Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Meu primeiro grande incômodo com o racismo veio de Monteiro Lobato


Alguém capaz de denunciar o sadismo racista de Dona Inácia também faria textos com passagens que lemos como preconceituosas

Por Leandro Karnal
Atualização:

Um autor de outra era imaginou uma menina negra que se escondia da dona da casa, porque Dona Inácia não gostava de crianças. A descrição da proprietária tem uma dureza que remete a uma época diferente: “Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — ‘dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral’, dizia o reverendo. Ótima, a dona Inácia”.

Monteiro Lobato em foto do início do século 20 Foto: Arquivo/Estadão

Dona Inácia tinha saudade do tempo da escravidão, quando podia espancar sem limites. Porém, os modos eram outros. No máximo, Dona Inácia poderia torturar a pequena, colocando um ovo cozido fervente na boca e impedindo-a de expelir. O conto insiste que a patroa mantinha a menina negra baseada em um sentimento de caridade com uma órfã. Era louvada pela filantropia. De outro lado, o que mais ligava a “bondosa” Inácia à menina era que a criança virara um saco de pancadas: “O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana”. Sim, Dona Inácia não poderia usar o chicote, contudo continuava cruel, arrogante, violenta com a pequena. Pior, por exercer o tipo mais terrível de sadismo – aquele que se faz em nome do bem. Era a maldade de uma “mulher de bem”.

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Dizia ao padre:

“– Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária – mas que trabalheira me dá!

A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora – murmurou o padre. – Sim, mas cansa... – Quem dá aos pobres empresta a Deus. A boa senhora suspirou resignadamente”.

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A violência travestida de caridade, a arrogância invocando o evangelho, o sadismo que busca sinais de Deus nos céus é de um poder avassalador. Obtendo aprovação no aquém e no além, esbaldando-se em dar “cocres” (pancadas na cabeça com os nós dos dedos) violentos na pequena órfã, a alma de Inácia dormia em paz entre santos e orações. Seu vasto corpo delinquia, seus dedos violentos causavam dor na indefesa e, à noite, cercada de imagens e rosários, adormecia tranquila, feliz, por ser tão boa.

No texto, vamos ficando com raiva de Dona Inácia, das sobrinhas loiras que também se divertem à custa da menina negra, do vigário e de todo o mundo que se reúne para infernizar quem não pode se defender. Ao final, deprimida, tendo experimentado uma pequena alegria ao tocar em uma boneca, a única felicidade da sua curta e sofrida vida, a menina sem nome morre.

Capa do livro 'Negrinha', de Monteiro Lobato Foto: Arquivo/Estadão
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Espero que ninguém reclame de spoiler sobre um texto publicado em 1920. O autor? Alguém capaz de denunciar o sadismo racista de Dona Inácia. Contradição? Antes e depois, o mesmo escritor faria textos com passagens que lemos como preconceituosas. Eu me refiro, claro, a Monteiro Lobato e ao conto Negrinha.

A dor da menina é tão forte; as injustiças e violências são tão destacadas que chorei quando li pela primeira vez. É um conto muito bem escrito, do ponto de vista linguístico e psicológico. No entanto, sabemos, o mesmo Monteiro Lobato, poucos anos depois, escreve o romance O Presidente Negro – o Choque das Raças, com trechos que vão muito além das comparações entre tia Nastácia e um primata. O texto se passa em 2228, uma distopia na qual o autor de Taubaté destilou tudo o que a década de 1920 conseguia elaborar na tradição racista. O livro é um horror indescritível, além de não ser bom como literatura.

O mundo é um lugar ambíguo. Somos contraditórios. Meu primeiro grande incômodo com o racismo veio de um autor com trechos racistas: Monteiro Lobato. Foi uma conversão de afetos. A conversão política veio bem depois, até resultar no livro Preconceito, uma História (Companhia das Letras, 2023), em parceria com Luiz Estevam.

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Na infância, amei Lobato e sua obra infantil. Li toda. Aprendi muito. Senti desejo em fazer parte do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Identifiquei-me com o Visconde de Sabugosa. Pedi à minha mãe que fizesse os bolinhos de chuva da tia Nastácia, aqueles que eram tão bons que o Minotauro da mitologia engordou ao aprisionar a cozinheira. Descobri, depois, a obra adulta. Negrinha, já disse, foi um texto emocionante. Também adorei Cabelos Compridos. Hoje, reconheço, o texto faz eco a uma ideia de Schopenhauer sobre cabelos longos virem acompanhados de ideias curtas. A personagem Das Dores é um mergulho em uma espiritualidade prática, sem reflexão e, como Negrinha, inserida em um conto bem realizado.

Alguém perguntou a Harold Bloom se Shakespeare era antissemita por causa de peças como O Mercador de Veneza. Ele disse que talvez, mas não muito mais do que o Evangelho de Mateus. Lobato tem passagens francamente racistas. Nosso prócer do modernismo, Oswald de Andrade, invocado por contestadores dos sistemas estruturados, chamou seu amigo Mário de “bonequinha de piche”, misturando homofobia com racismo. Devemos evitar a peça O Rei da Vela? Tenho esperança em autores com menos preconceitos e com o mesmo talento de outros do passado.

Um autor de outra era imaginou uma menina negra que se escondia da dona da casa, porque Dona Inácia não gostava de crianças. A descrição da proprietária tem uma dureza que remete a uma época diferente: “Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — ‘dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral’, dizia o reverendo. Ótima, a dona Inácia”.

Monteiro Lobato em foto do início do século 20 Foto: Arquivo/Estadão

Dona Inácia tinha saudade do tempo da escravidão, quando podia espancar sem limites. Porém, os modos eram outros. No máximo, Dona Inácia poderia torturar a pequena, colocando um ovo cozido fervente na boca e impedindo-a de expelir. O conto insiste que a patroa mantinha a menina negra baseada em um sentimento de caridade com uma órfã. Era louvada pela filantropia. De outro lado, o que mais ligava a “bondosa” Inácia à menina era que a criança virara um saco de pancadas: “O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana”. Sim, Dona Inácia não poderia usar o chicote, contudo continuava cruel, arrogante, violenta com a pequena. Pior, por exercer o tipo mais terrível de sadismo – aquele que se faz em nome do bem. Era a maldade de uma “mulher de bem”.

Dizia ao padre:

“– Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária – mas que trabalheira me dá!

A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora – murmurou o padre. – Sim, mas cansa... – Quem dá aos pobres empresta a Deus. A boa senhora suspirou resignadamente”.

A violência travestida de caridade, a arrogância invocando o evangelho, o sadismo que busca sinais de Deus nos céus é de um poder avassalador. Obtendo aprovação no aquém e no além, esbaldando-se em dar “cocres” (pancadas na cabeça com os nós dos dedos) violentos na pequena órfã, a alma de Inácia dormia em paz entre santos e orações. Seu vasto corpo delinquia, seus dedos violentos causavam dor na indefesa e, à noite, cercada de imagens e rosários, adormecia tranquila, feliz, por ser tão boa.

No texto, vamos ficando com raiva de Dona Inácia, das sobrinhas loiras que também se divertem à custa da menina negra, do vigário e de todo o mundo que se reúne para infernizar quem não pode se defender. Ao final, deprimida, tendo experimentado uma pequena alegria ao tocar em uma boneca, a única felicidade da sua curta e sofrida vida, a menina sem nome morre.

Capa do livro 'Negrinha', de Monteiro Lobato Foto: Arquivo/Estadão

Espero que ninguém reclame de spoiler sobre um texto publicado em 1920. O autor? Alguém capaz de denunciar o sadismo racista de Dona Inácia. Contradição? Antes e depois, o mesmo escritor faria textos com passagens que lemos como preconceituosas. Eu me refiro, claro, a Monteiro Lobato e ao conto Negrinha.

A dor da menina é tão forte; as injustiças e violências são tão destacadas que chorei quando li pela primeira vez. É um conto muito bem escrito, do ponto de vista linguístico e psicológico. No entanto, sabemos, o mesmo Monteiro Lobato, poucos anos depois, escreve o romance O Presidente Negro – o Choque das Raças, com trechos que vão muito além das comparações entre tia Nastácia e um primata. O texto se passa em 2228, uma distopia na qual o autor de Taubaté destilou tudo o que a década de 1920 conseguia elaborar na tradição racista. O livro é um horror indescritível, além de não ser bom como literatura.

O mundo é um lugar ambíguo. Somos contraditórios. Meu primeiro grande incômodo com o racismo veio de um autor com trechos racistas: Monteiro Lobato. Foi uma conversão de afetos. A conversão política veio bem depois, até resultar no livro Preconceito, uma História (Companhia das Letras, 2023), em parceria com Luiz Estevam.

Na infância, amei Lobato e sua obra infantil. Li toda. Aprendi muito. Senti desejo em fazer parte do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Identifiquei-me com o Visconde de Sabugosa. Pedi à minha mãe que fizesse os bolinhos de chuva da tia Nastácia, aqueles que eram tão bons que o Minotauro da mitologia engordou ao aprisionar a cozinheira. Descobri, depois, a obra adulta. Negrinha, já disse, foi um texto emocionante. Também adorei Cabelos Compridos. Hoje, reconheço, o texto faz eco a uma ideia de Schopenhauer sobre cabelos longos virem acompanhados de ideias curtas. A personagem Das Dores é um mergulho em uma espiritualidade prática, sem reflexão e, como Negrinha, inserida em um conto bem realizado.

Alguém perguntou a Harold Bloom se Shakespeare era antissemita por causa de peças como O Mercador de Veneza. Ele disse que talvez, mas não muito mais do que o Evangelho de Mateus. Lobato tem passagens francamente racistas. Nosso prócer do modernismo, Oswald de Andrade, invocado por contestadores dos sistemas estruturados, chamou seu amigo Mário de “bonequinha de piche”, misturando homofobia com racismo. Devemos evitar a peça O Rei da Vela? Tenho esperança em autores com menos preconceitos e com o mesmo talento de outros do passado.

Um autor de outra era imaginou uma menina negra que se escondia da dona da casa, porque Dona Inácia não gostava de crianças. A descrição da proprietária tem uma dureza que remete a uma época diferente: “Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — ‘dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral’, dizia o reverendo. Ótima, a dona Inácia”.

Monteiro Lobato em foto do início do século 20 Foto: Arquivo/Estadão

Dona Inácia tinha saudade do tempo da escravidão, quando podia espancar sem limites. Porém, os modos eram outros. No máximo, Dona Inácia poderia torturar a pequena, colocando um ovo cozido fervente na boca e impedindo-a de expelir. O conto insiste que a patroa mantinha a menina negra baseada em um sentimento de caridade com uma órfã. Era louvada pela filantropia. De outro lado, o que mais ligava a “bondosa” Inácia à menina era que a criança virara um saco de pancadas: “O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana”. Sim, Dona Inácia não poderia usar o chicote, contudo continuava cruel, arrogante, violenta com a pequena. Pior, por exercer o tipo mais terrível de sadismo – aquele que se faz em nome do bem. Era a maldade de uma “mulher de bem”.

Dizia ao padre:

“– Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária – mas que trabalheira me dá!

A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora – murmurou o padre. – Sim, mas cansa... – Quem dá aos pobres empresta a Deus. A boa senhora suspirou resignadamente”.

A violência travestida de caridade, a arrogância invocando o evangelho, o sadismo que busca sinais de Deus nos céus é de um poder avassalador. Obtendo aprovação no aquém e no além, esbaldando-se em dar “cocres” (pancadas na cabeça com os nós dos dedos) violentos na pequena órfã, a alma de Inácia dormia em paz entre santos e orações. Seu vasto corpo delinquia, seus dedos violentos causavam dor na indefesa e, à noite, cercada de imagens e rosários, adormecia tranquila, feliz, por ser tão boa.

No texto, vamos ficando com raiva de Dona Inácia, das sobrinhas loiras que também se divertem à custa da menina negra, do vigário e de todo o mundo que se reúne para infernizar quem não pode se defender. Ao final, deprimida, tendo experimentado uma pequena alegria ao tocar em uma boneca, a única felicidade da sua curta e sofrida vida, a menina sem nome morre.

Capa do livro 'Negrinha', de Monteiro Lobato Foto: Arquivo/Estadão

Espero que ninguém reclame de spoiler sobre um texto publicado em 1920. O autor? Alguém capaz de denunciar o sadismo racista de Dona Inácia. Contradição? Antes e depois, o mesmo escritor faria textos com passagens que lemos como preconceituosas. Eu me refiro, claro, a Monteiro Lobato e ao conto Negrinha.

A dor da menina é tão forte; as injustiças e violências são tão destacadas que chorei quando li pela primeira vez. É um conto muito bem escrito, do ponto de vista linguístico e psicológico. No entanto, sabemos, o mesmo Monteiro Lobato, poucos anos depois, escreve o romance O Presidente Negro – o Choque das Raças, com trechos que vão muito além das comparações entre tia Nastácia e um primata. O texto se passa em 2228, uma distopia na qual o autor de Taubaté destilou tudo o que a década de 1920 conseguia elaborar na tradição racista. O livro é um horror indescritível, além de não ser bom como literatura.

O mundo é um lugar ambíguo. Somos contraditórios. Meu primeiro grande incômodo com o racismo veio de um autor com trechos racistas: Monteiro Lobato. Foi uma conversão de afetos. A conversão política veio bem depois, até resultar no livro Preconceito, uma História (Companhia das Letras, 2023), em parceria com Luiz Estevam.

Na infância, amei Lobato e sua obra infantil. Li toda. Aprendi muito. Senti desejo em fazer parte do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Identifiquei-me com o Visconde de Sabugosa. Pedi à minha mãe que fizesse os bolinhos de chuva da tia Nastácia, aqueles que eram tão bons que o Minotauro da mitologia engordou ao aprisionar a cozinheira. Descobri, depois, a obra adulta. Negrinha, já disse, foi um texto emocionante. Também adorei Cabelos Compridos. Hoje, reconheço, o texto faz eco a uma ideia de Schopenhauer sobre cabelos longos virem acompanhados de ideias curtas. A personagem Das Dores é um mergulho em uma espiritualidade prática, sem reflexão e, como Negrinha, inserida em um conto bem realizado.

Alguém perguntou a Harold Bloom se Shakespeare era antissemita por causa de peças como O Mercador de Veneza. Ele disse que talvez, mas não muito mais do que o Evangelho de Mateus. Lobato tem passagens francamente racistas. Nosso prócer do modernismo, Oswald de Andrade, invocado por contestadores dos sistemas estruturados, chamou seu amigo Mário de “bonequinha de piche”, misturando homofobia com racismo. Devemos evitar a peça O Rei da Vela? Tenho esperança em autores com menos preconceitos e com o mesmo talento de outros do passado.

Um autor de outra era imaginou uma menina negra que se escondia da dona da casa, porque Dona Inácia não gostava de crianças. A descrição da proprietária tem uma dureza que remete a uma época diferente: “Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — ‘dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral’, dizia o reverendo. Ótima, a dona Inácia”.

Monteiro Lobato em foto do início do século 20 Foto: Arquivo/Estadão

Dona Inácia tinha saudade do tempo da escravidão, quando podia espancar sem limites. Porém, os modos eram outros. No máximo, Dona Inácia poderia torturar a pequena, colocando um ovo cozido fervente na boca e impedindo-a de expelir. O conto insiste que a patroa mantinha a menina negra baseada em um sentimento de caridade com uma órfã. Era louvada pela filantropia. De outro lado, o que mais ligava a “bondosa” Inácia à menina era que a criança virara um saco de pancadas: “O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana”. Sim, Dona Inácia não poderia usar o chicote, contudo continuava cruel, arrogante, violenta com a pequena. Pior, por exercer o tipo mais terrível de sadismo – aquele que se faz em nome do bem. Era a maldade de uma “mulher de bem”.

Dizia ao padre:

“– Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária – mas que trabalheira me dá!

A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora – murmurou o padre. – Sim, mas cansa... – Quem dá aos pobres empresta a Deus. A boa senhora suspirou resignadamente”.

A violência travestida de caridade, a arrogância invocando o evangelho, o sadismo que busca sinais de Deus nos céus é de um poder avassalador. Obtendo aprovação no aquém e no além, esbaldando-se em dar “cocres” (pancadas na cabeça com os nós dos dedos) violentos na pequena órfã, a alma de Inácia dormia em paz entre santos e orações. Seu vasto corpo delinquia, seus dedos violentos causavam dor na indefesa e, à noite, cercada de imagens e rosários, adormecia tranquila, feliz, por ser tão boa.

No texto, vamos ficando com raiva de Dona Inácia, das sobrinhas loiras que também se divertem à custa da menina negra, do vigário e de todo o mundo que se reúne para infernizar quem não pode se defender. Ao final, deprimida, tendo experimentado uma pequena alegria ao tocar em uma boneca, a única felicidade da sua curta e sofrida vida, a menina sem nome morre.

Capa do livro 'Negrinha', de Monteiro Lobato Foto: Arquivo/Estadão

Espero que ninguém reclame de spoiler sobre um texto publicado em 1920. O autor? Alguém capaz de denunciar o sadismo racista de Dona Inácia. Contradição? Antes e depois, o mesmo escritor faria textos com passagens que lemos como preconceituosas. Eu me refiro, claro, a Monteiro Lobato e ao conto Negrinha.

A dor da menina é tão forte; as injustiças e violências são tão destacadas que chorei quando li pela primeira vez. É um conto muito bem escrito, do ponto de vista linguístico e psicológico. No entanto, sabemos, o mesmo Monteiro Lobato, poucos anos depois, escreve o romance O Presidente Negro – o Choque das Raças, com trechos que vão muito além das comparações entre tia Nastácia e um primata. O texto se passa em 2228, uma distopia na qual o autor de Taubaté destilou tudo o que a década de 1920 conseguia elaborar na tradição racista. O livro é um horror indescritível, além de não ser bom como literatura.

O mundo é um lugar ambíguo. Somos contraditórios. Meu primeiro grande incômodo com o racismo veio de um autor com trechos racistas: Monteiro Lobato. Foi uma conversão de afetos. A conversão política veio bem depois, até resultar no livro Preconceito, uma História (Companhia das Letras, 2023), em parceria com Luiz Estevam.

Na infância, amei Lobato e sua obra infantil. Li toda. Aprendi muito. Senti desejo em fazer parte do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Identifiquei-me com o Visconde de Sabugosa. Pedi à minha mãe que fizesse os bolinhos de chuva da tia Nastácia, aqueles que eram tão bons que o Minotauro da mitologia engordou ao aprisionar a cozinheira. Descobri, depois, a obra adulta. Negrinha, já disse, foi um texto emocionante. Também adorei Cabelos Compridos. Hoje, reconheço, o texto faz eco a uma ideia de Schopenhauer sobre cabelos longos virem acompanhados de ideias curtas. A personagem Das Dores é um mergulho em uma espiritualidade prática, sem reflexão e, como Negrinha, inserida em um conto bem realizado.

Alguém perguntou a Harold Bloom se Shakespeare era antissemita por causa de peças como O Mercador de Veneza. Ele disse que talvez, mas não muito mais do que o Evangelho de Mateus. Lobato tem passagens francamente racistas. Nosso prócer do modernismo, Oswald de Andrade, invocado por contestadores dos sistemas estruturados, chamou seu amigo Mário de “bonequinha de piche”, misturando homofobia com racismo. Devemos evitar a peça O Rei da Vela? Tenho esperança em autores com menos preconceitos e com o mesmo talento de outros do passado.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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