Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Leandro Karnal: indicações de livros para ‘revirar’ os neurônios neste semestre


Ler cura nossas dores? Jamais. Apenas a morte possui esse poder. Os bons livros conferem consciência, nomeiam fantasmas, ampliam horizontes. Ler não muda o mundo, muda minha maneira de percebê-lo

Por Leandro Karnal
Atualização:

Uma das coisas mais poderosas para alterar o cérebro é a leitura. Ela implica foco, conhecimento, abstração e capacidade de refletir. Vou indicar livros que, nos últimos meses, provocaram reviravoltas nos meus neurônios.

Descobri, apenas em 2024, a obra do angolano José Eduardo Agualusa. Nascido em 1960 e residente na histórica ilha de Moçambique, o autor chegou a mim pelo genial Teoria Geral do Esquecimento (Tusquets Editores). Principia assim: “Ludovica nunca gostou de enfrentar o céu. Em criança, já a atormentava um horror a espaços abertos. Sentia-se, ao sair de casa, frágil e vulnerável, como uma tartaruga a quem tivessem arrancado a carapaça”. Aqui começa a aventura de uma criança que sempre usava um guarda-chuva para ir à escola. Uma agorafobia poética, tingida pelo medo que os celtas pareciam possuir: o risco de o céu desabar sobre suas cabeças. Depois das aventuras de Ludovica e do debate sobre a independência, racismo e violência, fui para Rainha Ginga. Devorei O Vendedor de Passados (que ganhou o prêmio Impac, em Dublin, 2017) e fechei o quarto livro com Os Vivos e os Outros, todos da mesma Tusquets Editores. Há muitos outros a descobrir do mesmo autor, com quem passei a trocar correspondência digital e acalentei a ideia de uma viagem a Moçambique para debater com ele e Mia Couto, outro autor que conheço há mais tempo.

TQ SÃO PAULO 28.11.2023 CADERNO 2 LITERATURA Retratos do escritor, palestrante e colunista, Leandro Karnal, e sua pequena biblioteca de livros essenciais. FOTO TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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Luiz Schwarcz é leitor voraz e escreveu um texto sobre depressão e ansiedade em primeira pessoa: O Ar que me Falta (Cia. das Letras). Já falei do livro nas minhas crônicas. Agora, Luiz me enviou Estranhos a Nós Mesmos (Zahar), da jornalista do New Yorker, Rachel Aviv. O subtítulo descreve: “Histórias de mentes instáveis”. As narrativas abordam pessoas neuroatípicas com grande sensibilidade, empatia, levando a refletir sobre nossa sociedade e seus “excluídos”. O texto tem passagens comoventes. Laura, por exemplo, vem de uma família tradicional e começou a se cortar no banheiro de casa. Deprimida, toma um medicamento prescrito pelo psiquiatra e vê na receita um sinal de que seu sofrimento era “levado a sério”. Porém, buscava uma vida mais “normal” e não narrou ao médico que sua vida sexual estava alterada, uma vez que a libido despencava com a medicação. Diante da dose máxima de 80 miligramas de antidepressivo, o médico recomendava também um remédio para evitar a sonolência. Quando o medicamento altera seu sono, surge outro fármaco, criando a “cascata iatrogênica”: os efeitos colaterais de um remédio levam a novas drogas. Em 14 anos, Laura tomou 19 medicamentos diferentes. A luta dela seguiu com uma busca de isolamento em ambiente agreste, sentimentos de pânico e ideias de suicídio que quase foram levadas a cabo. Os acontecimentos são dramáticos e não parecem um caso isolado. Uma entre cada oito pessoas toma algum tipo de antidepressivo nos EUA. Laura transformou em blog sua experiência e chamou atenção da autora do livro.

No mesmo campo do conhecimento mental humano, o pequeno livro Ensaios de Psicanálise (INM editora) é enorme. A forma física reduzida, parecendo um breviário, esconde uma riqueza enorme. É um texto útil para iniciados e leigos. Livro para ficar fechando e pensando no que se leu antes de seguir, com a escrita de um acadêmico da UFMG (Fábio Belo), que busca os diálogos entre arte, cinema e psicanálise. Quer um exemplo para pensar sobre sua relação de namoro ou casamento? “Há um modo terrível de controlar a dor proveniente do passado (da situação originária, dos momentos constitutivos do eu): produzir situações de dor. É como se eu dissesse: não me causaram dor, eu mesmo me causo dor! E ai de quem encontrar um (a) parceiro (a) com esse regime de funcionamento. O sujeito pode muito bem estragar tudo para causar dor no outro, e esta dor, por sua parte, vai lhe causar dor, desta vez com clara autoria. O sujeito irá se culpar – uma das grandes traduções internas da dor – pelo seu fracasso, pela sua burrice, por mais um mau passo. O mortífero une: esse é o risco. Se articular com um outro que nos cause dor, é também uma forma de lidar com nossas dores originárias. É uma forma de tornar consciente um tormento inconsciente e pretérito. O masoquismo é, antes, uma forma de controlar a dor e, numa tentativa, fazê-la um circuito inteligível.” Assim, começa a primeira “paulada” sobre a complexa trama de usar outra pessoa para dialogar com seus traumas fundacionais. O bom do texto é o conteúdo aliado à forma clara e direta, sem usar jargões retóricos que possam afastar as pessoas de fora da área.

Ler cura nossas dores? Jamais. Apenas a morte possui esse poder. Os bons livros conferem consciência, nomeiam fantasmas, ampliam horizontes. Ler não muda o mundo, muda minha maneira de percebê-lo. Ler transforma solidão em solitude e, acompanhando literatos e especialistas em saúde mental, o mundo fica menos isolado. Ler é uma revolução de esperança. Experimente. Falta pouco para terminar mais um ano. O tempo virá, inexoravelmente. No entanto, o avanço do calendário seria suavizado com mais livros e maior consciência. Ler cria a música para você dançar com seus fantasmas e dizer a eles que tudo passa, até o medo.

Uma das coisas mais poderosas para alterar o cérebro é a leitura. Ela implica foco, conhecimento, abstração e capacidade de refletir. Vou indicar livros que, nos últimos meses, provocaram reviravoltas nos meus neurônios.

Descobri, apenas em 2024, a obra do angolano José Eduardo Agualusa. Nascido em 1960 e residente na histórica ilha de Moçambique, o autor chegou a mim pelo genial Teoria Geral do Esquecimento (Tusquets Editores). Principia assim: “Ludovica nunca gostou de enfrentar o céu. Em criança, já a atormentava um horror a espaços abertos. Sentia-se, ao sair de casa, frágil e vulnerável, como uma tartaruga a quem tivessem arrancado a carapaça”. Aqui começa a aventura de uma criança que sempre usava um guarda-chuva para ir à escola. Uma agorafobia poética, tingida pelo medo que os celtas pareciam possuir: o risco de o céu desabar sobre suas cabeças. Depois das aventuras de Ludovica e do debate sobre a independência, racismo e violência, fui para Rainha Ginga. Devorei O Vendedor de Passados (que ganhou o prêmio Impac, em Dublin, 2017) e fechei o quarto livro com Os Vivos e os Outros, todos da mesma Tusquets Editores. Há muitos outros a descobrir do mesmo autor, com quem passei a trocar correspondência digital e acalentei a ideia de uma viagem a Moçambique para debater com ele e Mia Couto, outro autor que conheço há mais tempo.

TQ SÃO PAULO 28.11.2023 CADERNO 2 LITERATURA Retratos do escritor, palestrante e colunista, Leandro Karnal, e sua pequena biblioteca de livros essenciais. FOTO TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Luiz Schwarcz é leitor voraz e escreveu um texto sobre depressão e ansiedade em primeira pessoa: O Ar que me Falta (Cia. das Letras). Já falei do livro nas minhas crônicas. Agora, Luiz me enviou Estranhos a Nós Mesmos (Zahar), da jornalista do New Yorker, Rachel Aviv. O subtítulo descreve: “Histórias de mentes instáveis”. As narrativas abordam pessoas neuroatípicas com grande sensibilidade, empatia, levando a refletir sobre nossa sociedade e seus “excluídos”. O texto tem passagens comoventes. Laura, por exemplo, vem de uma família tradicional e começou a se cortar no banheiro de casa. Deprimida, toma um medicamento prescrito pelo psiquiatra e vê na receita um sinal de que seu sofrimento era “levado a sério”. Porém, buscava uma vida mais “normal” e não narrou ao médico que sua vida sexual estava alterada, uma vez que a libido despencava com a medicação. Diante da dose máxima de 80 miligramas de antidepressivo, o médico recomendava também um remédio para evitar a sonolência. Quando o medicamento altera seu sono, surge outro fármaco, criando a “cascata iatrogênica”: os efeitos colaterais de um remédio levam a novas drogas. Em 14 anos, Laura tomou 19 medicamentos diferentes. A luta dela seguiu com uma busca de isolamento em ambiente agreste, sentimentos de pânico e ideias de suicídio que quase foram levadas a cabo. Os acontecimentos são dramáticos e não parecem um caso isolado. Uma entre cada oito pessoas toma algum tipo de antidepressivo nos EUA. Laura transformou em blog sua experiência e chamou atenção da autora do livro.

No mesmo campo do conhecimento mental humano, o pequeno livro Ensaios de Psicanálise (INM editora) é enorme. A forma física reduzida, parecendo um breviário, esconde uma riqueza enorme. É um texto útil para iniciados e leigos. Livro para ficar fechando e pensando no que se leu antes de seguir, com a escrita de um acadêmico da UFMG (Fábio Belo), que busca os diálogos entre arte, cinema e psicanálise. Quer um exemplo para pensar sobre sua relação de namoro ou casamento? “Há um modo terrível de controlar a dor proveniente do passado (da situação originária, dos momentos constitutivos do eu): produzir situações de dor. É como se eu dissesse: não me causaram dor, eu mesmo me causo dor! E ai de quem encontrar um (a) parceiro (a) com esse regime de funcionamento. O sujeito pode muito bem estragar tudo para causar dor no outro, e esta dor, por sua parte, vai lhe causar dor, desta vez com clara autoria. O sujeito irá se culpar – uma das grandes traduções internas da dor – pelo seu fracasso, pela sua burrice, por mais um mau passo. O mortífero une: esse é o risco. Se articular com um outro que nos cause dor, é também uma forma de lidar com nossas dores originárias. É uma forma de tornar consciente um tormento inconsciente e pretérito. O masoquismo é, antes, uma forma de controlar a dor e, numa tentativa, fazê-la um circuito inteligível.” Assim, começa a primeira “paulada” sobre a complexa trama de usar outra pessoa para dialogar com seus traumas fundacionais. O bom do texto é o conteúdo aliado à forma clara e direta, sem usar jargões retóricos que possam afastar as pessoas de fora da área.

Ler cura nossas dores? Jamais. Apenas a morte possui esse poder. Os bons livros conferem consciência, nomeiam fantasmas, ampliam horizontes. Ler não muda o mundo, muda minha maneira de percebê-lo. Ler transforma solidão em solitude e, acompanhando literatos e especialistas em saúde mental, o mundo fica menos isolado. Ler é uma revolução de esperança. Experimente. Falta pouco para terminar mais um ano. O tempo virá, inexoravelmente. No entanto, o avanço do calendário seria suavizado com mais livros e maior consciência. Ler cria a música para você dançar com seus fantasmas e dizer a eles que tudo passa, até o medo.

Uma das coisas mais poderosas para alterar o cérebro é a leitura. Ela implica foco, conhecimento, abstração e capacidade de refletir. Vou indicar livros que, nos últimos meses, provocaram reviravoltas nos meus neurônios.

Descobri, apenas em 2024, a obra do angolano José Eduardo Agualusa. Nascido em 1960 e residente na histórica ilha de Moçambique, o autor chegou a mim pelo genial Teoria Geral do Esquecimento (Tusquets Editores). Principia assim: “Ludovica nunca gostou de enfrentar o céu. Em criança, já a atormentava um horror a espaços abertos. Sentia-se, ao sair de casa, frágil e vulnerável, como uma tartaruga a quem tivessem arrancado a carapaça”. Aqui começa a aventura de uma criança que sempre usava um guarda-chuva para ir à escola. Uma agorafobia poética, tingida pelo medo que os celtas pareciam possuir: o risco de o céu desabar sobre suas cabeças. Depois das aventuras de Ludovica e do debate sobre a independência, racismo e violência, fui para Rainha Ginga. Devorei O Vendedor de Passados (que ganhou o prêmio Impac, em Dublin, 2017) e fechei o quarto livro com Os Vivos e os Outros, todos da mesma Tusquets Editores. Há muitos outros a descobrir do mesmo autor, com quem passei a trocar correspondência digital e acalentei a ideia de uma viagem a Moçambique para debater com ele e Mia Couto, outro autor que conheço há mais tempo.

TQ SÃO PAULO 28.11.2023 CADERNO 2 LITERATURA Retratos do escritor, palestrante e colunista, Leandro Karnal, e sua pequena biblioteca de livros essenciais. FOTO TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Luiz Schwarcz é leitor voraz e escreveu um texto sobre depressão e ansiedade em primeira pessoa: O Ar que me Falta (Cia. das Letras). Já falei do livro nas minhas crônicas. Agora, Luiz me enviou Estranhos a Nós Mesmos (Zahar), da jornalista do New Yorker, Rachel Aviv. O subtítulo descreve: “Histórias de mentes instáveis”. As narrativas abordam pessoas neuroatípicas com grande sensibilidade, empatia, levando a refletir sobre nossa sociedade e seus “excluídos”. O texto tem passagens comoventes. Laura, por exemplo, vem de uma família tradicional e começou a se cortar no banheiro de casa. Deprimida, toma um medicamento prescrito pelo psiquiatra e vê na receita um sinal de que seu sofrimento era “levado a sério”. Porém, buscava uma vida mais “normal” e não narrou ao médico que sua vida sexual estava alterada, uma vez que a libido despencava com a medicação. Diante da dose máxima de 80 miligramas de antidepressivo, o médico recomendava também um remédio para evitar a sonolência. Quando o medicamento altera seu sono, surge outro fármaco, criando a “cascata iatrogênica”: os efeitos colaterais de um remédio levam a novas drogas. Em 14 anos, Laura tomou 19 medicamentos diferentes. A luta dela seguiu com uma busca de isolamento em ambiente agreste, sentimentos de pânico e ideias de suicídio que quase foram levadas a cabo. Os acontecimentos são dramáticos e não parecem um caso isolado. Uma entre cada oito pessoas toma algum tipo de antidepressivo nos EUA. Laura transformou em blog sua experiência e chamou atenção da autora do livro.

No mesmo campo do conhecimento mental humano, o pequeno livro Ensaios de Psicanálise (INM editora) é enorme. A forma física reduzida, parecendo um breviário, esconde uma riqueza enorme. É um texto útil para iniciados e leigos. Livro para ficar fechando e pensando no que se leu antes de seguir, com a escrita de um acadêmico da UFMG (Fábio Belo), que busca os diálogos entre arte, cinema e psicanálise. Quer um exemplo para pensar sobre sua relação de namoro ou casamento? “Há um modo terrível de controlar a dor proveniente do passado (da situação originária, dos momentos constitutivos do eu): produzir situações de dor. É como se eu dissesse: não me causaram dor, eu mesmo me causo dor! E ai de quem encontrar um (a) parceiro (a) com esse regime de funcionamento. O sujeito pode muito bem estragar tudo para causar dor no outro, e esta dor, por sua parte, vai lhe causar dor, desta vez com clara autoria. O sujeito irá se culpar – uma das grandes traduções internas da dor – pelo seu fracasso, pela sua burrice, por mais um mau passo. O mortífero une: esse é o risco. Se articular com um outro que nos cause dor, é também uma forma de lidar com nossas dores originárias. É uma forma de tornar consciente um tormento inconsciente e pretérito. O masoquismo é, antes, uma forma de controlar a dor e, numa tentativa, fazê-la um circuito inteligível.” Assim, começa a primeira “paulada” sobre a complexa trama de usar outra pessoa para dialogar com seus traumas fundacionais. O bom do texto é o conteúdo aliado à forma clara e direta, sem usar jargões retóricos que possam afastar as pessoas de fora da área.

Ler cura nossas dores? Jamais. Apenas a morte possui esse poder. Os bons livros conferem consciência, nomeiam fantasmas, ampliam horizontes. Ler não muda o mundo, muda minha maneira de percebê-lo. Ler transforma solidão em solitude e, acompanhando literatos e especialistas em saúde mental, o mundo fica menos isolado. Ler é uma revolução de esperança. Experimente. Falta pouco para terminar mais um ano. O tempo virá, inexoravelmente. No entanto, o avanço do calendário seria suavizado com mais livros e maior consciência. Ler cria a música para você dançar com seus fantasmas e dizer a eles que tudo passa, até o medo.

Uma das coisas mais poderosas para alterar o cérebro é a leitura. Ela implica foco, conhecimento, abstração e capacidade de refletir. Vou indicar livros que, nos últimos meses, provocaram reviravoltas nos meus neurônios.

Descobri, apenas em 2024, a obra do angolano José Eduardo Agualusa. Nascido em 1960 e residente na histórica ilha de Moçambique, o autor chegou a mim pelo genial Teoria Geral do Esquecimento (Tusquets Editores). Principia assim: “Ludovica nunca gostou de enfrentar o céu. Em criança, já a atormentava um horror a espaços abertos. Sentia-se, ao sair de casa, frágil e vulnerável, como uma tartaruga a quem tivessem arrancado a carapaça”. Aqui começa a aventura de uma criança que sempre usava um guarda-chuva para ir à escola. Uma agorafobia poética, tingida pelo medo que os celtas pareciam possuir: o risco de o céu desabar sobre suas cabeças. Depois das aventuras de Ludovica e do debate sobre a independência, racismo e violência, fui para Rainha Ginga. Devorei O Vendedor de Passados (que ganhou o prêmio Impac, em Dublin, 2017) e fechei o quarto livro com Os Vivos e os Outros, todos da mesma Tusquets Editores. Há muitos outros a descobrir do mesmo autor, com quem passei a trocar correspondência digital e acalentei a ideia de uma viagem a Moçambique para debater com ele e Mia Couto, outro autor que conheço há mais tempo.

TQ SÃO PAULO 28.11.2023 CADERNO 2 LITERATURA Retratos do escritor, palestrante e colunista, Leandro Karnal, e sua pequena biblioteca de livros essenciais. FOTO TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Luiz Schwarcz é leitor voraz e escreveu um texto sobre depressão e ansiedade em primeira pessoa: O Ar que me Falta (Cia. das Letras). Já falei do livro nas minhas crônicas. Agora, Luiz me enviou Estranhos a Nós Mesmos (Zahar), da jornalista do New Yorker, Rachel Aviv. O subtítulo descreve: “Histórias de mentes instáveis”. As narrativas abordam pessoas neuroatípicas com grande sensibilidade, empatia, levando a refletir sobre nossa sociedade e seus “excluídos”. O texto tem passagens comoventes. Laura, por exemplo, vem de uma família tradicional e começou a se cortar no banheiro de casa. Deprimida, toma um medicamento prescrito pelo psiquiatra e vê na receita um sinal de que seu sofrimento era “levado a sério”. Porém, buscava uma vida mais “normal” e não narrou ao médico que sua vida sexual estava alterada, uma vez que a libido despencava com a medicação. Diante da dose máxima de 80 miligramas de antidepressivo, o médico recomendava também um remédio para evitar a sonolência. Quando o medicamento altera seu sono, surge outro fármaco, criando a “cascata iatrogênica”: os efeitos colaterais de um remédio levam a novas drogas. Em 14 anos, Laura tomou 19 medicamentos diferentes. A luta dela seguiu com uma busca de isolamento em ambiente agreste, sentimentos de pânico e ideias de suicídio que quase foram levadas a cabo. Os acontecimentos são dramáticos e não parecem um caso isolado. Uma entre cada oito pessoas toma algum tipo de antidepressivo nos EUA. Laura transformou em blog sua experiência e chamou atenção da autora do livro.

No mesmo campo do conhecimento mental humano, o pequeno livro Ensaios de Psicanálise (INM editora) é enorme. A forma física reduzida, parecendo um breviário, esconde uma riqueza enorme. É um texto útil para iniciados e leigos. Livro para ficar fechando e pensando no que se leu antes de seguir, com a escrita de um acadêmico da UFMG (Fábio Belo), que busca os diálogos entre arte, cinema e psicanálise. Quer um exemplo para pensar sobre sua relação de namoro ou casamento? “Há um modo terrível de controlar a dor proveniente do passado (da situação originária, dos momentos constitutivos do eu): produzir situações de dor. É como se eu dissesse: não me causaram dor, eu mesmo me causo dor! E ai de quem encontrar um (a) parceiro (a) com esse regime de funcionamento. O sujeito pode muito bem estragar tudo para causar dor no outro, e esta dor, por sua parte, vai lhe causar dor, desta vez com clara autoria. O sujeito irá se culpar – uma das grandes traduções internas da dor – pelo seu fracasso, pela sua burrice, por mais um mau passo. O mortífero une: esse é o risco. Se articular com um outro que nos cause dor, é também uma forma de lidar com nossas dores originárias. É uma forma de tornar consciente um tormento inconsciente e pretérito. O masoquismo é, antes, uma forma de controlar a dor e, numa tentativa, fazê-la um circuito inteligível.” Assim, começa a primeira “paulada” sobre a complexa trama de usar outra pessoa para dialogar com seus traumas fundacionais. O bom do texto é o conteúdo aliado à forma clara e direta, sem usar jargões retóricos que possam afastar as pessoas de fora da área.

Ler cura nossas dores? Jamais. Apenas a morte possui esse poder. Os bons livros conferem consciência, nomeiam fantasmas, ampliam horizontes. Ler não muda o mundo, muda minha maneira de percebê-lo. Ler transforma solidão em solitude e, acompanhando literatos e especialistas em saúde mental, o mundo fica menos isolado. Ler é uma revolução de esperança. Experimente. Falta pouco para terminar mais um ano. O tempo virá, inexoravelmente. No entanto, o avanço do calendário seria suavizado com mais livros e maior consciência. Ler cria a música para você dançar com seus fantasmas e dizer a eles que tudo passa, até o medo.

Uma das coisas mais poderosas para alterar o cérebro é a leitura. Ela implica foco, conhecimento, abstração e capacidade de refletir. Vou indicar livros que, nos últimos meses, provocaram reviravoltas nos meus neurônios.

Descobri, apenas em 2024, a obra do angolano José Eduardo Agualusa. Nascido em 1960 e residente na histórica ilha de Moçambique, o autor chegou a mim pelo genial Teoria Geral do Esquecimento (Tusquets Editores). Principia assim: “Ludovica nunca gostou de enfrentar o céu. Em criança, já a atormentava um horror a espaços abertos. Sentia-se, ao sair de casa, frágil e vulnerável, como uma tartaruga a quem tivessem arrancado a carapaça”. Aqui começa a aventura de uma criança que sempre usava um guarda-chuva para ir à escola. Uma agorafobia poética, tingida pelo medo que os celtas pareciam possuir: o risco de o céu desabar sobre suas cabeças. Depois das aventuras de Ludovica e do debate sobre a independência, racismo e violência, fui para Rainha Ginga. Devorei O Vendedor de Passados (que ganhou o prêmio Impac, em Dublin, 2017) e fechei o quarto livro com Os Vivos e os Outros, todos da mesma Tusquets Editores. Há muitos outros a descobrir do mesmo autor, com quem passei a trocar correspondência digital e acalentei a ideia de uma viagem a Moçambique para debater com ele e Mia Couto, outro autor que conheço há mais tempo.

TQ SÃO PAULO 28.11.2023 CADERNO 2 LITERATURA Retratos do escritor, palestrante e colunista, Leandro Karnal, e sua pequena biblioteca de livros essenciais. FOTO TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Luiz Schwarcz é leitor voraz e escreveu um texto sobre depressão e ansiedade em primeira pessoa: O Ar que me Falta (Cia. das Letras). Já falei do livro nas minhas crônicas. Agora, Luiz me enviou Estranhos a Nós Mesmos (Zahar), da jornalista do New Yorker, Rachel Aviv. O subtítulo descreve: “Histórias de mentes instáveis”. As narrativas abordam pessoas neuroatípicas com grande sensibilidade, empatia, levando a refletir sobre nossa sociedade e seus “excluídos”. O texto tem passagens comoventes. Laura, por exemplo, vem de uma família tradicional e começou a se cortar no banheiro de casa. Deprimida, toma um medicamento prescrito pelo psiquiatra e vê na receita um sinal de que seu sofrimento era “levado a sério”. Porém, buscava uma vida mais “normal” e não narrou ao médico que sua vida sexual estava alterada, uma vez que a libido despencava com a medicação. Diante da dose máxima de 80 miligramas de antidepressivo, o médico recomendava também um remédio para evitar a sonolência. Quando o medicamento altera seu sono, surge outro fármaco, criando a “cascata iatrogênica”: os efeitos colaterais de um remédio levam a novas drogas. Em 14 anos, Laura tomou 19 medicamentos diferentes. A luta dela seguiu com uma busca de isolamento em ambiente agreste, sentimentos de pânico e ideias de suicídio que quase foram levadas a cabo. Os acontecimentos são dramáticos e não parecem um caso isolado. Uma entre cada oito pessoas toma algum tipo de antidepressivo nos EUA. Laura transformou em blog sua experiência e chamou atenção da autora do livro.

No mesmo campo do conhecimento mental humano, o pequeno livro Ensaios de Psicanálise (INM editora) é enorme. A forma física reduzida, parecendo um breviário, esconde uma riqueza enorme. É um texto útil para iniciados e leigos. Livro para ficar fechando e pensando no que se leu antes de seguir, com a escrita de um acadêmico da UFMG (Fábio Belo), que busca os diálogos entre arte, cinema e psicanálise. Quer um exemplo para pensar sobre sua relação de namoro ou casamento? “Há um modo terrível de controlar a dor proveniente do passado (da situação originária, dos momentos constitutivos do eu): produzir situações de dor. É como se eu dissesse: não me causaram dor, eu mesmo me causo dor! E ai de quem encontrar um (a) parceiro (a) com esse regime de funcionamento. O sujeito pode muito bem estragar tudo para causar dor no outro, e esta dor, por sua parte, vai lhe causar dor, desta vez com clara autoria. O sujeito irá se culpar – uma das grandes traduções internas da dor – pelo seu fracasso, pela sua burrice, por mais um mau passo. O mortífero une: esse é o risco. Se articular com um outro que nos cause dor, é também uma forma de lidar com nossas dores originárias. É uma forma de tornar consciente um tormento inconsciente e pretérito. O masoquismo é, antes, uma forma de controlar a dor e, numa tentativa, fazê-la um circuito inteligível.” Assim, começa a primeira “paulada” sobre a complexa trama de usar outra pessoa para dialogar com seus traumas fundacionais. O bom do texto é o conteúdo aliado à forma clara e direta, sem usar jargões retóricos que possam afastar as pessoas de fora da área.

Ler cura nossas dores? Jamais. Apenas a morte possui esse poder. Os bons livros conferem consciência, nomeiam fantasmas, ampliam horizontes. Ler não muda o mundo, muda minha maneira de percebê-lo. Ler transforma solidão em solitude e, acompanhando literatos e especialistas em saúde mental, o mundo fica menos isolado. Ler é uma revolução de esperança. Experimente. Falta pouco para terminar mais um ano. O tempo virá, inexoravelmente. No entanto, o avanço do calendário seria suavizado com mais livros e maior consciência. Ler cria a música para você dançar com seus fantasmas e dizer a eles que tudo passa, até o medo.

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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