensão da inteligência artificial (IA) está possibilitando, cada vez mais, que os algoritmos respeitem (e formem) meus gostos individuais. As propagandas e publicações que chegam ao meu celular valorizam meu universo, meu eu, minhas barreiras de encontrar algo fora de mim. Ainda não, mas em breve, poderei conhecer filmes e textos feitos diretamente para meu desejo. Já imaginou o poder sedutor de ver um filme feito exclusivamente a partir daquilo que navego ou comento? Suprema liberdade pela frente ou decisiva escravidão? Enclausurados no gosto, como se houvesse um chef habilidoso, sabendo tudo o que amo em uma refeição, cozinhando o prato com quantidade certa de cada elemento, o ponto de cocção exato e a combinação irresistível ao meu paladar? As figuras eróticas que chegariam ao meu celular estariam 100% adaptadas à minha libido e seriam, de fato, sereias irresistíveis com seu canto absoluto. A música seria criada a partir dos meus autores; as poesias seriam selecionadas de tal forma que toda linha fosse um prazer absoluto.

Nossa sociedade foi marcada por imensas ilusões coletivas. O termo ideologia, em Marx, remetia àquilo que velasse relações de dominação, criando miragens confortantes como religião. Daqui a pouco tempo, a IA poderá criar paraísos cristãos, lutas socialistas, verdades islâmicas ou perfeições veganas em nível inédito.

Para incendiar o parquinho, exemplifico com tema polêmico. De um lado, um grupo diz: “O meu livro sagrado proíbe o aborto”. Do outro, pessoas afirmam: “Meu corpo, minhas regras!”. Perceberam que, em comum, as duas argumentações possuem o pronome possessivo “meu”? Não estou debatendo aborto, apenas pensando como pretendemos universalizar o Eu sem pudor.

Estamos sendo trazidos (ou já chegamos) a uma Matrix inédita. Não é a máquina que nos destrói agora, mas nossa própria liberdade subjetiva de um novo tipo de desejo individual que deve ser respeitado. Esperança? Também estará disponível pela IA na caverna gostosa de cada um.

Um cachorro late.Meu ouvido brasileiro ouve “au-au”. Um amigo dos Estados Unidos diz que escuta “woof-woof”; outro do mesmo país afirma ser “bow-wow”. O coaxar dos sapos à noite soa como “croc-croc”. Em pântanos da América do Norte, dizem que o som é “ribbit-ribbit”. O grilo que emite seu “cri-cri”, no Ibirapuera, canta “chirp-chirp” no Central Park, em Nova York. Disseram-me que o galo, na China, faz “kiau-kiau”. Será verdade? A ave matinal dominaria o mandarim? O mesmo animal muda o som ao cruzar a fronteira? Onomatopeias são nacionalistas?

Sou adepto desta linha de pensamento: existe um mundo real concreto externo a mim e que não depende da minha percepção (nem todos os filósofos concordam com isso). Porém, a maneira como eu consigo apreendê-lo depende de questões cognitivas complexas e subjetivas. Os órgãos dos sentidos – como visão, paladar e audição – fluem a partir de treinos e de questões socioambientais. Não se trata apenas de quem ouve melhor, mas como ouve em relação a outras pessoas. Existe o real externo, entretanto o que eu percebo é um diálogo complexo entre este mundo e sua apreensão/percepção no meu corpo/consciência. Isso envolve gradação (ouvir/ver mais ou menos), emoção (assustar-se com algo percebido ou não) e uma questão cognitiva desafiadora: o diálogo dos signos externos em dança permanente e mutável.

Platão discutiu tema similar no diálogo Teeteto. A personagem Sócrates argumenta se o conhecimento seria percepção; julgamento/opinião ou explicação racional. O que me fascina no Teeteto é trazer o problema do choque entre verdade absoluta e relativismo. Como sempre, usando o método de dar à luz pelo diálogo e fazer surgir no interlocutor uma nova percepção, Sócrates relembra que é filho de parteira (aprendemos ali o nome da mãe dele, Fenarete) e, discutindo os problemas do conhecimento, mais pergunta e questiona do que afirma.

Posso ir às profundezas platônicas ou escutar a parente do interior: “Quem ama o feio bonito lhe parece”. Consigo pensar na história dos filhos da águia e da coruja, de La Fontaine, pois os medonhos rebentos da ave de Minerva foram descritos como de singular beleza pelo olho enorme e carinhoso da mãe. Monteiro Lobato acrescenta um ditado à fábula: “Para retrato de filho, ninguém acredite em pintor pai”. Graciliano Ramos, sob pseudônimo de J. Calisto (publicado pela editora Baião), mudou um pouco as aves e ampliou a percepção da subjetividade encerrada na consciência de cada um: “Tu és sempre a coruja, e os outros homens são gaviões”. A comadre coruja e o compadre gavião, na visão do alagoano, são as eternas relações do Eu com o Outro. Nunca veremos com o olhar alheio, e a comunicação humana sempre conhecerá pedras pelo caminho. La Fontaine mirou no amor materno; Graciliano ampliou para todos nós.

Imagem da caverna Água Suja, em Iporanga, em foto de 2022. Foto: J.F. Diorio/Estadão

Claro que há reações contra a subjetividade. Platão falou que haveria um Sol fora da caverna dos enganos. A ciência lutou por enunciados mais objetivos. Séculos de debates e transformações na medicina pareciam indicar um mundo diferente.

Encerro com uma nota na direção oposta. A ascensão da inteligência artificial (IA) está possibilitando, cada vez mais, que os algoritmos respeitem (e formem) meus gostos individuais. As propagandas e publicações que chegam ao meu celular valorizam meu universo, meu eu, minhas barreiras de encontrar algo fora de mim. Ainda não, mas em breve, poderei conhecer filmes e textos feitos diretamente para meu desejo. Já imaginou o poder sedutor de ver um filme feito exclusivamente a partir daquilo que navego ou comento? Suprema liberdade pela frente ou decisiva escravidão? Enclausurados no gosto, como se houvesse um chef habilidoso, sabendo tudo o que amo em uma refeição, cozinhando o prato com quantidade certa de cada elemento, o ponto de cocção exato e a combinação irresistível ao meu paladar? As figuras eróticas que chegariam ao meu celular estariam 100% adaptadas à minha libido e seriam, de fato, sereias irresistíveis com seu canto absoluto. A música seria criada a partir dos meus autores; as poesias seriam selecionadas de tal forma que toda linha fosse um prazer absoluto.

Nossa sociedade foi marcada por imensas ilusões coletivas. O termo ideologia, em Marx, remetia àquilo que velasse relações de dominação, criando miragens confortantes como religião. Daqui a pouco tempo, a IA poderá criar paraísos cristãos, lutas socialistas, verdades islâmicas ou perfeições veganas em nível inédito.

Para incendiar o parquinho, exemplifico com tema polêmico. De um lado, um grupo diz: “O meu livro sagrado proíbe o aborto”. Do outro, pessoas afirmam: “Meu corpo, minhas regras!”. Perceberam que, em comum, as duas argumentações possuem o pronome possessivo “meu”? Não estou debatendo aborto, apenas pensando como pretendemos universalizar o Eu sem pudor.

Estamos sendo trazidos (ou já chegamos) a uma Matrix inédita. Não é a máquina que nos destrói agora, mas nossa própria liberdade subjetiva de um novo tipo de desejo individual que deve ser respeitado. Esperança? Também estará disponível pela IA na caverna gostosa de cada um.

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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