Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Leandro Karnal indica obras-primas ‘escondidas’ da literatura que você deve conhecer


Quase todo já teve em mãos ‘Memórias Póstumas’ ou ‘O Estrangeiro’; mas uma pérola demanda leitores atentos e pacientes, algo mais raro no mundo das mídias sociais. O ônus é sempre este: ficam as esferas de madrepérola no fundo das águas e ainda estão protegidas pela concha dura

Por Leandro Karnal

Quase todo mundo que aprecia leitura já teve em mãos Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis) ou O Estrangeiro (Albert Camus). São clássicos indiscutíveis. Atacá-los parece sempre reduzir o tamanho dos críticos, mas não dos autores. O cânone literário existe e possui brumas de sagrado.

Machado é um gênio extraordinário; Camus, um gigante denso. Crescemos quando lemos autores como Flaubert, Clarice Lispector ou Kafka. Perdemos quando imaginamos que só uma dúzia de homens e mulheres agraciados pelas musas podem e devem ser lidos. Nos próximos parágrafos, descrevo sobre, digamos, obras-primas menos conhecidas.

Augusto Roa Bastos (1917-2005) é o grande nome da literatura paraguaia. Em 1974, seu livro Eu, o Supremo inventa um diálogo longo entre o governante do país vizinho e seu secretário. A reflexão gira em torno de poder e sociedade, de um “déspota esclarecido”, José Gaspar Rodríguez de Francia, no coração da América do Sul. O “ditador perpétuo” do Paraguai, filho provável de um brasileiro, está elaborando suas memórias. Reflete sobre o poder e a escrita: “Escrever não significa converter o real em palavras, mas sim fazer com que a palavra seja real. O irreal só está no mau uso da palavra, no mal da escrita”.

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Temos algumas dificuldades em diferenciar a fala de Francia das outras. Há quem assinale uma influência da sintaxe do guarani, outra língua oficial paraguaia. A obra é densa e não se revela imediatamente.

Roa Bastos ganhou o prêmio Cervantes, o maior da língua espanhola. Curiosamente, continua distante inclusive daqueles que amam a literatura de Cortázar, García Márquez e Borges. No Brasil, ter ficado esgotado por décadas colaborou para o silenciamento dessa pérola extraordinária. A editora Pinard relançou a obra. A solidão do poder, os limites da consciência na América, as estruturas sociais enfrentando os sonhos de reforma: tudo está no livro Eu, o Supremo. Como diz Francia: “Eu não escrevo história. Faço”.

Para quem gosta de poesia, Joaquim de Sousândrade é outra pérola. O maranhense estudou na Sorbonne, morou nos Estados Unidos e exerceu cargos importantes no Estado, após a proclamação da República. Morreu pobre e com fama de louco, em 1902. Seu poema O Guesa é algo completamente fora do eixo literário. A personagem central viaja pelo mundo e termina lutando pela independência do Brasil. No começo, estamos na exaltação do mundo natural comum aos de sua geração: os Andes são celebrados. Há trechos de louvor aos nativos das Américas, com sabores de José de Alencar e de Gonçalves Dias: “Selvagens – mas tão belos, que se sente / Um bárbaro prazer n’essa memória / Dos grandes tempos, recordando a História. / Dos formosos guerreiros reluzentes: / Em cruentos festins, na vária festa, nas ledas caças ao romper da aurora; / e à voz profunda que à ribeira chora / enlanguescer, dormir saudosa sesta...”. Nos cantos I e II, parece que o I-Juca Pirama e o Peri virão interromper a narrativa de Sousândrade a qualquer momento. O horror à escravidão segue no poema, também tema comum aos românticos. Porém, começa um simbolismo ou surrealismo, com a presença de personagens da era colonial, dialogando com Napoleão, D. João VI e sábios europeus, em meio a usos mais concretistas da linguagem: “– Viva, povo, a república, / Ó, Cabrália feliz! / Cadelinha querida / Rendida, / Sou monarco-jui...i..iz (risadas) – Prole, súdito, herança / De senhor Alfonsim! / Del’rei religião, / Servidão / E o rabicho do Chim! / Referenda o ministro, moderando o poder: / Toma, assina a meu rogo, / Diogo, / por yo não saber ler”. Aqui já fica mais clara a inovação no uso da linguagem, das alegorias de personagens históricas e no uso de versificação mais próxima das vanguardas do século 20. Ele próprio, o autor, intuiu que faria sucesso dali a 50 anos, pois era fora do seu tempo. Nos mesmos versos, temos a figura de Tímon de Atenas, Brutus no nono círculo do Inferno, São João, Curupira, a Esfinge e outras personagens em diálogo com a noite de Manaus. O pano de fundo é a crítica à exploração das Américas e a defesa dos grupos humanos mais excluídos: “O índio escuta, sisudo; e além transvago / Foge – à luz dos cristãos prefere as trevas”.

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Há versos, especialmente no canto X, que usam inglês, francês e palavras indígenas para compor um delírio criativo dos mais expressivos. Talvez romântico demais para modernos e moderno demais para todos, Sousândrade fica inclassificável. Para mim, uma fonte de criatividade da escrita que brilha sempre quando o leio. O Guesa continua errante, como ele próprio se classificou.

Uma pérola demanda leitores atentos e pacientes, algo mais raro no mundo das mídias sociais. O ônus é sempre este: ficam as esferas de madrepérola no fundo das águas e ainda estão protegidas pela concha dura. Os pescadores precisam de pulmões mais fortes do que a média dos nadadores de superfície. Quem desce ao fundo é revestido de uma esperança muito particular e de uma vontade forte.

Capa do livro 'Eu, o Supremo', de Augusto Roa Bastos Foto: Editora Pinard

Quase todo mundo que aprecia leitura já teve em mãos Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis) ou O Estrangeiro (Albert Camus). São clássicos indiscutíveis. Atacá-los parece sempre reduzir o tamanho dos críticos, mas não dos autores. O cânone literário existe e possui brumas de sagrado.

Machado é um gênio extraordinário; Camus, um gigante denso. Crescemos quando lemos autores como Flaubert, Clarice Lispector ou Kafka. Perdemos quando imaginamos que só uma dúzia de homens e mulheres agraciados pelas musas podem e devem ser lidos. Nos próximos parágrafos, descrevo sobre, digamos, obras-primas menos conhecidas.

Augusto Roa Bastos (1917-2005) é o grande nome da literatura paraguaia. Em 1974, seu livro Eu, o Supremo inventa um diálogo longo entre o governante do país vizinho e seu secretário. A reflexão gira em torno de poder e sociedade, de um “déspota esclarecido”, José Gaspar Rodríguez de Francia, no coração da América do Sul. O “ditador perpétuo” do Paraguai, filho provável de um brasileiro, está elaborando suas memórias. Reflete sobre o poder e a escrita: “Escrever não significa converter o real em palavras, mas sim fazer com que a palavra seja real. O irreal só está no mau uso da palavra, no mal da escrita”.

Temos algumas dificuldades em diferenciar a fala de Francia das outras. Há quem assinale uma influência da sintaxe do guarani, outra língua oficial paraguaia. A obra é densa e não se revela imediatamente.

Roa Bastos ganhou o prêmio Cervantes, o maior da língua espanhola. Curiosamente, continua distante inclusive daqueles que amam a literatura de Cortázar, García Márquez e Borges. No Brasil, ter ficado esgotado por décadas colaborou para o silenciamento dessa pérola extraordinária. A editora Pinard relançou a obra. A solidão do poder, os limites da consciência na América, as estruturas sociais enfrentando os sonhos de reforma: tudo está no livro Eu, o Supremo. Como diz Francia: “Eu não escrevo história. Faço”.

Para quem gosta de poesia, Joaquim de Sousândrade é outra pérola. O maranhense estudou na Sorbonne, morou nos Estados Unidos e exerceu cargos importantes no Estado, após a proclamação da República. Morreu pobre e com fama de louco, em 1902. Seu poema O Guesa é algo completamente fora do eixo literário. A personagem central viaja pelo mundo e termina lutando pela independência do Brasil. No começo, estamos na exaltação do mundo natural comum aos de sua geração: os Andes são celebrados. Há trechos de louvor aos nativos das Américas, com sabores de José de Alencar e de Gonçalves Dias: “Selvagens – mas tão belos, que se sente / Um bárbaro prazer n’essa memória / Dos grandes tempos, recordando a História. / Dos formosos guerreiros reluzentes: / Em cruentos festins, na vária festa, nas ledas caças ao romper da aurora; / e à voz profunda que à ribeira chora / enlanguescer, dormir saudosa sesta...”. Nos cantos I e II, parece que o I-Juca Pirama e o Peri virão interromper a narrativa de Sousândrade a qualquer momento. O horror à escravidão segue no poema, também tema comum aos românticos. Porém, começa um simbolismo ou surrealismo, com a presença de personagens da era colonial, dialogando com Napoleão, D. João VI e sábios europeus, em meio a usos mais concretistas da linguagem: “– Viva, povo, a república, / Ó, Cabrália feliz! / Cadelinha querida / Rendida, / Sou monarco-jui...i..iz (risadas) – Prole, súdito, herança / De senhor Alfonsim! / Del’rei religião, / Servidão / E o rabicho do Chim! / Referenda o ministro, moderando o poder: / Toma, assina a meu rogo, / Diogo, / por yo não saber ler”. Aqui já fica mais clara a inovação no uso da linguagem, das alegorias de personagens históricas e no uso de versificação mais próxima das vanguardas do século 20. Ele próprio, o autor, intuiu que faria sucesso dali a 50 anos, pois era fora do seu tempo. Nos mesmos versos, temos a figura de Tímon de Atenas, Brutus no nono círculo do Inferno, São João, Curupira, a Esfinge e outras personagens em diálogo com a noite de Manaus. O pano de fundo é a crítica à exploração das Américas e a defesa dos grupos humanos mais excluídos: “O índio escuta, sisudo; e além transvago / Foge – à luz dos cristãos prefere as trevas”.

Há versos, especialmente no canto X, que usam inglês, francês e palavras indígenas para compor um delírio criativo dos mais expressivos. Talvez romântico demais para modernos e moderno demais para todos, Sousândrade fica inclassificável. Para mim, uma fonte de criatividade da escrita que brilha sempre quando o leio. O Guesa continua errante, como ele próprio se classificou.

Uma pérola demanda leitores atentos e pacientes, algo mais raro no mundo das mídias sociais. O ônus é sempre este: ficam as esferas de madrepérola no fundo das águas e ainda estão protegidas pela concha dura. Os pescadores precisam de pulmões mais fortes do que a média dos nadadores de superfície. Quem desce ao fundo é revestido de uma esperança muito particular e de uma vontade forte.

Capa do livro 'Eu, o Supremo', de Augusto Roa Bastos Foto: Editora Pinard

Quase todo mundo que aprecia leitura já teve em mãos Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis) ou O Estrangeiro (Albert Camus). São clássicos indiscutíveis. Atacá-los parece sempre reduzir o tamanho dos críticos, mas não dos autores. O cânone literário existe e possui brumas de sagrado.

Machado é um gênio extraordinário; Camus, um gigante denso. Crescemos quando lemos autores como Flaubert, Clarice Lispector ou Kafka. Perdemos quando imaginamos que só uma dúzia de homens e mulheres agraciados pelas musas podem e devem ser lidos. Nos próximos parágrafos, descrevo sobre, digamos, obras-primas menos conhecidas.

Augusto Roa Bastos (1917-2005) é o grande nome da literatura paraguaia. Em 1974, seu livro Eu, o Supremo inventa um diálogo longo entre o governante do país vizinho e seu secretário. A reflexão gira em torno de poder e sociedade, de um “déspota esclarecido”, José Gaspar Rodríguez de Francia, no coração da América do Sul. O “ditador perpétuo” do Paraguai, filho provável de um brasileiro, está elaborando suas memórias. Reflete sobre o poder e a escrita: “Escrever não significa converter o real em palavras, mas sim fazer com que a palavra seja real. O irreal só está no mau uso da palavra, no mal da escrita”.

Temos algumas dificuldades em diferenciar a fala de Francia das outras. Há quem assinale uma influência da sintaxe do guarani, outra língua oficial paraguaia. A obra é densa e não se revela imediatamente.

Roa Bastos ganhou o prêmio Cervantes, o maior da língua espanhola. Curiosamente, continua distante inclusive daqueles que amam a literatura de Cortázar, García Márquez e Borges. No Brasil, ter ficado esgotado por décadas colaborou para o silenciamento dessa pérola extraordinária. A editora Pinard relançou a obra. A solidão do poder, os limites da consciência na América, as estruturas sociais enfrentando os sonhos de reforma: tudo está no livro Eu, o Supremo. Como diz Francia: “Eu não escrevo história. Faço”.

Para quem gosta de poesia, Joaquim de Sousândrade é outra pérola. O maranhense estudou na Sorbonne, morou nos Estados Unidos e exerceu cargos importantes no Estado, após a proclamação da República. Morreu pobre e com fama de louco, em 1902. Seu poema O Guesa é algo completamente fora do eixo literário. A personagem central viaja pelo mundo e termina lutando pela independência do Brasil. No começo, estamos na exaltação do mundo natural comum aos de sua geração: os Andes são celebrados. Há trechos de louvor aos nativos das Américas, com sabores de José de Alencar e de Gonçalves Dias: “Selvagens – mas tão belos, que se sente / Um bárbaro prazer n’essa memória / Dos grandes tempos, recordando a História. / Dos formosos guerreiros reluzentes: / Em cruentos festins, na vária festa, nas ledas caças ao romper da aurora; / e à voz profunda que à ribeira chora / enlanguescer, dormir saudosa sesta...”. Nos cantos I e II, parece que o I-Juca Pirama e o Peri virão interromper a narrativa de Sousândrade a qualquer momento. O horror à escravidão segue no poema, também tema comum aos românticos. Porém, começa um simbolismo ou surrealismo, com a presença de personagens da era colonial, dialogando com Napoleão, D. João VI e sábios europeus, em meio a usos mais concretistas da linguagem: “– Viva, povo, a república, / Ó, Cabrália feliz! / Cadelinha querida / Rendida, / Sou monarco-jui...i..iz (risadas) – Prole, súdito, herança / De senhor Alfonsim! / Del’rei religião, / Servidão / E o rabicho do Chim! / Referenda o ministro, moderando o poder: / Toma, assina a meu rogo, / Diogo, / por yo não saber ler”. Aqui já fica mais clara a inovação no uso da linguagem, das alegorias de personagens históricas e no uso de versificação mais próxima das vanguardas do século 20. Ele próprio, o autor, intuiu que faria sucesso dali a 50 anos, pois era fora do seu tempo. Nos mesmos versos, temos a figura de Tímon de Atenas, Brutus no nono círculo do Inferno, São João, Curupira, a Esfinge e outras personagens em diálogo com a noite de Manaus. O pano de fundo é a crítica à exploração das Américas e a defesa dos grupos humanos mais excluídos: “O índio escuta, sisudo; e além transvago / Foge – à luz dos cristãos prefere as trevas”.

Há versos, especialmente no canto X, que usam inglês, francês e palavras indígenas para compor um delírio criativo dos mais expressivos. Talvez romântico demais para modernos e moderno demais para todos, Sousândrade fica inclassificável. Para mim, uma fonte de criatividade da escrita que brilha sempre quando o leio. O Guesa continua errante, como ele próprio se classificou.

Uma pérola demanda leitores atentos e pacientes, algo mais raro no mundo das mídias sociais. O ônus é sempre este: ficam as esferas de madrepérola no fundo das águas e ainda estão protegidas pela concha dura. Os pescadores precisam de pulmões mais fortes do que a média dos nadadores de superfície. Quem desce ao fundo é revestido de uma esperança muito particular e de uma vontade forte.

Capa do livro 'Eu, o Supremo', de Augusto Roa Bastos Foto: Editora Pinard
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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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